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Polêmicas: essência e dualidade

ENGELS E LUKÁCS

2. Polêmicas: essência e dualidade

O trabalho tal qual tratamos até aqui não deve, por modelo, ser, simplesmente, generalizado de forma mecânica, o que corresponderia à sua fetichização. Determinadas vertentes do marxismo, propriamente aquela marcada pelo estruturalismo, estabeleceram, a partir do trabalho, a economia enquanto única e maior determinação, fator que gerou longas e insolúveis controvérsias. Isto é muito distinto da postura que afirmamos anteriormente, considerar a centralidade ontológica do trabalho e sua condição como momento predominante.

2511 Dentre as diversas polêmicas reunidas em torno da ontologia do trabalho, destacamos a questão da essência. Esta foi muitas vezes tomada como uma natureza que antecede o indivíduo e que, além disso, se expressa neste indivíduo ao longo do desenvolvimento histórico. Não parece ser essa, no entanto, a concepção de essencialidade de Marx e de Lukács. Pois bem, o trabalho é ou não é essência do ser social na ontologia materialista? Não e sim.

Não, no sentido da essência em que acabamos de descrever. Enquanto substância que antecede a própria existência ou enquanto aquela que corresponderia à própria natureza do ser. Na análise de Lukács (2013), estas seriam leituras de uma essência metafísica ou existencialista. Por isto, para o autor a essência só pode ser compreendida em sua dimensão decisivamente real, prática: isto é, enquanto essência concreta.

Como o trabalho aparece como gênero do devir homem do homem, a sua essência, ou seja, a interação ininterrupta entre ser natural e ser social, o pôr teleológico que coloca essa interação em movimento real e, com ela, o papel condutor da consciência em atos que realizam tais conexões dinâmicas, todos esses componentes do complexo devem ter o efeito determinante também para o ser do homem (LUKÁCS, 2013, p. 289).

A essência concreta é, antes de tudo, uma essência subordinada à autoprodução do homem a partir do trabalho. Neste sentido, é correto afirmar o trabalho enquanto fundamental, indispensável, condição sine qua non para o ser-em-si do homem. Mas é incorreto afirmar que esta essencialidade lhe antecede, isto é, uma essência a-histórica. A essência concreta é conformada a partir de “[...] atos concretos de um homem concreto dentro de uma parte concreta de uma sociedade concreta” (LUKÁCS, 2013, p. 284). Desta forma, o autor reafirma as bases sobre as quais está sustentada uma das mais conhecidas afirmativas de Marx, em A Ideologia Alemã (2014), quando afirma que a consciência não determina o ser, pelo contrário, o ser, a vida, que determina a consciência. Em suma, é o conjunto de alternativas, negações e afirmações das alternativas, experiências e práticas que formam, ininterruptamente, o ser, enquanto tal.

Decorrente desta é a questão da dualidade envolvendo indivíduo e sociedade. Melhor dizendo, qual dos polos realizaria preponderância sobre o outro e que, por consequência, seria ponto de partida para a análise? Questão esta que se coloca desde a chamada Sociologia Clássica (Marx, Durkheim e Weber) até a Sociologia Contemporânea e suas mais recentes contribuições (Bourdieu e Giddens). Tratamos, portanto, do debate que envolve o

2512 Individualismo Metodológico, cujo principal expoente é Weber, e o Coletivismo – ou Holismo – Metolodológico, notadamente Durkheim, Parsons e, para alguns autores, também Marx4.

A distinção fundamental entre as duas correntes é que enquanto uma, o individualismo metodológico, parte a análise do ponto de vista do indivíduo particular, utilizando de forma central categorias como a de ação social, a outra, coletivismo metodológico, parte sua análise a partir da supremacia da sociedade sobre o indivíduo, utilizando centralmente categorias como o fato social. Pierre Bourdieu e Anthony Giddens esforçam-se para superar esta polarização com as teorias do estruturismo e estruturação, respectivamente. Salvo as distinções e particularidades de cada construção teórica, de maneira geral, tem em comum a imbricação entre ação individual e estrutura histórica. Isto é, a importância da ação do indivíduo na transformação da realidade e da própria estrutura, mas também, por outro lado, reforçando o papel da estrutura enquanto aquela que exerce influência e delimita o campo de ação deste indivíduo (DOMINGUES, 2001).

O que objetivamos apontar é como a partir concepção de essência concreta do qual tratamos, Lukács (2013) superava a dicotomia indivíduo x sociedade. Dialogando com sua época histórica, estabelece uma crítica às correntes filosófica das quais foi contemporâneo:

Com efeito, é tão falso pensar que há uma substância não espacial e não temporal da individualidade humana, que pode ser modificada apenas superficialmente pelas circunstâncias da vida, quanto é errôneo conceber o indivíduo como simples produto do seu meio (LUKÁCS, 2013, p. 284).

