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O controlo das comunicações eletrónicas do trabalhador

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Academic year: 2020

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Universidade do Minho

Escola de Direito

Daniela Salgueiro de Carvalho

setembro de 2017

O controlo das comunicações eletrónicas

do trabalhador

Daniela Salgueiro de Carvalho

O controlo das comunicações ele

trónicas do trabalhador

(2)

Daniela Salgueiro de Carvalho

O controlo das comunicações eletrónicas

do trabalhador

Trabalho efetuado sob a orientação da

Doutora Teresa Alexandra Coelho Moreira

Dissertação de Mestrado

Mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa

Universidade do Minho

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DECLARAÇÃO

Nome: Daniela Salgueiro de Carvalho

Endereço eletrónico: daniela.scarvalho@gmail.com Telefone: 912386479 Número do Bilhete de Identidade: 13951774

Título dissertação: O controlo das comunicações eletrónicas do trabalhador Orientadora: Doutora Teresa Alexandra Coelho Moreira Ano de conclusão: 2017 Designação do Mestrado: Direito dos Contratos e da Empresa

1. É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO INTEGRAL DESTA DISSERTAÇÃO APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE;

Universidade do Minho, 27/09/2017

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Agradecimentos

Pelo interesse demonstrado e pelo apoio manifestado, pelos conselhos e pelo acompanhamento sólido, agradeço à Professora Teresa Moreira, orientadora desta dissertação de mestrado.

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O controlo das comunicações eletrónicas do trabalhador

O desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação tem vindo a mudar vários setores e a forma como as pessoas interagem. A relação laboral não é exceção, sendo que nos últimos anos o mundo do trabalho tem experienciado uma tremenda revolução.

De facto, as tecnologias alteraram e melhoraram os métodos de trabalho, assim caraterizados pela eficiência e pela agilidade. Contudo, o uso das ferramentas tecnológicas levanta questões relevantes, relacionadas com a privacidade dos trabalhadores e com o controlo eletrónico do empregador. A privacidade, uma importante dimensão na vida das pessoas, enfrenta novas desafios, já que a monitorização que estas recentes formas de controlo permitem é bastante intrusiva. Entre as novas tecnologias de informação e comunicação utilizadas pelos trabalhadores, o e-mail destaca-se, sendo um rápido e útil meio de comunicação, mas também uma forma de o empregador exercer o seu controlo. Consequentemente, é importante saber que limites se devem estabelecer com vista a proteger a privacidade e o sigilo das comunicações a que os trabalhadores têm direito no local de trabalho e se o empregador pode controlar o e-mail dos trabalhadores.

Desta forma, a temática da privacidade dos trabalhadores e do controlo do empregador apresenta-se como uma importante questão, em todo o mundo e em Portugal.

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The control of the employee's electronic communications

The development of new information and communication technologies has been changing many sectors and the way the people interact. The work relationship is not an exception and in the last years the world of work has experiencing a tremendous revolution.

In fact, the technologies modified and improved working methods, thus characterized by efficiency and agility. However, the use of technological tools raises relevant questions, related to employees’ privacy and electronic control of the employer. Privacy, an important dimension of people’s lives, faces new challenges, since the surveillance that these recent forms of control allow is quite intrusive. Among the new information and communication technologies used by workers, the e-mail excels, being a quick and useful mean of communication, but also a way of the employer carries out its control.Consequently, it is important to know what limits should be established to protect the privacy and the secrecy of communications that employees are entitled in the workplace and if the employer can monitor employees e-mail.

This way, the theme of worker’s privacy and control of the employer presents itself as an important question, all over the world as well as in Portugal.

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Índice

Introdução………. 8

CAPÍTULO I – A PRIVACIDADE………..………….. 10

1. A privacidade – considerações iniciais……… 10

2. O contributo de S. Warren e L. Brandeis………. 14

3. A influência das NTIC e o impacto da sociedade da informação……… 18

4. A tutela da privacidade no ordenamento jurídico português……… 21

4.1. A tutela constitucional da privacidade……….. 22

4.2. A tutela civil da privacidade……….. 28

4.3. A tutela laboral da privacidade……….. 34

4.4. A tutela penal da privacidade……… 37

5. A tutela da privacidade no Direito Comparado……… 39

5.1. A tutela da privacidade nos Estados Unidos da América………….. 40

5.2. A tutela da privacidade no Reino Unido……… 45

5.3. A tutela da privacidade na Alemanha……… 47

5.4. A tutela da privacidade em França……… 50

5.5. A tutela da privacidade em Espanha………. 53

5.6. A tutela da privacidade em Itália………... 55

6. Instrumentos de tutela da privacidade………. 57

6.1. Instrumentos de Direito internacional……….. 58

6.2. Instrumentos de Direito europeu………... 59

CAPÍTULO II – O PODER DE CONTROLO DO EMPREGADOR……… 62

1. Os poderes do empregador……… 62

2. O poder de controlo………... 67

2.1. O poder de controlo e as NTIC……….. 70

2.2. Os requisitos do poder de controlo……… 75

2.3. Os limites do poder de controlo………. 79

CAPÍTULO III – AS COMUNICAÇÕES ELETRÓNICAS DO TRABALHADOR…. 83 1. As NTIC e as comunicações no contexto laboral……….. 83

