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GT 12 - MUNDO DO TRABALHO: NOVAS E VELHAS CONFIGURAÇÕES

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GT 12 - MUNDO DO TRABALHO: NOVAS E VELHAS

CONFIGURAÇÕES

Coordenadores:

Prof. Ms. André Moulin Dardengo (UFES) Prof.ª Dr.ª Lívia de Cássia Godoi Moraes (UFES)

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2360 CAFÉ CONILON: A SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO NA COLHEITA NO MUNICÍPIO DE SOORETAMA NO ES

Amanda Teixeira Silveira UFES Arthur Almeida da Silva UFES Rayssa Deps Bolelli UFES

Resumo: O presente artigo analisa o caso de exploração do trabalho na fazenda de café Conilon em Córrego Alegre, no município de Sooretama, no Espírito Santo, a partir da releitura de Marisa Silva Amaral e Marcelo Dias Carcanholo sobre o conceito de superexploração de Ruy Mauro Marini. Pretende-se mostrar como a dependência dos mercados periféricos aos mercados centrais influi na economia a tal ponto de gerar um regime de exploração da classe trabalhadora na periferia diferenciado do centro. A análise será realizada a partir da teoria da dialética da dependência para contextualizar como se dá o processo de superexploração da força de trabalho na contemporaneidade. Palavras-chave: Dialética da Dependência; superexploração; café.

Abstract: The present article analyzes the case of labor exploitation in Conilon’s coffee farm in Córrego Alegre, in the municipality of Sooretama in Espirito Santo, from the reinterpretation of Marisa Silva Amaral and Marcelo Dias Carcanholo on the concept of overexploitation by Ruy Mauro Marini. The aim of this paper is to show how the dependency of peripheral markets towards central markets influences the economy directly generating a working class operation regime in the differentiate periphery from the center. The theory of dialectic of dependence helps us analyze and contextualize how the process of overexploitation happens in the contemporary labor force.

Keywords: Dialectic of Dependence; overexploitation; coffee.

Introdução

O Espírito Santo, em pleno século XXI, ocupa o segundo lugar na lista de estados que possuem trabalhadores em situação análoga ao escravo, segundo os dados do Ministério do Trabalho e Emprego do Espírito Santo (MTE), no ano de 2014, de acordo com a reportagem do G1 Espírito Santo. Só no município de Sooretama, no Norte do Estado, foram encontrados 86 trabalhadores em condições deploráveis de permanência durante o período de colheita do café Conilon.

Desta maneira, podemos verificar que a tendência do mercado global, analisada por Ruy Mauro Marini (2005), sobre a teoria da dialética da dependência e da superexploração, está presente de maneira expressiva em todo o país, ainda em tempos atuais. Com isso, propomos, neste artigo, analisar como a superexploração está presente no Espírito Santo por

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2361 meio do caso da lavoura de café no município de Sooretama, no ES, traçando um panorama a partir do esquema proposto por Marini (2005) e reanalisado por Amaral e Carcanholo (2012).

Segundo Amaral e Carcanholo (2012), a dependência proposta por Marx – teoria da dependência – ocorre no condicionamento da economia de alguns países que se desenvolvem a partir da expansão de outras economias. Desta forma, pode ser observado, no que tange a economia nacional, que há uma desigual proporção na relação de produção no que diz respeito ao desenvolvimento de setores, pois estes necessitam se apoiar no subdesenvolvimento de outras partes. Essa desigual proporção está relacionada com a teoria marxista da dependência. Portanto, há uma lógica contrária da acumulação do capital que ocorre por meio da expansão das economias dependentes (AMARAL; CARCANHOLO, 2012).

No que diz respeito às regiões que ocorrem as precarizações no âmbito trabalhista e consequentemente ocorre a dependência, Osorio (2012) aponta a América Latina como região do continente americano que acompanhou transformações radicais na economia a partir da crise capitalista no final de 1960. Desta forma, este período de mudanças ocasionou a divisão internacional do trabalho e reformulações na economia mundial. Para Eduardo Galeano (2013) esta divisão internacional do trabalho se configurou entre ganhar e perder, ou seja, os países centrais ganham e os periféricos perdem.

Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. [...] Mas a região continua trabalhando como serviçal, continua existindo para satisfazer as necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, de cobre e carne, frutas e café [...], destinados aos países ricos que, consumindo-os, ganham muito mais do que ganha a América Latina ao produzi-los (GALEANO, 2013, p. 17).

A mudança apontada por Osorio (2012) elucida um novo padrão exportador de reprodução do capital que tem a ver com as mudanças tecnológicas que foram surgindo ao longo desse processo. Ao analisar este novo padrão, podemos considerar que Amaral, Carcanholo (2012) e Osorio (2012) concordam ao dizer que toda a produção do excedente ocorre não por meio dessas novas tecnologias, mas, sim, pela superexploração da força de trabalho.

Em vista disso, vários reflexos deste novo padrão imposto na América Latina são identificados, como o salário e as condições de trabalho que são atingidos pela precarização. Osorio (2012) ressalta que na precarização “não se consegue evitá-las apesar das políticas

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2362 sociais levadas a cabo por alguns Estados ou do crescimento significativo alcançado por algumas economias” (OSORIO, 2012, p. 123).

Outro ponto também lembrado por Osorio (2012) se trata da ligação que o padrão de exportação implicou na perda de poder aquisitivo dos assalariados que estão no mercado interno. Neste padrão também é analisado que há certa capacidade de concorrência nos mercados externos, o qual residem na deterioração dos salários locais e na diminuição do custo do trabalho em si, por exemplo, os benefícios sociais para estes trabalhadores (OSORIO, 2012).

Não obstante, no presente artigo não iremos estender a discussão a respeito do padrão de exportação de produção do capital, mas sim a estruturação da condição de trabalho na qual é essencial para o crescimento e permanência do capital. Sendo assim, a seguir será exposto o esquema da dialética da dependência em que se dá a superexploração do trabalho definida por Ruy Mauro Marini (2005).

1. As relações dependentes

A partir da divisão mundial do trabalho, do colonialismo e, posteriormente, o imperialismo, já anunciados por Marx, o capitalismo avança suas contradições a níveis exorbitantes. A díade patrão versus operário desenvolve-se para as duplas capitais (nisso se inclui os primeiros estados nacionais europeus Portugal e Espanha até as primeiras potências capitalistas como Inglaterra e Holanda) versus colônias, tem sua segunda fase no neocolonialismo ou imperialismo e, posteriormente, dá lugar ao capitalismo industrial versus capitalismo periférico, isso após a independência política das colônias, mas não obtém independência econômica. As relações de dependência entre o centro e a periferia capitalistas não são oriundas diretamente do sistema colonial anterior ao século XIX, mas sim do processo de expansão imperialista exercido pelas potências capitalistas centrais no fim deste mesmo século.

É a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência (MARINI, 2005, p. 141).

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2363 Assim, “a situação dependente [é] como um condicionamento da economia de certos países em relação ao desenvolvimento e expansão de outras economias” onde segundo Theotonio dos Santos “os países dominantes poderiam se expandir e se autos-sustentar, ao passo que os dependentes apenas poderiam fazê-lo como um reflexo da expansão dos anteriores”, ou seja, “a expansão de economias dependentes é um reflexo da lógica contraditória da acumulação de capital em escala mundial” (DOS SANTOS apud AMARAL; CARACANHOLO, 2012, p. 87).

Dentro da teoria marxista os primeiros a tratarem das relações entre os países centrais e os periféricos, embora não utilizassem essa nomenclatura, foram os teóricos do imperialismo. A teoria marxista da dependência, neste sentido, se diferencia destes teóricos por darem centralidade nas consequências sociais e econômicas que a expansão e dinâmica de acumulação capitalista causam na parte periférica do sistema (DOS SANTOS, 2012).