Trata-se, portanto, da formação da individualidade humana, que para ele não é nem apenas substância, tampouco reles produto do meio. Realiza a crítica, com isto, primeiramente para a perspectiva existencialista, onde o autor caracteriza a concepção de essência desta corrente como “entidade mecânica” e “rígido-abstrata”. Por outro lado, também se opõe ao neopositivismo que, em suas últimas consequências, faz da essência um objeto que “praticamente não oferece resistência a qualquer manipulação” (Lukács, 2013, p. 284).

Em suma, a dualidade entre indivíduo e sociedade é tratada como falsa antinomia. Para a superação crítica desta perspectiva, Lukács (2013) propõe o

4 Existe um grande debate acadêmico sobre a classificação de Marx como “Coletivista Metodológico”, não consideramos esta compreensão como acertada, entendendo a especificidade do materialismo histórico frente a estas vertentes da sociologia.

2513 [...] tertium datur ontológico, o nosso conceito mais geral e simultaneamente histórico de substância revela-se sobre um novo lado. Pois já vimos que o “elemento” imediato do acontecimento histórico- social, que, apesar de sua complexidade interna, não pode mais ser decomposto como componente de complexos sociais justamente em sua dimensão ontológica, mas que deve ser tomado assim como é, em seu ser- propriamente-assim, nada pode ser além da respectiva decisão alternativa de um homem concreto (LUKÁCS, 2013, p. 284).

Ou seja, neste tertium datur o ser social se constitui e se constrói em processo nas tomadas de decisões alternativas, que se encadeiam e se cruzam de infinitas maneiras. O que ocorre para o homem enquanto gênero, também ocorre para o homem particular, ele confere a si mesmo a sua individualidade dentro da sociedade concomitantemente com o processo de trabalho. Sobre o papel do trabalho na constituição do indivíduo, expõe:

Como toda alternativa real é concreta, mesmo que conhecimentos, princípios e outras generalizações tenham um papel decisivo na resolução concreta, esta conserva tanto subjetiva como objetivamente o seu ser- propriamente-assim concreto, atua também como tal sobre a realidade objetiva e, a partir daí, tem o seu peso e exerce a sua influência, antes de tudo, sobre o desenvolvimento do sujeito. Aquilo que chamamos de personalidade de um homem constitui tal ser-propriamente-assim de suas decisões alternativas (LUKÁCS, 2013, p. 285).

Com isto, Lukács analisa este processo de formação do indivíduo a partir da perspectiva da totalidade. Considera, portanto, os determinados limites, tanto no que se refere à barreira natural que tratamos no subcapítulo anterior, quanto do lugar em que parte na história. Em consonância com a afirmação de Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (2011a) – os homens fazem sua própria história, mas a fazem sob condições históricas determinadas previamente – Lukács não compreende indivíduo e sociedade enquanto determinações antagônicas, pelo contrário entende como unidade em transformação dialética.

Por fim, é importante ressaltar que não nos cabe, nem tampouco é nossa pretensão, esgotar o debate do fim ou da permanência da centralidade do trabalho. O que buscamos, muito brevemente, é resgatar e traçar linhas gerais de fundamentação do trabalho enquanto aquele fundante do ser social. Isto é, recuperar a ontologia materialista como forma de refutar o relativismo ontológico tão presente tanto em André Gorz como em outros autores, que muito repercutem na teoria social contemporânea. Que possamos, ainda, a partir do debate da centralidade do trabalho continuar avançando no método de análise da realidade e fornecendo explicações para as constantes transformações pelas quais passa a nossa sociedade.

2514 Referências

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_____. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo : Boitempo, 2009.

_____. Trabalho sem Positividade, Valor sem Valor e Imaterialidade sem Materialidade. O Social em Questão, pp. 15-28, 2011.

CARCANHOLO, Reinaldo & PRIEB, Sérgio. O trabalho em Marx. In: CARCANHOLO, R. (org.) Capital: essência e aparência. São Paulo: Expressão Popular, v. 1, 2011.

DOMINGUES, João Marcelo. Teorias sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

ENGELS, Friedrich. O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem. In: ANTUNES, R. (org.) A Dialética do Trabalho: Escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

GORZ, Andre. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense- Universitária, 1982.

_____. Misérias do presente, riqueza do possível. São Paulo: Annablume, 2004. _____. O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.

_____. Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo: Annablume, 2007. HABERMAS, Jurgen. The Theory of Communicative Action. Londres: Polity, v. II, 1992. KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

LUKÁCS, Gyorgy. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do

homem. Temas de Ciências Humanas, tradução de Carlos Nelson Coutinho, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, n. 4, p. 1-18, 1978.

_____. Para uma Ontologia do Ser Social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

MÉDA, Domenique. Società Senza Lavoro: per uma nuova filosofia dell’ocupazione. Milão: Feltrinelli, 1997.

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OFFE, Claus. Capitalismo Desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. São Paulo: Brasiliense, 1989.

RIFKIN, Jeremy. O Fim dos Empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995.