2. As comunicações eletrónicas do trabalhador – o correio eletrónico……….. 87 2.1. O controlo do correio eletrónico no ordenamento jurídico português…. 93

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2.2. O controlo do correio eletrónico no Direito Comparado – breve

referência………. 100

2.2.1 O controlo do correio eletrónico nos Estados Unidos da América……….. 100

2.2.2. O controlo do correio eletrónico no Reino Unido…………. 106

2.2.3. O controlo do correio eletrónico na Alemanha………... 109

2.2.4. O controlo do correio eletrónico em França……….. 111

2.2.5. O controlo do correio eletrónico em Espanha………. 113

2.2.6. O controlo do correio eletrónico em Itália……….. 116

3. O controlo do correio eletrónico………... 117

3.1. A privacidade no local de trabalho……… 118

3.2. Correio eletrónico profissional e correio eletrónico pessoal…….. 121

3.3. O controlo do correio eletrónico……… 123

Conclusões……… 134

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Lista de abreviaturas e siglas

CC – Código Civil

CEDH - Convenção Europeia dos Direitos do Homem

CNIL - Commission Nationale de L'informatique et des Libertés CNPD - Comissão Nacional de Proteção de Dados

CP – Código Penal

CPP – Código de Processo Penal

CRP – Constituição da República Portuguesa CT – Código de Trabalho

DPA - Data Protection Act HRA - Human Rights Act 1998

LOPD - Lei Orgânica de Proteção de Dados de Caráter Pessoal NTIC – Novas Tecnologias de Informação e Comunicação

OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico POP - Post Office Protocol

RIPA - Regulation of Investigatory Powers Act SMTP - Simple Mail Transport Protocol STJ – Supremo Tribunal de Justiça TC – Tribunal Constitucional

TEDH – Tribunal Europeu dos Direito do Homem TCP/IP - Transport Control Protocol/Internet Protocol UE – União Europeia

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Introdução

A relação de trabalho tem alterado os seus contornos devido à evolução tecnológica que se tem vindo a operar há vários anos. Este desenvolvimento levanta novas perguntas, que carecem de esclarecimento, devido à importância que comportam. Assim, perante as novas possibilidades de controlo da prestação laboral, impulsionadas pelas novas tecnologias, pretendemos saber se é admissível que a entidade empregadora possa controlar as comunicações eletrónicas do trabalhador, questão que convoca a privacidade do trabalhador e o poder de controlo do empregador.

Neste sentido, começaremos por explorar a privacidade, direito que se vê ameaçado com a monitorização que pode ser levada a cabo em ambiente laboral. Veremos a relevância que assume na vida do indivíduo e de que forma tem sido redefinida devido à utilização crescente da tecnologia. Sendo essencial para todas as pessoas, é perspetivada de diversas formas nos vários ordenamentos jurídicos, sendo-lhe conferida tutela a nível internacional e a nível europeu.

De entre os vários poderes que podem ser reconhecidos ao empregador, os quais merecerão análise, destacamos o poder de controlo. Esta faculdade, que permite conferir a correta realização da prestação de trabalho, tem também enfrentado uma profunda alteração. De facto, as novas tecnologias permitem um controlo mais amplo e incisivo das comunicações do trabalhador, pelo que se torna importante uma reflexão a este propósito, bem como a determinação dos requisitos e dos limites deste poder, que passa, necessariamente, pela aplicação dos princípios da proporcionalidade, da boa fé e da transparência.

Por fim, concentraremos a nossa atenção nas comunicações eletrónicas do trabalhador. Neste ponto, a utilização da informática nos processos laborais permitiu inúmeras vantagens a nível comunicacional. Justifica-se uma exploração detalhada do correio eletrónico, meio de comunicação empresarial por excelência, e procederemos, também, à análise do seu controlo em diferentes ordenamentos jurídicos. Convocaremos diversas questões, que pretendem ser um contributo para responder à possibilidade de a entidade empregadora efetuar o controlo do correio eletrónico do trabalhador.

No fundo, abordaremos o direito à privacidade e o poder de controlo, interesses opostos na relação laboral que une trabalhador e empregador, terminando por tratar das comunicações eletrónicas em contexto de trabalho, tema que ligará os dois interesses em oposição e que servirá para estabelecer o nosso entendimento.

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Ao longo da nossa dissertação, procuraremos comparar as indicações relativas aos temas tratados quer no plano nacional, quer ao nível do Direito Comparado. Para isso, teremos em conta diferente legislação e jurisprudência, que nos mostrarão os pontos relevantes quanto aos assuntos tratados e nos orientarão em busca de respostas.