A partir do século XX, com o avanço das relações econômicas globais, as contradições presentes desde a gênese do capitalismo passam a atingir de forma mais intensa os países periféricos. Ou seja, enquanto o capitalismo central passa a se ocupar com o setor de serviços, produção de novas tecnologias, pesquisas e a expandir suas indústrias a níveis multinacionais, os países de terceiro mundo devem receber essas empresas e conceder-lhes mão-de-obra barata, regimes de trabalho mais flexíveis (menos leis trabalhistas) e produzir alimentos e commodities não só para si, mas prioritariamente para o mercado internacional. Devem trabalhar em dobro para manter a economia mundial. Assim, as teorias terceiro mundistas passam a observar tal fenômeno e chamá-lo de superexploração (DOS SANTOS apud AMARAL; CARACANHOLO, 2012).

Porém é preciso pensar a teoria da dependência em sua dissonância com as teorias vigentes. É preciso compreender o capitalismo moderno a partir de uma ótica que não somente inclua a exploração e a superexploração, mas que tenha essas categorias em sua centralidade. Para tanto, é preciso entender o capitalismo central como dependente no capitalismo periférico, sendo a sua recíproca verdadeira. Em suma, não resumimos aqui a dependência como sendo unilateral, mas a entendemos como sendo mútua, ou seja, o desenvolvimento das periferias depende da lógica do capitalismo central, assim como este depende necessariamente da economia capitalista periférica para sua existência e reprodução (DOS SANTOS apud AMARAL; CARACANHOLO, 2012).

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2364 2. Superexploração da força de trabalho

A superexploração do trabalho se trata de um termo desenvolvido a partir dos estudos de Ruy Mauro Marini, o qual introduziu este pensamento ao marxismo latino-americano, na metade da década de 1960, com base na teoria do valor da obra de Karl Marx. Este termo passou a ser usado em seu texto Suddesarollo y Revolución, de 1967. Não obstante, Marx, em O Capital, já especulava algumas ideias que poderiam vir a ser analisadas para o entendimento da superexploração: “[...] quando Marx identifica situações em que a remuneração da força de trabalho por baixo do seu valor assume relevância teórica para a compreensão da dinâmica do sistema” (MARQUES, 2013, p. 21).

Sendo assim, o cerne da superexploração se deu início com os escritos de Marx, e principalmente com a teoria do valor a partir da obra sobre a Dialética da dependência (2005), de Ruy Marini. Entende-se que “o aumento da intensidade do trabalho aparece, nessa perspectiva, como um aumento da mais-valia, obtido através de uma maior exploração do trabalhador e não incremento de sua capacidade produtiva” (MARINI, 2005, p. 154).

No capítulo XIV do livro I de O Capital, Marx explica que a duração do tempo de trabalho pode ser decisiva no preço da força de trabalho. Em um de seus escritos fica claro que o cálculo sobre o valor de cada dia trabalhado (força de trabalho) possui uma média que se resulta na “duração média, ou seja, sobre a duração normal da vida de um trabalhador e sobre uma correspondente transformação normal, ajustada à natureza humana, de substância vital em movimento” (MARX apud MARQUES, 2013, p. 22).

O prolongamento da jornada de trabalho acaba por desgastar e comprometer a reprodução da força de trabalho, sendo assim desvalorizando o seu valor1. Diante disto, a restauração desta força de trabalho desgastada pela aceleração da jornada, não chega a ser compensada, pois não vale à pena, mesmo com a constância dos valores nominais e do aumento. Além disso, existe o ponto que calcula o tempo de vida de um trabalhador, o qual

1 O valor total da força de trabalho, do ponto de vista do capital, leva em consideração não só o tempo de vida útil do trabalhador, ou seja, o total de dias que o possuidor da força de trabalho pode vendê-la em boas condições no mercado de trabalho, assim como o tempo de aposentadoria, em que o trabalhador não participará da produção. O valor total (tempo de vida útil e de vida média total) é que determina o valor diário da força de trabalho, apresentando como parâmetros as condições históricas e morais existentes na época. O salário que corresponde ao pagamento diário da força de trabalho e respeita o valor desta deve permitir ao indivíduo que trabalha a reposição do desgaste de seu período produtivo e não produtivo, de acordo com o tempo médio de sua vida. Essa é a maneira como atua a lei do valor sobre a força de trabalho, sob as “condições normais” de exploração da força de trabalho no modo de produção capitalista (MARQUES, 2013, p. 23).

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2365 resulta no desgaste rápido em que não é possível estabelecer uma recomposição desse gasto na vida humana, que foi estabelecida pelas horas a mais trabalhadas. Para tanto, a queda do valor do preço da força de trabalho abaixo do seu valor ocorre a partir do momento em que é imposta a jornada de trabalho prolongada.

[...] vê-se que Marx define o cálculo do valor diário da força de trabalho com base no seu valor total; ou seja, sobre a duração média ou normal do tempo de vida do trabalhador. Ele remete, assim, ao efeito que o prolongamento da jornada de trabalho pode implicar em termos de desgaste acelerado, em progressão geométrica [...] (MARQUES, 2013, p. 23).

A partir dos estudos de Marx, Marini elucida o conceito de superexploração em que destaca três características de apropriação, que tange ao tempo de trabalho excedente no qual os capitalistas se empenham para obter o lucro por meio da diminuição do preço da força de trabalho: “[...] a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho [...]” (MARINI, 2005, p. 156). Desta maneira, Marini (2005) aponta que os processos que produzem o aumento da jornada de trabalho e, por consequência, a intensificação do mesmo, acabam por reduzir a vida do trabalhador a tal ponto que não é possível que ele consiga alcançar um tempo adequado de descanso, ainda que seja remunerado pelas horas trabalhas a mais.

No entanto, Amaral e Carcanholo (2012) também ressaltam que as economias baseadas no controle de mercado são regidas pela capitação de excedentes de países dependentes para países dominantes. Como já citamos acima, esta é a base para que seja compreendido o processo da dialética da dependência. Sendo assim, é visto por Amaral e Carcanholo (2012) que há uma distinção no contexto local, em que é nomeado de tecnologia capital-intensiva num contexto de mercado de trabalho barato.

Todo esse processo resulta em uma exploração da força de trabalho, compreendida do ponto de vista da mais-valia relativa que “se dá justamente como consequência do já mencionado intercâmbio desigual e dos mecanismos de transferência de valor que ele reforça” (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 88).

Essa radicalidade da exploração da força de trabalho é a maneira que o mercado externo possui para impulsionar a saída de recursos que, por consequência, resulta em problemas graves para os trabalhadores. Segundo Amaral e Carcanholo (2012) há apenas uma solução para que as economias periféricas garantam algum tipo de acumulação de capital para si, é com o aumento

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2366 do excedente por meio da superexploração da força de trabalho, junto à lógica da reprodução do capital. No entanto, é válido lembrar, como foi exposto acima, que as economias estão apoiadas umas às outras e que tanto os trabalhadores das regiões periféricas quanto os das regiões centrais sofrem com esta superexploração do trabalho. Com isto, há em volta desse sistema uma série de problemáticas que ocasionam a má distribuição de renda e por consequência surgem situações precárias de cunho social na população dos países periféricos.

Para tanto, será exposto como se dá a supexploração da força de trabalho por meio da análise realizada por Amaral e Carcanholo (2012) em que esclarece as quatro características principais da superexploração da força de trabalho, e é por meio destas que traçaremos a análise do caso do munícipio de Sooretama, no ES.

A superexploração da força de trabalho, apontado por Marini (2005), é uma caracterização da dependência ocasionada pelas economias dominantes de países centrais sobre as economias dependentes de países periféricos e culmina com a lei de acumulação capitalista de Marx, na qual suprime o mercado a tal ponto que cria um exército industrial de reserva destinado para a acumulação do capital. Sendo assim, todo esse resultado, que está apoiado neste esquema da dependência, impacta a classe trabalhadora de maneira perversa (OSORIO, 2012).

A superexploração ocorre em função da transferência de valor entre as economias periféricas e centrais, ou seja, a mais-valia que é produzida na periferia é levada para atender ao centro. Amaral e Carcanholo (2012) chama este processo de um “capitalismo sui generis na periferia” exatamente pelo motivo de que todo o excedente produzido é dirigido em formato de lucros para os países centrais. Portanto, a economia interna acaba por enviar uma quantidade demasiada de excedente no qual não pode retrair para si (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 90).

Contudo, a expropriação de valor só consegue obter compensação de uma margem de acréscimo por meio do plano de produção, o que significa que somente com a superexploração é possível completar a acumulação interna. Para tanto, podemos compreender que a explicação deste fato ocorre com o entendimento de duas concorrências abordadas por Amaral e Carcanholo (2012): a intrassetorial e a interssetorial. A concorrência intrassetorial é a que está dentro de um mesmo setor produtivo, e a interssetorial é a que está entre setores distintos de produção e se configura por meio da análise da Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro (LQTTL). Em nota de roda pé, Amaral a Carcanholo (2012) esclarecem como esta lei ocorre.

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2367 [...] Esse aumento de produtividade se configura, em primeira instância, numa ampliação da relação entre meios de produção e força de trabalho (MP/FT), ou a relação entre o capital constante (c) capital variável (v) investimentos, também se amplia, mesmo que seja em proporção menor do que a aquela outra. Ou seja, o que se percebe é uma maior participação de c em relação ao capital global – e, portanto, uma participação reduzida dos salários em relação a este último. E, como taxa de lucro é uma função da taxa de mais-valia e da compensação orgânica do capital, pressupondo uma taxa de mais-valia constante, o crescimento da composição orgânica do capital leva necessariamente à queda da taxa de lucro (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 90).

Sendo assim, na concorrência intrassetorial ocorre o aumento de produtividade em um setor específico que gera a produção de produtos em um mesmo intervalo de tempo. E, com isso, o capitalista consegue reduzir o valor individual das mercadorias em um nível abaixo do valor de mercado e se apropriar da mais-valia extraordinária2. Já o nível da concorrência interssetorial é incorporado quando a uma ideia de progresso técnico ligado ao capital individual e que está inserido direta ou indiretamente a setores de produção de bens de consumo de luxo (AMARAL; CARCANHOLO, 2012).

A mais-valia extraordinária ou superlucro, sendo aplicada por vários capitalistas individuais pode submeter a um excesso de mercadorias que levam a uma queda na taxa de lucro devido a esta alta produção. Portando, fica claro que o interesse do capitalista é o de gerar a mais-valia extraordinária à custa da força de trabalho.

Até este ponto, expomos que toda a estrutura em volta do capital está predestinada apenas ao pensamento lucrativo e não ao de traçar boas condições de trabalho e salariais para estes que são a mola propulsora do capitalismo nos países periféricos e centrais.

Portanto, com base no que já foi exposto, a estrutura da superexploração do trabalho ocorre a partir das quatro características que Amaral e Carcanholo (2012) propõem a partir do pensamento de Marini (2005). Não obstante, observa-se neste artigo que já citamos as três características de Ruy Mauro Marini (2005), e o que se percebe é que a proposta de Marini recebeu um acréscimo a partir do pensamento de Amaral e Carcanholo. Diante disto, estas quatro características podem aparecer de maneira isolada ou combinada que possibilitam a continuidade do processo de acumulação capitalista nos países periféricos (AMARAL; CARCANHOLO, 2012).

2 “Mais-valia extraordinária ou superlucro: o valor individual refere-se à quantidade de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria numa empresa específica; o valor de mercado é a medida de todos os valores individuais de todas as empresas conjuntamente (é o trabalho socialmente necessário); e a mais-valia extraordinária é a diferença entre esses dois valores quando de sua realização no mercado” (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 91).

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2368 Em primeiro lugar está o “aumento da intensidade do trabalho” em que o mesmo é intensificado e o trabalhador produz mais valor num mesmo espaço de tempo. A segunda forma é “o prolongamento da jornada de trabalho” que se resulta no aumento de tempo do trabalho excedente, sendo assim este tempo de trabalho ultrapassa o que seria necessário para a própria reprodução do trabalhador. O operário segue “produzindo após ter atingido um valor equivalente ao dos meios de subsistência para seu próprio consumo”. Na terceira forma há “a apropriação, por parte do capitalista, de parcela do fundo de consumo do trabalhador – então convertido em fundo de acumulação capitalista”. É posto que o capitalista ao se enxergar fortalecido no sentido de condicionar uma queda dos salários3 a uma posição inferior a que corresponderia ao valor da força de trabalho. A última forma abordada por Amaral e Carcanholo (2012) sobre “a ampliação do valor da força de trabalho sem que seja pago o montante necessário para tal”, diz respeito à determinação do valor da força de trabalho que está relacionada e é “histórico-social”. Neste sentido, fica entendido que há um aumento no valor e quando a produção deste sobe e não é remunerada de maneira integral, surge uma nova forma de superexploração do trabalho (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 99).

Contudo, a seguir será exposto a análise do caso de superexploração da força de trabalho, na fazenda de café, no município de Sooretama, a partir das quatro características apresentadas neste trabalho. Por ser uma bebida consumida no mundo todo, entendemos a relevância deste produto para a economia mundial. E, por resultante, toda a estrutura que se dá a partir do intercâmbio de mercadorias entre países. Deste modo, podemos já de antemão destacar que, de fato, a dialética da dependência e a superexploração do trabalho se faz presente neste caso devido à alta demanda no café no mundo.

3. Superexploração: colheita de café Conilon em Sooretama

O município de Sooretama, no Norte do Espírito Santo, foi apontado pelo Ministério do Trabalho (MTE) em segundo lugar na lista de localidades que possuem exploração do trabalho na pesquisa realizada em 2014. Sooretama é uma região que possui grande produção de café no Estado e, de acordo com esta pesquisa, 86 trabalhadores foram encontrados em uma fazenda, em

3 “A ampliação do exército industrial de reserva (EIR) é um bom exemplo, dado que os trabalhadores empregados se submetem a uma situação de arrocho salarial, tendo em mente a existência de pressão por parte dos desempregados, que se sujeitariam a uma remuneração inferior em troca de trabalho” (AMARAL; CARCANHOLO, 2012, p. 100).

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2369 Córrego Alegre, em condição de trabalho análogo ao escravo, cujo o nome da propriedade não foi divulgado, como afirma a reportagem do G1 Espírito Santo.

O contraditório a respeito dos dados apresentados sobre o trabalho considerado escravo, é que o Espírito Santo é o segundo Estado maior produtor de café no Brasil, com predominância para a espécie Conilon. No ano de 2014, a safra brasileira de café gerou mais de 45,3 milhões, sendo que 32,3 milhões de café Arábica e 13,0 milhões de Conilon (CONAB, 2015). No total, o PIB do café no Brasil no ano de 2014 é de R$ 3.293.350.393,00 (CETCAF, 2014).