Consideramos que estas questões são de grande importância, já que o trabalho é parte essencial na vida do indivíduo, enquanto pessoa e enquanto trabalhador, e que a definição de regras é vital para o bom funcionamento da empresa, pelo que se justifica a reflexão e a procura de soluções. Por outro lado, acreditamos que os temas de que nos ocuparemos são bastantes atuais. A verdade é que a incessante evolução tecnológica produz alterações significativas e constantes no mundo laboral, que enfrenta novos desafios e novas situações, como mostram o recente acórdão da Relação do Porto, de 15/12/2016 e o caso europeu Bărbulescu v. Romania, com decisões datadas de 12/01/2016 e 05/09/2017, que teremos oportunidade de analisar.

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CAPÍTULO I – A PRIVACIDADE

1. A privacidade – considerações iniciais

A privacidade é um conceito marcado por uma certa dificuldade na delimitação do seu conteúdo e na definição dos seus limites, sendo que os ordenamentos jurídicos divergem no que toca a estas questões1. Na base desta árdua tarefa de definição do conceito de privacidade, podemos apontar fatores objetivos e fatores subjetivos2. Quanto aos fatores objetivos, primeiramente destaca-se a atuação incisiva e constante do Estado, realçando-se o direito do Estado à informação. Por outro lado, a liberdade de expressão e imprensa é uma realidade que as democracias ocidentais consagram e praticam. Defende-se a tutela jurídica dos cidadãos no que toca ao Defende-seu interesDefende-se em conhecer, o que, naturalmente, choca com a tutela jurídica reservada ao interesse de os cidadãos em não dar a conhecer. Em terceiro lugar, face ao desenvolvimento das técnicas de captação e de armazenamento das informações, revela-se complexa a construção de um direito à privacidade. No que toca aos fatores subjetivos, o que está aqui em causa é que cada pessoa, considerada isoladamente ou como integrante de um grupo social, tem a sua conceção própria de privacidade, sendo que o que para determinada pessoa pode ser uma invasão à sua privacidade, para outra poderá já não o ser.

Apesar de todos estes constrangimentos, quando confrontados com a questão sobre o que entendemos por privacidade, podemos esboçar linhas comuns. Assim, sendo a dignidade da pessoa humana a base de diferentes ordenamentos jurídicos3, tal implica o reconhecimento e a atribuição de diferentes direitos. Entre estes direitos, encontra-se o

1 Como refere PAULO MOTA PINTO, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 69, Coimbra, 1993, p. 504 a tarefa de definir rigorosamente privacidade é “parece raiar os limites

do impossível”. JOHN D. R. CRAIG, Privacy and Employment Law, Hart Publishing, Oxford, 1999 entende que, uma vez que a privacidade é um conceito dinâmico e em evolução, é preferível ter uma definição geral da mesma, que possa ir acomodando essa mesma evolução.

2 Neste sentido JANUÁRIO GOMES, “O problema da salvaguarda da privacidade antes e depois do computador”, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 319, 1982, pp. 31-32

3 Na Constituição Portuguesa, a importância da dignidade é enaltecida logo no artigo 1º, referindo-se que “Portugal é uma República

soberana, baseada na dignidade da pessoa humana (…)”. Para J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da

República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007-2010, p. 198, tal significa que o poder da República

Portuguesa se baseia em duas ideias: primeiro, está a pessoa humana e depois a estrutura politica; a pessoa é sujeito, nunca objeto, sendo perspetivada como o fim das relações jurídico-sociais. Sobre a consagração e a evolução da dignidade humana ver TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade dos Trabalhadores e as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação: contributo

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direito à privacidade4. A pessoa terá dois interesses primordiais: enquanto indivíduo,

interesse numa existência livre e, enquanto cidadão, interesse no livre desenvolvimento da vida em relação. Neste sentido, o direito à privacidade encontra-se relacionado com os dois referidos interesses, sendo uma realidade decorrente da dignidade humana5.

Desta forma, numa primeira aproximação, podemos destacar duas ideias essenciais – a privacidade está intimamente relacionada com a dignidade do Homem e implica a existência de um reduto da pessoa em relação às demais6. É a ideia de um certo refúgio, que confere à pessoa humana uma sensação de proteção em relação a aspetos que quer ver cometidos a um âmbito próprio, afastado da exposição alheia. Estudos no ramo da Biologia aplicada comprovaram que uma intimate distance ou social distance, ou seja, o estar-se isolado, afastado dos demais, é algo indispensável, não só para o ser humano, mas inclusivamente para todos os seres vivos7. Nas palavras sugestivas de ANTONINO CATAUDELLA8, “a fruição de um período de isolamento, material ou psicológico, é uma exigência biologicamente inerente ao Homem”.

Se a privacidade é, então, vista como uma necessidade inerente à pessoa humana, é natural que o seu reconhecimento remonte a tempos históricos antigos e a civilizações bastante díspares em termos axiológicos, encontrando-se referências à privacidade na Bíblica, no Corão, em leis judaicas, no budismo e nas culturas chinesas e hindu9.

Interessante é notar que a noção de privacidade é variável ao longo dos diferentes períodos históricos, seja por fatores como a transformação da natureza da família, a separação entre o trabalho e o lar, novas atitudes e conceções em relação ao corpo, o aparecimento de novos sítios públicos e de convívio, entre outros10.