De acordo com o Centro de Desenvolvimento Tecnológico do Café (CETCAF), os tipos de café produzidos em todo o Espírito Santo são o Arábica 20% e o Conilon 80%, sendo que 60% do café Arábica é exportado e 40% vai para o mercado interno, já o Conilon exporta 10% do café e 90% é destinado para o mercado interno. Os principais destinos são: Estados Unidos, Eslovênia, Alemanha, países da região do Mediterrâneo e Argentina (CETCAF, 2014). Desta forma, podemos apontar esta porcentagem como uma problemática, pois o café produzido na fazenda de Sooretama, onde foi encontrado condições inferiores de trabalho, é o café do tipo Conilon considerado um café de baixa qualidade. Ou seja, ainda que o café Arábica tenha pouca produção no Estado é ele que é mais exportado e, portanto, podemos identificar que há uma alta demanda, no que tange a própria manutenção do mercado interno, já que este está propenso a realizar a distribuição do café Conilon dentro do Brasil.

Segundo a tabela de caracterização do parque cafeeiro no Estado do Espírito Santo, há um total de 82.400 mil propriedades sendo que destas 68,16% produzem café. Cerca de 33.456 mil propriedades produzem a espécie Conilon, e 22.713 mil são destinadas à produção do café Arábica. É evidente, portanto, que há uma alta produção de café Conilon no Estado para o seu próprio mercado. Só no período de 2014 cerca de 9.950.000 safras de café Conilon foram enviadas ao mercado interno, lembrando que 10% desse total é exportado, e ainda este número fica acima do café Arábica, que neste ano rendeu 2.899.700 safras, sendo que 60% foram exportados (CETCAF, 2014).

Esta produção em grande escala do café Conilon no Espírito Santo e no Brasil ocorre porque este tipo de café é de pior qualidade em relação ao café arábica que é muito consumido na Europa, por exemplo. Segundo reportagem na página Uol, os brasileiros estão acostumados a consumir um café de péssima qualidade, além de estar muito abaixo do padrão europeu. O consumo limitado do café nobre no Brasil está ligado ao baixo poder aquisitivo de uma parte da população e à falta de oportunidade para as pessoas provarem café de qualidade.

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2370 O Conilon, muito utilizado nas casas brasileiras é misturado e transformado em café solúvel e possui baixo custo. Da espécie café coffea canephora, com 2,2% de cafeína, o café Conilon tem o sabor e aroma amargo e pouco apreciado, com 3 a 7% de açucares. As plantas são rústicas e produzem o dobro de grãos do café Arábica. Além disso, são produzidos de qualquer maneira, sem cuidados ou tratamento no campo (CULTIVANDO, 2011). Já o café Arábica possui características opostas à bebida citada acima. Da espécie coffea arabica, o tipo arábica possui 1,2% de cafeína, quase a metade de cafeína apresentada no café Conilon. O sabor e aroma são suaves e doces com maior acidez, contém 6 a 9% de açucares, o dobro do Conilon, e seu plantio exige cuidado, pois suas plantas são sensíveis e produzem menos grãos. No mundo, o café Arábica representa 70%, já o café Conilon apenas 30% (CULTIVANDO, 2011). Com estes dados é possível notar por que o café Conilon é tão produzido no Brasil, as plantas deste café produzem mais grãos e não exigem tantos cuidados, ou seja, tende haver muito mais trabalho e pouco investimento para dar conta da plantação do grão, em vista do seu baixo custo.

Contudo, as condições de trabalho denunciadas pelo MTE, no município de Sooretama, podem ser compreendidas a partir deste panorama, no que tange ao valor que se dá não só ao produto, mas também à mão de obra. Como foi exposto, o café Conilon não exige cuidados especiais, pois este tem boa aceitação em qualquer localidade, produz em maior quantidade e é pouco apreciado para a exportação, o que leva a um cenário propenso à exploração do trabalho. Desta forma, o caso de Sooretama é analisado como um exemplo desta superexploração da força de trabalho, em que estão presentes todas as precariedades em questão neste trabalho, impostas pela dependência entre mercados.

A abordagem no município ocorreu no dia 4 de junho de 2014, pelo Ministério do Trabalho e Emprego junto à Polícia Federal. Na fazenda em Córrego Alegre foram encontrados os trabalhadores em condições desumanas com o esgoto a céu aberto, passando por dentro dos dormitórios e, além de tudo, todos os resíduos eram despejados ao lado do local de convívio deles, segundo reportagem do G1 Espírito Santo. Os trabalhadores relataram que o único local viável para comer era dentro dos dormitórios onde passava o esgoto. Além do mais, os trabalhares não só se alimentavam expostos ao cheiro do esgoto, mas também dormiam nessas condições.

Além disso, várias exigências do MTE não foram cumpridas pelo proprietário da fazenda no período que manteve os trabalhadores alojados. Por exemplo, o único banheiro do alojamento não possuía azulejos, também não foi oferecido nenhum produto de higiene, como papel higiênico, sabonete etc. Os trabalhadores não tinham condições sequer para a alimentação. O

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2371 bujão de gás, por exemplo, não era disponibilizado pelo proprietário, eram os trabalhadores que arcavam com estes gastos. Do mesmo modo, a carteira de trabalho de todos os trabalhadores estava com o dono da fazenda, no entanto, segundo o Ministério do Trabalho a carteira de trabalho tem que ser devolvida ao trabalhador após 48 horas que é o período de retenção para ser assinada. Ao descreverem a situação imposta, muitos trabalhadores disseram que tentaram juntar dinheiro para voltar para casa, no entanto, o que era pago pelo proprietário não era suficiente nem para a permanência dos trabalhadores no local. A fazenda de Córrego Alegra, em Sooretama, já estava notificada com 15 autos de infração e a multa para o proprietário, pelas condições insalubres as quais os trabalhadores estavam submetidos, custou à época, R$ 1 milhão, de acordo com a reportagem G1 Espírito Santo.

Por isso, podemos apontar que as quatro características de superexploração da força de trabalho citadas por Amaral e Carcanholo (2012), de acordo com a análise inicial de Marini (2005), estão presentes no caso da fazenda de Sooretama. A seguir será exposta a análise diante deste caso de superexploração da força de trabalho na fazenda localizada no município de Sooretama, no Espirito Santo.

A primeira característica de superexploração apontada por Amaral e Carcanholo (2012), diz respeito ao aumento de intensidade do trabalho em que podemos compreender que os trabalhadores da fazenda de café foram trazidos de suas cidades natais para morarem em alojamentos e produzirem mais valor num mesmo espaço de tempo, ou seja, plantarem e colherem café. Na segunda característica, podemos avaliar que o trabalhador, alojado na propriedade onde as plantações de café ficavam, trabalhava a qualquer momento e esse tempo de trabalho ultrapassado gerou para o proprietário mais excedente. A terceira característica diz respeito ao salário que, como já foi citado neste capítulo, não permitia aos trabalhadores saírem daquela condição e tinham que juntar dinheiro para comprar uma passagem de volta para casa. E isto ocorre, de acordo com Amaral e Carcanholo (2012), devido ao fortalecimento da classe capitalista que impõe uma queda no salário a um nível inferior, ou seja, esses trabalhadores são colocados numa situação de que se eles não quiserem trabalhar nessas condições, ou se por ventura reivindicassem seus direitos, não mudariam nada, pois existem muitas pessoas que estão à espera de um “emprego” como este por necessidade. No que tange à economia, esta situação é confortável para o capitalista. A última característica analisada se trata do valor da força de trabalho que, quando o trabalhador não recebe remuneração pela produtividade realizada pela força de trabalho, há uma nova forma de superexploração do trabalho. Neste caso, como os

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2372 trabalhadores moravam na fazenda de café e o pagamento do salário, entre as outras necessidades que tinham que ser ressarcidas pelo dono da fazenda não eram realizados, podemos considerar que a última característica também se enquadra no cenário vivido por esses trabalhadores.