Assim, remontando à Grécia antiga, a esfera da pólis e a vida em sociedade eram muito valorizadas, pelo que não se identificava uma divisão entre o que se entendia como sendo público e como sendo privado e, consequentemente, era difícil reconhecer uma

4 Neste sentido JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito civil: teoria geral, vol. 1, Coimbra Editora, 1997, pp. 63-64. Como destaca

GUILHERME DRAY, O Princípio da Proteção do Trabalhador, Almedina, 2015, p. 163, “a Pessoa é a base de toda a ordenação jurídica – é o ente substancial de onde parte o Direito”.

5 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit., pp. 105-106

6 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, “Da esfera privada do trabalhador e o controlo do empregador”, in Studia Iuridica,

n.º 78, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 61-62

7 JANUÁRIO GOMES, op. cit., p. 24.

8 “Riservatezza (diritto alla)”, in Enciclopedia Giuridica Treccani, vol. 27, Roma, Itália, 1991, p. 1 apud TERESA ALEXANDRA

COELHO MOREIRA, última op. cit. p. 62

9 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit., p. 110

10 Neste sentido DANIEL J. SOLOVE, “Conceptualizing privacy”, in California Law Review, vol. 90, nº 4, Julho, 2002, in

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esfera privada a cada pessoa11. Ainda assim, ARISTÓTELES defendia a existência da

oikos, que se caraterizava por ser a esfera privada ligada à casa de cada pessoa, repugnando a intromissão nesta dimensão. De facto, para o autor, um dos meios utilizados pelos tiranos é procurar que aqueles que residem na cidade estejam sempre à vista, por forma a que seja difícil ocultarem as suas ações. Daqui se pode retirar a relação estreita entre liberdade e privacidade12.

Na Roma antiga, a privacidade não era considerada enquanto princípio orientador da legislação da época. No entanto, tal não significa que a ideia deste direito e mesmo as suas implicações filosóficas fossem ignoradas. SÉNECA falava em homem “exterior” e “interior”, sendo que esta contraposição trazia consigo uma ideia de privacidade13.

Se entendermos a liberdade religiosa como uma manifestação da privacidade, podemos afirmar que o Édito de Milão, de 313, pelos Imperadores Constantino e Licínio, foi um grande passo, uma vez que conferiu a todas as pessoas a liberdade de professar a sua religião14.

Na etapa pré-moderna, o pensamento cristão, mais concretamente, com Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, trouxe um importante contributo. Santo Agostinho foi o primeiro teórico do direito à intimidade propriamente dita, sendo considerado por alguns como o primeiro homem moderno15. Já no século XIII, São Tomás de Aquino,

pioneiro da filosofia escolástica, entendia a intimidade como autoconsciência e só quando aquela fosse trazida a público pela própria pessoa é que poderia ser valorada pelos outros, se fosse revelada em segredo a outra pessoa, deveria ser respeitada16.

Durante a Idade Média, conjugaram-se as técnicas do direito romano e do direito comum, o zelo germânico por aquilo que é próprio, e a ideia, de raízes cristãs, da dignidade humana17 que, como vimos, tem um papel crucial na edificação do conceito de privacidade.

11 FRANCISCO CORONEL CARCELÉN, La Proteccíon del Derecho a La Vida Privada en Internet y otros médios de comunicación electrónicos, 2002, in http://www.alfa-redi.org/sites/default/files/articles/files/coronel.pdf, p. 6. Para mais desenvolvimentos ver

CARLOS RUIZ MIGUEL, La Configuración Constitucional del Derecho a la Intimidad, Editorial de la Universidad Complutense de Madrid Madrid, 1992, in http://eprints.ucm.es/2164/1/S0002101.pdf, pp. 12-17

12 CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., p. 16

13 Para mais desenvolvimentos sobre como era perspetivada a privacidade na Roma antiga e o pensamento de Séneca, considerado

percursor de Santo Agostinho, ver CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., pp. 19-23

14 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit. p. 111 15 Neste sentido CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., p. 28

16 FRANCISCO CORONEL CARCELÉN, op. cit., p. 7 e TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 111 17 Para mais desenvolvimentos CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., pp. 31-32

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Na Idade Moderna, podemos destacar o reconhecimento normativo da inviolabilidade do domicílio e do segredo das comunicações, em alguns textos jurídicos18.

O período do Renascimento foi marcado pela importância do papel do Estado e pelo aumento dos seus poderes, sendo conferido um grande destaque à vida pública. Por outro lado, graças à difusão da alfabetização e da leitura, motivada pela imprensa, a vida privada ganhou força. A classe burguesa fomentava a leitura de obras de bons escritores consagrados e considerava a família mais próxima – o cônjugue e os filhos – como um espaço que privilegiava a intimidade19. Nesta época, surgiram ideias de índole individualista, desenvolvidas com a reforma protestante20 e com o pensamento liberal de diversos filósofos ingleses, que encabeçavam um liberalismo moderado21.

JOHN LOCKE operou a distinção entre propriedade pública e privada, tendo desenvolvido a ideia de liberdade negativa, isto é, a existência do âmbito de uma liberdade inviolável, demarcando, desta forma, uma separação entre vida privada e autoridade pública.