O valor total (tempo de vida útil e vida média) determina o valor diário da força de trabalho, portanto, por esses trabalhadores estarem 24 horas no ambiente de trabalho e em condições insalubres, já é um indicativo de uma nova superexploração, pois nem a esse ponto eles deveriam estar. E para ressarcir o salário de todo cálculo do valor total deveria ser contado não só o tempo integral, mas também as condições em que viviam os trabalhadores, pois estes nem estrutura física possuíam para recuperar o desgaste do período produtivo e tampouco do período não produtivo.

Considerações Finais

O objetivo da presente pesquisa foi discutir como ocorre o processo de superexploração da força de trabalho, a partir do conceito da dialética da dependência na contemporaneidade. Desta maneira, notamos que a dependência dos países periféricos aos países centrais impulsiona o mercado mundial ao ponto de propiciar condições favoráveis à exploração do trabalho, no que tange ao aumento da jornada do trabalho, a intensificação do mesmo, as remunerações a baixo do seu valor e outras formas de superexploração que surgem a partir desta lógica.

Para tanto, o caso da lavoura de Sooretama que propusemos analisar trouxe-nos a evidência de que a superexploração do trabalho está presente e não se difere aos casos já analisados, pois todas as modalidades e formas apresentadas pelos autores Marini (2005), Amaral e Carcanholo (2012) se assemelham com o caso relatado a respeito da fazenda de café, no Norte do Espírito Santo. Além do mais, o caso de Sooretama apresenta uma superexploração da força de trabalho que não só foi gerada pela lógica da dialética da dependência entre nações, mas sim pela dependência num contexto local e geral dos trabalhadores que sofreram com as péssimas condições de trabalho.

Desta forma, ainda que o café Conilon não tenha valorização para a exportação e não seja de boa qualidade, o mesmo é comercializado no mercado interno e o seu plantio tem baixo custo. Ou seja, muito café tem que ser plantando para que se tenha uma margem de

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2373 lucro e, com isso, os trabalhadores são submetidos a exaustivas horas de trabalho para realizar a colheita, pois cada pé de café Conilon produz o dobro de grãos do Arábica.

Galeano (2013) descreve esta situação, ao dizer que a América Latina continua trabalhando como serviçal para atender aos países ricos. E a situação se torna pior quando se trata de atender ao próprio mercado (interno), visto que o café Conilon não tem tanto valor quanto o Arábica, ou seja, é preciso aumentar a jornada de trabalho na colheita de café e, para que isto aconteça, não há outro meio senão a superexploração da classe trabalhadora.

Desde a mudança do padrão exportador de reprodução do capital com a chegada das tecnologias, as grandes produções nas lavouras de café ainda permaneceram com o processo de colheita realizado por trabalhadores. Sendo assim, o uso do trabalho artesanal ainda está presente, principalmente na separação dos grãos até a finalização do processo para que ele possa ser consumido. Claro que ressaltamos neste procedimento que existe a presença da tecnologia, como máquinas, caminhões e etc., porém, ainda assim é predominantemente e essencial a presença da força de trabalho neste tipo de produção.

Portanto, podemos concluir que os trabalhadores da fazenda de café em Sooretama, no Norte do Espírito Santo, estavam sujeitos à superexploração da força de trabalho, no qual as quatro características apontadas por Amaral e Carcanholo (2012) puderam ser identificadas e analisadas. Observamos também que existe a dependência do mercado interno sob a sua própria condição, pois o produto, neste caso, o café Conilon, possui pior qualidade e para que se tenha o lucro tem que haver uma grande produção. Desse modo, o mercado do café Conilon, de alguma forma, precisa acompanhar o mercado do café Arábica, sendo que o preço deste café é mais elevado comparativamente ao do Conilon. Pois, isto propicia uma concorrência no próprio mercado interno, que para se completar cria condições para a superexploração do trabalho.

Referências

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2375 CULTURA E TRABALHO IMATERIAL: NOTAS PARA O DEBATE

André Peralta Grillo UFJF

Resumo: Este trabalho visa apresentar algumas hipóteses e conclusões parciais sobre pesquisa voltada para a observação e análise da relação entre as mudanças contemporâneas no mundo do trabalho e a produção cultural, entendida como a produção de atividades, bens ou eventos culturais e artísticos. O foco está na inserção do “trabalhador da cultura” na lógica do “trabalho imaterial” (GORZ, 2005) e do “mundo conexionista” da “cidade por projetos” (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009). Os dados baseiam-se em pesquisa em andamento com a rede “Circuito Fora do Eixo”, que extrapola o âmbito da produção cultural estrito senso e radicaliza algumas das tendências que tenho como hipótese podem se impor de forma mais geral (ao menos como possível fonte de fortalecimento do engajamento) ao domínio da produção de cultura e arte.

Palavras-chave: produção cultual; trabalho imaterial; fora do eixo.

Abstract: The purpose of this paper is to present some hypothesis and partial conclusions on a research that aims to observe and analyze the relationship between contemporary changes in labor and the cultural production, understood as the production of activities, goods or events in art and culture. The focus is on the insertion of the “culture worker” in the logic of the “immaterial labor” (Gorz e etc) and of the “connectionist world” of the “project city” (Boltanski & Chiapello). The data is grounded on an ongoing research with the network “Circuito Fora do Eixo”, which goes beyond the scope of strict cultural production and radicalizes some of the trends I have as a hypothesis that can generally be spread (at least as a possible source of engagement) into the field of art and cultural production. Keywords: cultural production; immaterial labor; fora do eixo.

Este trabalho visa apresentar algumas hipóteses e conclusões parciais sobre pesquisa voltada para a observação e análise da relação entre as mudanças contemporâneas no mundo do trabalho e a produção cultural, entendida como a produção de atividades, bens ou eventos culturais e artísticos. O foco está na inserção do “trabalhador da cultura” na lógica do “trabalho imaterial” (GORZ, 2005; CAMARGO, 2011) e do “mundo conexionista” da “cidade por projetos” (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009). Os dados baseiam-se em pesquisa em andamento com a rede “Circuito Fora do Eixo”, que extrapola o âmbito da produção cultural estrito senso e radicaliza algumas das tendências que tenho como hipótese podem se impor de forma mais geral (ao menos como possível fonte de fortalecimento do engajamento) ao domínio da produção de cultura e arte.

Tendo como principais referências às mudanças no mundo do trabalho contemporâneo André Gorz e a obra conjunta de Luc Boltanski e Eve Chiapello, busco desenvolver a discussão sobre o “trabalho imaterial” e o “mundo conexionista da cidade por

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2376 projetos” em torno do novo perfil de trabalhador esperado, e mais recompensado, dentro dessa lógica. Tomando então o campo da produção de cultura e arte como um locus privilegiado neste sentido (algo a ser demonstrado no decorrer da pesquisa), o objetivo é demonstrar o quanto o trabalhador da cultura no Brasil, enquanto produtor, se encontra permeado, ou sobre influência, da lógica de rede do mundo conexionista e sobre a égide das ingerências decorrentes da preponderância do trabalho imaterial como fonte de valor.

A pesquisa parte do estudo de caso da rede “Circuito Fora do Eixo” (FdE), fundada em 2005 por produtores culturais de cidades fora do eixo Rio-São Paulo, e pautando sua organização em princípios inspirados na economia solidária, no coletivismo, colaborativismo, mobilidade, fluidez e no engajamento militante. O FdE possui basicamente duas facetas: circuito cultural e movimento social. Embora minha pesquisa não busque, em princípio, uma representatividade do “produtor cultural brasileiro” (em termos de uma amostra representativa), o FdE se mostra um bom começo neste sentido, na medida em que possui agentes, coletivos e sedes em todas as regiões do país (chegando em seu auge a todos os Estados), o que me fez ter contato com produtores dos mais variados cantos. O estudo de caso (em andamento) inclui análise de documentos “oficiais” (como carta de princípios e regimento interno) e de declarações públicas em eventos registrados e disponibilizados por meios virtuais, assim como acompanhados de forma presencial, observação participante em festivais, congressos e imersões, entrevistas semiestruturadas e acompanhamento das atividades da rede, e de sua repercussão, por meio das plataformas digitais de redes sociais e outros meios virtuais. Posteriormente, pretende-se estender a pesquisa a outros produtores em outros contextos.

O FdE, como dito, não se reduz à esfera da produção cultural, atuando fortemente, principalmente a partir de 2011, também como movimento social. Minha hipótese, desenvolvida alhures (GRILLO, 2014b, 2015a, 2015b), é que a rede se constitui no que chamei de “rede de militância laboral”, na qual trabalho e militância são atividades indistintas. Ou seja, o engajamento militante, a defesa de uma (ou várias) causa(s), se confunde com a atividade produtiva, inserida aqui no mercado de bens simbólicos e culturais do que se pode chamar “cultura independente brasileira”, em especial no nicho da música. Nesse sentido, a extrapolação do âmbito da produção cultural seria uma forma de radicalização das formas de atuação e de engajamento típicas do novo mundo do trabalho e, talvez, uma possibilidade de explorar de forma mais intensa seu potencial mais “libertário”, ante a tendência a precariedade e autoexploração. Minha hipótese mais geral, que pelo caso estudado tem se mostrado válida,

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2377 é de que a produção de atividades ligadas a cultura e a arte são gratificantes em si (embora não dispense ou torne desnecessário outras formas de recompensa), para quem tem um envolvimento genuíno com as mesmas, permitindo uma realização pessoal e um engajamento mais pleno do que em relação a uma atividade a qual o sucesso da mesma é indiferente a seus trabalhadores (como o aumento dos lucros de um banco), ou sendo relevante apenas no sentido de possíveis retornos financeiros. Ou seja, uma atividade que se realiza não pelo dinheiro, ou não só pelo dinheiro. O FdE radicaliza neste sentido porque não há, de fato, retorno financeiro, embora possam haver simbólicos. Por esta seara viso começar a compreender melhor o trabalhador da cultura no novo mundo do trabalho.

Este artigo divide-se então em três partes, além desta introdução. Na primeira, apresento a discussão sobre o “novo mundo do trabalho”, sobre a lógica do “novo capitalismo”, a partir dos autores supramencionados, fazendo referência ao produtor cultural neste contexto. Em seguida, apresento o FdE, sua formação, desenvolvimento e algumas de suas principais características. Por fim, concluo retomando minhas hipóteses, relacionando a atuação dos agentes do FdE com a lógica do mundo conexionista, sob a égide do trabalho imaterial, embora sua atividade dificilmente possa ser chamada de “capitalista”, na medida em que a organização não tem fins lucrativos e, de fato, por seu modus operandi impossibilitar a acumulação privada de capital econômico.

I

A partir do conceito de “trabalho imaterial”1 é possível identificar três dimensões da reestruturação do mundo do trabalho contemporâneo: um conceitual, outro organizacional, e um terceiro da perspectiva do sentido da ação do indivíduo.

O primeiro nível, conceitual, se refere ao questionamento da validade, ou pertinência, do uso da teoria econômica do valor-trabalho, especialmente a versão crítica de Marx. No caso, essa negação não seria da aplicação desta teoria ao capitalismo (inegável a qualquer autor com alguma relação mínima que seja com o marxismo ou vertentes intelectuais de esquerda (comum aos “teóricos do imaterial”)), mas à incapacidade da mesma dar conta da produção de valor no “novo capitalismo”, “cognitivo”, “informacional”, “em rede”,

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2378 fordista”. A tese2 é de que o valor das mercadorias se realiza predominantemente em seus atributos imateriais, tornando o tempo de trabalho que cria o valor imensurável. Isso não exclui a materialidade da produção de bens, duráveis ou não, apenas afirma que o que há de imaterial, simbólico, de branding, são preponderantes ao valor em relação à sua utilidade, sendo cruciais aqui os gastos com propaganda e marketing, o trabalho criativo de designer e etc. O tempo gasto para se conseguir uma “sacada” em propaganda é imensurável, assim como a qualificação dos trabalhadores pós-fordistas, do “capital humano” das empresas (GORZ, 2005), na medida em que esse capital é formado pelos conhecimentos e experiências adquiridos em grande parte no mundo da vida, do lazer e da sociabilidade “lúdica”.

O segundo nível, organizacional, trata do que Boltanski & Chiapello (2009) chamam de passagem da predominância da lógica industrial para a lógica de rede na organização das empresas e do mundo do trabalho, caracterizando a ascensão do “novo espírito do capitalismo”, a nova ideologia que leva ao engajamento (no sentido de dedicação apaixonada) dos trabalhadores à produção pós-fordista, ideologia no sentido de crenças e valores, ancorados em instituições e que orientam a prática, referendados por provas, sanções e recompensas. Segundo os autores, o capitalismo muda de “espírito” a partir da incorporação parcial das demandas dos movimentos de crítica, no caso os movimentos de contestação (em especial da juventude) dos anos 60 do século passado no ocidente, que alcançou, em diferentes matizes, nível global, e ficou conhecido como “Contracultura”3. Em meio a uma crítica mais ampla, voltada contra a sociedade consumista e tecnocrática, sobressaem as demandas por relações não-alienantes de trabalho, da valorização da subjetividade e do envolvimento do trabalhador em sua atividade produtiva, em oposição à lógica da “linha de montagem” do fordismo, além da crítica às formas sociais hierárquicas. Essas demandas são incorporadas às relações trabalhistas, chegando ao discurso do patronato em convergência com a ascensão do toyotismo. Em termos organizacionais temos, então, flexibilidade e polivalência em grupos de trabalho, hierarquias menos rígidas e fluxos de comunicação mais horizontais (facilitados pelas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação - NTIC), incentivo ao envolvimento do trabalhador e a contribuição do mesmo criativamente, relativizando, em teoria, a separação estrita entre concepção e execução.

2 Em geral os autores que trabalham com o conceito fazem referência ao próprio Marx, afirmando que o mesmo já teria antecipado os desdobramentos do mundo do trabalho expressos no conceito nos seus “Grundrisse” (MARX, 2011; CAMARGO, 2011; ANTUNES, 2009).

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2379 Ressaltando que essa apropriação e reestruturação do capitalismo foi a forma de legitimar a expansão generalizada do processo de precarização do trabalho. A expansão do setor de serviços e a informatização (via automação) mesmo das atividades industriais “clássicas”, como a produção automotiva4, também fazem parte deste processo.

Por fim, o terceiro nível expressa os outros dois na perspectiva do indivíduo, ou seja, o perfil esperado (e melhor recompensado) do trabalhador no pós-fordismo. Flexibilidade, mobilidade, adaptabilidade, capacidade de decisão e improviso, de cooperação, de trabalho em equipe, habilidade de comunicação, sociabilidade, desapego (a lugares e pessoas), envolvimento da personalidade e da subjetividade no trabalho, criatividade, habilidade em fazer contatos e expandir redes, são algumas das características que ensejam a conquista do patamar de “grandeza” no contexto normativo da “cidade por projetos” (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009; GORZ, 2005). São características que, em princípio, aumentariam a liberdade e a autonomia, na vida e no trabalho, refletindo a incorporação das demandas contraculturais:

Assim, por exemplo, as qualidade que, nesse novo espírito, são penhores de sucesso – autonomia, espontaneidade, mobilidade, capacidade rizomática, polivalência (em oposição à especialização restrita da antiga divisão do trabalho), comunicabilidade, abertura para os outros e para as novidades, disponibilidade, criatividade, intuição visionária, sensibilidade para as diferenças, capacidade de dar atenção à vivência alheia, aceitação de múltiplas experiências, atração pelo informal e busca de contatos interpessoais – são diretamente extraídos do repertório do maio de 68 (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009, p. 130)