Por seu turno, THOMAS HOBBES considerou a segmentação entre esfera pública e privada, tendo esta uma dimensão muito reduzida. A liberdade de cada um estaria cometida à esfera económica e doméstica, entendendo que o privado seria aquilo que não se enquadraria no âmbito público.

STUART MILL acreditava na existência de um espaço de liberdade humana, que englobava a liberdade de consciência, de pensamento e de sentimento, sendo essencial manter este âmbito pessoal.

Podemos concluir que, embora de uma forma muito restrita, estes autores conferiram ao Homem uma esfera de privacidade22. Há que notar que, nesta fase, marcada pelo aparecimento da burguesia, o direito à privacidade apresentava-se como um privilégio de classe. Ou seja, o núcleo do referido direito era marcado pela relação entre

18 Neste sentido e, sobre este período em Espanha, consultar CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., pp. 34-36

19 PIERRE KAYSER, La Protection de la Vie Privée par le Droit – Protection du Secret de la Vie Privée, 3ª edição, Economica, 1995, p. 13 20 Há quem entenda que foi com a Reforma que se deu a origem ou, pelo menos, a configuração atual da noção de intimidade, através

da noção de foro interno. É a Lutero a quem se atribui o início deste movimento e a rutura com a era medieval. Para mais desenvolvimentos CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., pp. 39-40

21 CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., pp. 43 e 52-54 refere também a existência de um liberalismo radical, de origem francesa. A este

propósito, destaca ROUSSEAU, que não foi exatamente um iluminista e em, em certos aspetos, antecipa o Romantismo, tendo, também, influências neoclássicas. Ainda assim, o seu pensamento representa um marco importante, uma vez que admitiu a existência de uma liberdade negativa ao indivíduo.

22 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, “Da esfera (…)”, cit., p. 64. Para mais desenvolvimentos CARLOS RUIZ

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os direitos da pessoa e o direito de propriedade. O direito de propriedade, ao qual apenas as pessoas mais privilegiadas teriam acesso, era o direito no qual se baseava esta ideia mais primitiva de privacidade. Neste sentido, a violação da privacidade só poderia ser feita através de uma intromissão física. Era o tempo da privacy-property23.

2. O contributo de Warren e Brandeis

A chamada revolução da informação começou a sentir-se, inicialmente de forma pouco expressiva, no fim do século XIX. Com ela, a privacidade começou a ganhar os seus contornos e a despertar a atenção e o estudo dos juristas. A sociedade da época, marcada pela existência de pequenos aglomerados populacionais, caraterizava-se pela passagem de informação por via oral, informação essa que se cingia ao espaço em que era difundida. Com as técnicas de impressão e de fotografia, o telefone e o telégrafo, a informação passou a ser transmitida num espetro espacial maior, quebrando barreiras como nunca haviam sido quebradas até então. A par disto, desenvolveram-se as grandes cidades, tendo dado lugar à chamada sociedade de massas, marcada pela explosão demográfica e pela concentração populacional nos grandes centros urbanos.24

Neste contexto, surgiu o artigo The Right of Privacy, de SAMUEL D. WARREN e LOUIS D. BRANDEIS, publicado na Harvard Law Review, em 1890, para muitos a consagração da primeira formulação jurídico-doutrinal da privacidade25. Embora seja

praticamente unânime o entendimento de que a origem deste direito se deva a WARREN e a BRANDEIS, existem referências a formulações anteriores à publicação dos autores. Em 1361, em Inglaterra, situa-se um precedente da tutela legal da privacidade, uma vez que os juízes do Peace Act instituíram a detenção de quem se introduzisse em casa alheia e a vigiasse26.

23 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 64. Neste sentido, os autores defensores da teoria racionalista

situam o despertar do direito à privacidade no período do Racionalismo e do Iluminismo, motivado pela ascensão da burguesia. Os partidários da teoria historicista defendem que a propriedade não nasce com a burguesia, mas com o Homem, e que a intimidade está presente em todas as sociedades humanas. Para mais desenvolvimentos sobre a origem da ideia de intimidade ver CARLOS RUIZ MIGUEL, op. cit., pp. 7-10.

24 ALEX ROSENBLAT; TAMARA KNEESE; DANAH BOYD, Workplace Surveillance, Data & Society Research Institute, 2014,

in https://www.datasociety.net/pubs/fow/WorkplaceSurveillance.pdf, p. 1 e JANUÁRIO GOMES, op. cit. pp. 24 e 35

25 A este propósito WILLIAM L. PROSSER, “Privacy”, in California Law Review, vol. 48, nº 3, Agosto 1960, in

http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3157&context=californialawreview, p. 384 refere que esta foi a primeira de uma longa linha de discussões sobre o direito à privacidade e que mais estarão por vir.

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Recuando até 1384, o caso francês I. de S. et uxor v. De S. dizia respeito ao réu que, pretendendo comprar vinho durante a madrugada, bateu à porta da taberna, da qual os autores eram proprietários. Como não o atenderam, o réu golpeou com uma machada o batente da janela da casa dos autores. Na sequência, foi condenado a pagar uma indemnização pelos males que causou, embora não se tenha provado outro dano material para além da destruição do referido batente. Contudo, em nosso entender, o que verdadeiramente está em causa não é o reconhecimento do direito à privacidade, mas sim a existência do direito de propriedade27, violado pelo réu quando golpeou o batente da janela de casa dos proprietários da taberna.

O acórdão inglês Abernethy v. Hutchinson, de 1825, abordou o caso do autor, um prestigioso cirurgião, que pretendia impedir a publicação na revista Lancet de palestras que não se encontravam publicadas e que tinha dado no St. Batholomew’s Hospital, em Londres28. No caso Prince Albert v. Strange, um acórdão inglês de 1849, o marido da Rainha Vitória obteve uma ordem judicial contra William Strange, por forma a impedi-lo de expor e vender um catáimpedi-logo com a cópia, que tinha adquirido, de desenhos que a Rainha e o Príncipe Alberto tinham feito para seu próprio divertimento. Entendemos que estas duas situações não contendem com a questão da privacidade, mas com a divulgação ilícita, uma vez que não foi consentida pelos autores, da sua obra intelectual ou artística. Assim, o fundo da questão diz respeito à proteção de direitos intelectuais29.

Uma situação idêntica ao acórdão Abernethy v. Hutchinson surgiu com o caso francês Marle c. Lacordaire, S., em 1845, relativamente à reprodução escrita de sermões que haviam sido dados num púlpito. Destaca-se aqui, de novo, a ilicitude da transcrição e subsequente publicação, uma vez que o autor, o abade Lacordaire, não tinha dado autorização nesse sentido30.

27 Neste sentido RITA AMARAL CABRAL, O Direito à Intimidade da Vida Privada (Breve Reflexão acerca do artigo 80º do Código Civil, AAFDL, Lisboa, 1988, p. 15

28 SAMUEL D. WARREN; LOUIS D. BRANDEIS, “The Right of Privacy”, in Harvard Law Review, vol. 5, nº 15, 15 de Dezembro,

1890, pp. 207-208

29 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, “Da esfera (…)”, cit., p. 66, nota 149. No que diz respeito ao acórdão Prince Albert v. Strange, FRANÇOIS RIGAUX, – “La liberté de la vie priveé”, in Revue Internationale de Droit Comparé, vol, 43, nº 3,

Julho/Setembro 1991, p. 543 entende também que a questão da privacidade não é o elemento essencial deste caso. RITA AMARAL CABRAL, op. cit., p. 15 considera que aflora aqui uma violação do direito de propriedade sobre os desenhos. SAMUEL D. WARREN; LOUIS D. BRANDEIS, op. cit., p. 208, ao fazerem referência aos dois acórdãos, destacam a existência de “breach of confidence”, isto é, de quebra de confiança.

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Em 1848, DAVID AUGUSTO RÖDER, na sua obra Grundzüge des Naturrechts, escreveu que atos como “abordar alguém com perguntas indiscretas” e “entrar num aposento sem se fazer previamente anunciar” seriam contrários ao direito natural e à vida privada, embora esta referência não tenha tido a importância do artigo de WARREN e BRANDEIS31.

No panorama legislativo italiano, surgiu a lei toscana de 1853, que concentrava um dos seus capítulos “aos delitos contra a liberdade pessoal e a tranquilidade privada”. De novo, a alusão destas realidades na referida lei não granjeou o impacto obtido pelo estudo dos dois advogados americanos32.

Em 1880, o Juíz THOMAS COOLEY utilizou a famosa expressão right to be alone, que mais tarde foi seguida por WARREN e BRANDEIS, e que significa o “direito a estar só ou a ser deixado só”33.

O acórdão americano De May v. Roberts, de 1881, tratou o caso de uma mulher foi observada por um terceiro, durante o parto, sem ter dado o seu consentimento nesse sentido. O tribunal do Michigan entendeu que a lei garantia o direito a todas as pessoas de impedirem que fossem observadas pelas demais e que a mulher tinha direito à privacy no seu lar34.

A emblemática obra de WARREN e BRANDEIS surgiu na decorrência de ingerências, por parte da imprensa, na vida privada da família WARREN35. Assim, os

autores entenderam que seria imperativa a defesa da privacy da intromissão da imprensa. Há que referir, contudo, que o direito à privacidade defendido neste estudo não é absoluto, não impedindo a publicação do que é de interesse público ou geral e mesmo de tudo aquilo que seja privado. Por outro lado, não pode ser invocado nos casos em que a publicação seja realizada com o consentimento da pessoa a quem as informações dizem respeito. A invocação de que é verdade o objeto da publicação ou o argumento de que não houve intenção não servem de defesa para quem perpetue uma intrusão no direito à privacidade. Quanto à compensação ou indemnização, não serão de atribuir quando a violação do direito seja feita de forma oral e sem causar danos especiais36.