Os autores enfatizam que o espírito do capitalismo busca motivar e engajar os agentes mais dinâmicos da economia, impulsionando assim a mesma. No caso do novo espírito, estes agentes seriam basicamente executivos e engenheiros, por sua posição e poder na divisão do trabalho, por seu papel decisivo na mesma. Porém, como afirma também Sennet (2005) ao falar do “Novo Capitalismo”, este estilo de vida que propicia uma maior liberdade e autonomia a esses agentes mais dinâmicos, que possuem os pré-requisitos para se tornarem notáveis, adquirirem grandeza – e que lhes permite não almejar a segurança de um emprego formal com carteira assinada, já que sua notabilidade lhe garante ser sempre requisitado em novos projetos – , se dissemina na sociedade como um todo como ideal que, de fato, não pode ser vivido e realizado por todos, que em sua maioria estaria bem melhor em um emprego formal e seguro,

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2380 e servindo assim para justificar (legitimar normativamente) a precarização do trabalho e a perda dos direitos trabalhistas, algo que para esta grande maioria é apenas prejuízo.

E onde entre a produção cultural neste contexto? No caso brasileiro, as políticas culturais a partir dos anos 90 estimulam a criação de um ambiente que é, literalmente, uma cidade por projetos, possibilitando, institucionalmente, a realização desta dinâmica, embora dificilmente (pra maioria) garanta que se possa viver da realização de projetos culturais financiados por editais. Assim, uma questão geral que norteia meu trabalho é se a produção cultural no Brasil, a partir dos anos 90, incorpora esta lógica em rede, esse contexto normativo da cidade por projetos, com seus atributos específicos que são recompensados e que levam à grandeza e ao sucesso.

Outra questão, interligada a essa, se refere à possibilidade de pleno envolvimento no trabalho, característica central ao “novo espírito do capitalismo”, e que decorre diretamente da crítica, no âmbito da Contracultura, à sociedade tecnocrática. A partir da pergunta de Gorz (2005) sobre como se ter pleno envolvimento em uma atividade cujos fins são indiferentes ao indivíduo, como o lucro do banco para o bancário, ao menos para o engajamento, a dedicação apaixonada (BOLTANKI & CHIAPELLO, 2009), desenvolvo a hipótese de que a produção cultural talvez possa, em princípio, atender efetivamente às demandas por envolvimento da subjetividade e por uma vida laboral mais plena e realizada, na medida em que se tem a Produção Cultural como trabalho significativo, ou gratificante em si.

II

Em minha pesquisa tenho trabalhado alguns aspectos que considero necessários para a compressão do surgimento e desenvolvimento da rede “Circuito Fora do Eixo”, como a discussão sobre a reconfiguração da indústria da música no Brasil, conjugando as novas tecnologias de distribuição, compartilhamento (e de pirataria), com o impacto substantivo, na produção cultural brasileira como um todo, das políticas culturais centradas em editais e leis de incentivo, a partir da criação da Lei Rouanet a nível federal, em um modelo replicado nos níveis estaduais e municipais, baseados ou em fundos próprios de fundações de cultura ou em isenção fiscal (como a Rouanet a partir do Imposto de renda); a discussão sobre movimentos sociais contemporâneas e as novas formas de ativismo, imbricadas também com as implicações neste plano das NTIC; o debate sobre formação de redes e laços de

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2381 reciprocidade, sobre experimentos de vida, trabalho e família contemporâneos, a partir da reapropriação recente da teoria da dádiva de Mauss; e uma discussão mais ampla sobre Contracultura (GRILLO, 2014a; 2014b; 2015a; 2015b).

Não há espaço aqui para desenvolver todos estes aspectos. Irei me ater, então, a algumas ponderações suscitadas por eles, ao tratar brevemente da formação, desenvolvimento e desdobramentos do FdE, apresentando algumas características e momentos importantes para a compreensão de sua trajetória.

Embora seu ato de fundação “oficial” seja realizado em dezembro de 2005, a compreensão da formação do FdE passa pela história do que pode ser considerado seu primeiro coletivo, o Espaço Cubo, de Cuiabá. As duas principais lideranças aqui, e que mantêm esse protagonismo na rede até hoje, são Lenissa Lenza e Pablo Capilé. Ambos são estudantes de comunicação em 2001, Lenissa na UFMT e Pablo na rede particular. Segundo Lenissa, que participava do movimento estudantil como liderança no C.A. de seu curso, Pablo a procurou no intuito de articularem possíveis ações conjuntas, aproximando os, normalmente, distantes mundos das faculdades públicas e particulares. A partir daí, e com a aproximação do fim de sua atuação direta no movimento estudantil, vislumbram algo para além da faculdade, algo que, segundo a mesma, permita levar adiante o que normalmente se encerra com a graduação acadêmica – a experimentação e o engajamento críticos e subversivos – e dar continuidade à produção de eventos “alternativos”.

O primeiro núcleo é formado por cinco pessoas, contando, além do mencionados, com músicos e designers. Não há referências teóricas, apenas amigos morando juntos e formando, sem usar o nome, um caixa coletivo. Quase uma república, porém a diferença é que não formam apenas um espaço de moradia e convivência de amigos, mas um empreendimento que deveria manter seus moradores, que exerciam inúmeras atividades na área de comunicação, e que iram se consolidar na produção de eventos regulares de música alternativa, além de assumirem a realização do festival Calango, anteriormente realizado por uma dupla de produtores amigos. Os locais de moradia, assim como o número de moradores, mudam algumas vezes, até se consolidarem em uma casa no centro da cidade, antes ocupada por uma produtora parceira, e já com a presença constante e parceria dos membros do coletivo. Para lá, espaço que possibilitava também a realização de shows, se transferiram, junto com os equipamentos de estúdio que possuíam, desde o começo (trocados por Pablo por seu carro), e que utilizavam para troca de serviços. Realizam então os “12 atos”, na

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2382 proposta de um evento mensal, e no qual trazem bandas que já eram (como Autoramas) ou se tornaram (como os Forgotten Boys) destaque no cenário independente nacional.

O Espaço Cubo forma o modelo de coletivo que será posteriormente adotado, total ou parcialmente, pelos outros coletivos do que vai ser a rede FdE. Nele estão presentes o caixa-coletivo (com retiradas por demandas, a partir de cartões compartilhados e registro das movimentações), a sede-moradia (os membros moram na sede do coletivo), a dedicação exclusiva, e o sentido militante da atividade coletiva.

Na segunda metade da década de 2000, temos no Brasil uma série de festivais independentes de grande e médio porte consolidados, possibilitados pelas políticas culturais de fomento vigentes, entre eles o Calango. No intuito de estabelecer contato com bandas independentes e outros produtores desta “cena alternativa”, os membros do Cubo começam a circular pelos festivais, a princípio mais próximos (como em Goiânia), e, posteriormente, pelo resto do país, para cuja comunicação contribuem de forma fundamental as NTIC.

A consolidação como rede e a atuação como movimento tem como marco os encontros presenciais nacionais, os “Congressos Fora do Eixo”. O primeiro é realizado em 2007, em Cuiabá, junto com o festival Calango, e conta com representantes de coletivos espalhados por todo o país. No segundo, realizado em Rio Branco (AC) no ano seguinte, tem-se a presença de aproximadamente 100 pessoas (o dobro do anterior). É fundamental aqui a presença de membros do “Massa Coletiva”, de São Carlos, já presentes no anterior, mas, desta vez, acompanhados do professor da UFSCAR, e especialista em economia solidária, Ioshiaqui Shimbo, que sugere a criação coletiva de uma carta de princípios e de um regimento interno5, levando a uma sistematização da ação da rede.