31 JANUÁRIO GOMES, op. cit. pp. 25-26. 32 JANUÁRIO GOMES, op. cit. pp. 25-26.

33 JOSÉ MARTÍNEZ DE PISÓN CAVERO, El Derecho a la Intimidade en la Jurisprudencia Constitucional, Civitas, 1993, p. 26 e

TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 66

34 FRANÇOIS RIGAUX, op. cit., pp. 552-555 e TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 66. 35 RITA AMARAL CABRAL, op. cit., p. 16 e TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, “Da esfera (…)”, cit., pp. 68-69 36 SAMUEL D. WARREN; LOUIS D. BRANDEIS, op. cit., pp. 216-217 e TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 68

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Os autores constataram que não só as coisas corpóreas deveriam ser tuteladas juridicamente. A vida intelectual e emocional e a elevação dos sentimentos, realidades que desabrocharam como o avanço da civilização, tornaram claro que os pensamentos, as emoções e as sensações, enfim, a dimensão imaterial, exige reconhecimento por parte do Direito. A common law assegura a cada pessoa o direito de determinar de que forma os seus pensamentos, sentimentos e emoções devem ser comunicadas37. É que, com a intensidade e a complexidade da vida, tendo em conta a evolução que as sociedades vão sofrendo, o homem se mais sensível à publicidade e, assim, a privacidade tornou-se mais estornou-sencial para cada um de nós38.

Tendo tomado como ponto de partida a propriedade, apoiaram-se depois no direito de propriedade intelectual e no direito de criação artística, dando azo a campos cada vez mais incorpóreos. Neste sentido, a privacy deve então afastar-se do direito à propriedade. Deu-se, assim, um importante passo na viragem da conceção da privacidade, como não já exclusiva de uma classe, sustentada no direito de propriedade, mas sim como uma condição dos homens, podendo então falar-se da privacy-personality, encarando-se a privacidade como um direito de natureza constitucional e relacionado com a personalidade e a liberdade individual, não mais com a propriedade39. Foi o grande contributo trazido pelos autores: a privacidade centrada na pessoa humana, na sua essência e substância, como constatação de um domínio interior reclamando proteção.

O direito à privacidade de WARREN e BRANDEIS teve uma influência incomparável na doutrina e na jurisprudência e, em 1893, no acórdão Marks vs Joffra, pela primeira vez um tribunal utilizou a expressão por eles popularizada, o “ser deixado em paz”. O caso dizia respeito a um estudante de Direito que intentou uma ação contra um periódico que teria publicado uma foto sua sem consentimento. O tribunal entendeu que o autor tinha direito à imagem e direito a ser deixado em paz40. Em 1902, no caso Roberson v. Rochester Folding Box Co., a Court of Appeals de Nova Iorque julgou improcedente o pedido da Srª Roberson, que pretendia ser indemnizada uma vez que a

37 SAMUEL D. WARREN; LOUIS D. BRANDEIS, op. cit., pp. 195 e 198 38 SAMUEL D. WARREN; LOUIS D. BRANDEIS, op. cit., p. 196

39 Neste sentido ELISENDA BRU CUADRADA, “La protección de datos en España y en la Unión Europea. Especial referencia a los

mecanismos jurídicos de reacción frente a la vulneración del derecho a la intimidad”, in Revista de los Estudios de Derecho y Ciencia

Política de la UOC, nº 5, 2007, in http://www.uoc.edu/idp/5/dt/esp/bru.pdf, p. 80 e TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA,

última op. cit., pp. 64-65 e A Privacidade (…), cit., pp. 113-114

40 DAVID DE OLIVEIRA FESTAS, “O direito à reserva da intimidade da vida privada do trabalhador no Código do Trabalho”, in Revista da Ordem dos Advogados, vol. 1/2, Novembro 2004 – ano LXIV, in http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45841&ida=47185, p. 3

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sua imagem foi utilizada, sem o seu consentimento, numa campanha publicitária a uma marca de farinha. Esta decisão foi criticada pela opinião pública, o que levou mesmo a que os juízes publicassem um artigo a justificar a decisão e a que tivesse surgido uma lei no estado nova-iorquino que condenava a utilização, não consentida e para fins publicitários, da imagem ou nome de uma pessoa. Era o reconhecimento social do direito à privacidade. Três anos depois, em 1905, no caso Pavesich v. New England Life Insurance Co., o Supremo Tribunal do Estado da Geórgia condenou a Companhia de Seguros New England Insurance a indemnizar o Sr. Pavesich, cuja imagem foi abusivamente utilizada, já que foi publicada uma imagem sua com um depoimento, falsamente atribuído, em que recomendava entusiasticamente ao público a celebração de contrato com a referida companhia de seguros. O tribunal reconheceu um direito à imagem e aqui, ao contrário do que se verificou em 1902, reconheceu também um direito à privacidade, tendo referido que “o direito à privacidade tem o seu fundamento na própria natureza, sendo, consequentemente, oriundo do Direito natural41.

No seu estudo, os autores defenderam ainda uma importante ideia: de tempos a tempos, mostra-se necessário redefinir a natureza e a extensão dadas à proteção da pessoa42. De facto, com as mudanças constantes trazidas pela evolução tecnológica, essa redefinição apresenta-se como um corolário essencial, sendo necessário repensar o que estará cometido ao âmbito de proteção da privacidade.