A carta de princípios reafirma os valores do colaborativismo e da descentralização, da lógica hacker (pautadas no código aberto e no software livre), sua postura anti-hegemônica aos “modos de produção, circulação e fruição com ênfase no campo da cultura”, o fomento da produção criativa e autoral, valorização do ser humano e “da igualdade de condições e da polivalência individual e coletiva”, a busca por “equilibrar trabalho manual e intelectual”, o fomento a criação de moedas sociais, a organização experimental e cambiante da rede, as práticas de comunicação livre, a proposta de se “criar ferramentas de formação e qualificação dos agentes”, etc. Forma-se, assim, um sistema orgânico e coeso de

5 Ambos estão disponíveis, junto com um cronograma desde 2001 de momentos, números e eventos considerados mais importantes pela rede, no seu site oficial <http://www.foradoeixo.org.br>.

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2383 valores e princípios, e que reflete as demandas assimiladas pela cultura ocidental a partir do movimento de Contracultura (como exposto na parte I). Isso em uma atividade que, ao contrário dos setores avançados da economia que incorporam essas demandas na formação do “novo espírito do capitalismo”, não possui fins lucrativos, e que impossibilita a acumulação privada e não realiza uma acumulação coletiva de capital, ao menos econômico. O regimento interno, aprovado em 2009, serve hoje como documento histórico da trajetória do FdE, na medida em que a organização da rede se encontra atualmente transformada, mais enxuta, embora mantendo os mesmos princípios. Ao invés das inúmeras frentes gestoras (simulacros das instituições “mainstrem”, como Banco FdE, Partido FdE, Mídia FdE e Universidade Livre FdE) e temáticas (Música, Palco, Literatura Audiovisual), a divisão está mais entre o núcleo de comunicação e o núcleo de produção, embora ambos possam partilhar as mesmas pessoas, e a referência e recurso às frentes mais específicas ainda possa ser feita.

Antes disso, em 2011, é possível observar um momento de inflexão na rede, que passara a dar mais ênfase e fortalecer-se como movimento social, sem deixar de lado sua atuação como circuito cultural (mantendo até hoje um circuito de festivais por todo o país, a Rede Brasil de Festivais6. Isso se depreende da própria fala de Capilé no III Congresso FdE (outubro de 2010), em Uberlândia: “estamos fortes como circuito cultural, mas fracos como movimento social”. Tratei detidamente desta questão alhures (GRILLO, 2014b; 2015a; 2015b), em interpretação próxima a desenvolvida por Savazoni (2014). Este define o FdE como uma “rede político cultural”, afirmando que ela passa a realizar mais plenamente suas características a partir deste momento em que passa a fortalecer sua atuação como movimento social, se aproximando de outro movimentos, participando da organização e articulação de uma série de atividade em rede, como as marchas da liberdade e os movimentos Existe Amor em SP (contra a candidatura de Russomano a prefeitura de SP) e Mobiliza Cultura (contra a presença de Ana de Holanda como ministra da cultura). A minha interpretação difere na medida em que dou mais ênfase na continuidade da inserção do FdE no mercado de bens culturais, chamado independente, ou seja, sua atuação como circuito cultural e como uma rede de produtores culturais, desenvolvendo projetos principalmente (mas não só) em torno de festivais de música (ou de artes integradas) independente (s).

Utilizo então, para definir o FdE, o termo rede de militância-laboral, para acentuar o fato de que em sua atuação há uma indistinção entre militância e atividade produtiva. A

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2384 diferença para agentes de outros movimentos que tem dedicação exclusiva à causa é que no FdE a própria atividade militante se realiza na produção de bens ou eventos que se inserem em um mercado, no caso, de bens culturais7.

Os agentes do FdE apresentam uma identidade militante com a rede, assumindo sua atividade como uma luta, e como algo que envolva toda a sua vida (como manifesto na expressão recorrente “vida FdE”). Possuem ampla mobilidade, em geral entre os festivais, com deslocamentos seja por motivo de ajuda na produção, seja na cobertura, assim como para a realização de atividade de formação (em todos os tipos de atividades desenvolvidos na rede). No período de expansão, algumas de suas lideranças realizavam as chamadas “colunas”, fazendo contato com pessoas ligadas à cultural nas mais diversas cidades, em especial no interior, no intuito de apresentar sua iniciativa e interligar mais pessoas, grupos e/ou coletivos à rede, ou mesmo apresentando o modelo de coletivo por eles utilizado.

III

A partir do exposto, concluo retomando e aprofundando minhas hipóteses de trabalho suscitadas pela pesquisa com o FdE, e que se incluem em um projeto mais amplo de estudo da produção cultural no Brasil contemporâneo, visando o desenvolvimento de uma metodologia de estudo do “trabalhador da cultura” hodierno.

Fica claro no perfil dos agentes do FdE, e em seus valores professados, as características e demandas defendidas pela Contracultura, e assimiladas pelo novo espírito do capitalismo. A participação no FdE engendra o desenvolvimento, percebido como uma transformação pessoal e intersubjetiva, das habilidades mais valorizados no contexto do trabalho imaterial e do que Boltanski & Chiapello (2009) chamam de “ambiente normativo da cidade por projetos”. Constitui-se em uma organização em rede ímpar, na medida em que congrega atividade produtiva e engajamento político/cultural, além da defesa de uma ethos, um estilo de vida que se propõe contra-hegemônico, embora, como visto, em muitos aspectos próximo dos setores mais dinâmicos da economia, tendo, porém, outro sentido para seus agentes.

Dois pontos são importantes aqui: (1) o sentido mais pleno da realização de uma atividade cujo fim é em si valorado, e não apenas um meio para se adquirir capital ou poder:

7 Um movimento como o MST, por ex., tem fins econômicos e se insere em um mercado, mas nele há uma separação entre o momento de militância e o momento de produção, no caso, agrícola.

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2385 a produção cultural; (2) uma rede que radicaliza esta tendência possível à atividade, na medida em que se constitui em um movimento social e é imbuída de um sentido militante em sua atividade, mesmo as mais específicas de produção.

Muitas questões para o tema proposto decorrem daí. Um projeto seguinte é diferir os diferentes tipos de produtor cultural no contexto do Brasil recente, no qual se observa a ascensão e profissionalização desta categoria, e da formação de um “saber” específico e especializado em “gestão cultural”, o que é atestado pelo surgimento e difusão de cursos dedicados à área, seja em universidades, escolas técnicas, ou em organizações e por produtores particulares. Nesse sentido, tenho já realizado algumas atividades de uma pesquisa para identificar esses diferentes tipos, observando o produtor mais estritamente voltado para a produção como negócio, e em outro extremo os produtores militantes, que tomam a produção como atividade militante, e entre ambos os produtores que podem de forma mais ou menos acentuada incorporar o sentido militante, de realização dos fins de uma causa, ou do fomento da cultura como uma causa, como produtores, com ou sem vínculos com movimentos, que participem de conselhos de cultura.

Mais do que concluir ou definir, peremptoriamente, algo, este trabalho, desta forma, visa levantar uma série de questões e possibilidades de pesquisa para o debate, ensejando aplainar uma seara para um longo projeto que possa contribuir para uma melhor compreensão e valorização da produção cultural no Brasil contemporâneo.

Referências

ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2011.

BARCELLOS, R. Por outro eixo, por outro organizar: a organização da resistência do Circuito Fora do Eixo no contexto cultural brasileiro. 2012, 348f. Tese (doutorado em administração) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

BECKER, H. Mundos da Arte. Lisboa: Horizonte, 2008.

BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CALHOUN, C. “New Social Movements” of the early nineteenth century. Social Sciense History, v. 13, n. 3, 1993.

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