3. A influência das NTIC e o impacto da sociedade da informação

É com o surgimento e a difusão do computador, nos anos sessenta, que a informação ganha uma nova dimensão, já não se trata da informação associada à imprensa, retratada por WARREN e BRANDEIS. Torna-se possível aceder e armazenar informação de uma forma inimaginável, fazendo com o que o mundo se torne numa autêntica vitrina onde vegeta o homem… nu43, exposto.

O desenvolvimento tecnológico a que se tem assistido nas últimas décadas permite-nos falar mesmo de uma revolução tecnológica, que tem alterado a estrutura da

41 RITA AMARAL CABRAL, op. cit., pp. 16-17

42 SAMUEL D. WARREN; LOUIS D. BRANDEIS, op. cit., p. 193 43 JANUÁRIO GOMES, op. cit. p. 34

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sociedade44. A informação passa a mover45 esta nova sociedade, emergindo, assim, a

sociedade da informação46. Estamos perante uma sociedade pós-industrial, em que a

indústria perde a sua importância enquanto centro social, dando lugar à informação associada às Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC)47. A centralidade da informação é, então, uma nota caraterística da sociedade da informação em que vivemos e em que a empresa atual se enquadra48.

No que diz respeito ao contexto laboral, a própria maneira de efetuar a prestação laboral modificou-se49. Neste sentido, o computador pode ser perspetivado de duas formas: por um lado, ganhou tal importância que é considerado um instrumento de trabalho; por outro lado, permite a transformação e a expansão da personalidade do trabalhador. A pessoa humana é considerada como uma fonte de informação, o que resulta na sua instrumentalização e, em particular, na coisificação do trabalhador50.

Com o aparecimento do computador e das novas tecnologias, surgem novos perigos, que contendem com a dignidade e a privacidade51. A informática inovou os tradicionais métodos de organização, registo e utilização da informação. Desta forma, o tipo e a quantidade de informação que pode ser recolhida, armazenada e cedida atingiu

44 Neste sentido TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op., cit., p. 65. Refere o Livro Verde Para a Sociedade de Informação em Portugal, Missão para a Sociedade da Informação / Ministério da Ciência e da Tecnologia, 199, in http://purl.pt/239/2/,

p. 9 que “as tecnologias de informação influenciam os mais variados domínios da vida em sociedade”.

45 A este propósito, MARIA RAQUEL GUIMARÃES; MARINA REGINA REDINHA, “O uso do correio eletrónico no local de

trabalho – algumas reflexões”, Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra Editora, 2003, pp. 647-648 evidenciam que “o motor do crescimento económico” é a própria informação e já não o sector energético.

46 JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “A sociedade da informação”, in Direito da Sociedade da Informação, vol. 1, Coimbra Editora,

Coimbra, 1998, p. 167 entende que deveria falar-se em sociedade de comunicação, porque “o que se pretende impulsionar é a comunicação, e só num sentido muito lato se pode qualificar toda a mensagem como informação”. Por sua vez, JOSÉ FRANCISCO DE FARIA COSTA, “O direito penal, a informática e a reserva da vida privada”, in Direito Penal da Comunicação: Alguns Escritos, Coimbra Editora, 1998, p. 66, distingue os conceitos de comunicação e de informação. A primeira só se concretiza numa relação de alteridade, ou seja, através da relação com o outro. Já a segunda perspetiva-se como “realidade objetivável e, por isso, independente da captação objetiva e dialógica do homem”.

47 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 90. CRISTINA MÁXIMO DOS SANTOS, “As novas

tecnologias da informação e o sigilo das telecomunicações”, in Revista do Ministério Público, nº 99, Julho/Setembro 2004 – ano XXV, p. 89 e VÍCTOR CORREIA, “Sobre o direito à privacidade”, in O Direito, nºs 1/2, 2014 – ano CXLVI, p. 21 destacam o papel das novas tecnologias na sociedade da informação.

48 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, Estudos de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2011, p. 192

49 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…). cit., p. 90. Iremos perceber em que sentido a forma de prestar

trabalho se modificou, nomeadamente através do uso do e-mail no contexto laboral.

50 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, Estudos (…), cit., pp. 93 e 192.

51 SANTIAGO ROMERO DE BUSTILLO, “Intimidad e informática en el ámbito de las relaciones laborales”, in BORRAJO

DACRUZ, Efrén (dir.) - Trabajo y Libertades Publicas, La Ley-Actualidad, 1999, p. 297, ao referir que as novas tecnologias se apresentam como o meio mais eficaz e eficiente para o avanço e difusão dos progressos, alerta para o facto de ser uma das formas que mais atentam os direitos e garantias.

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uma elevada proporção, trazendo novas interrogações no que toca às relações entre a privacidade e a informação52.

As NTIC surgem, assim, como uma ameaça à privacidade das pessoas, atacando a privacidade dos trabalhadores de uma forma especial53. É que a submissão do trabalhador aos poderes dos quais dispõe o trabalhador deixam aquele numa situação particularmente vulnerável. O trabalhador, no âmbito da relação laboral, aliena parte da sua personalidade e consente na intromissão da sua esfera, limitando os seus direitos de personalidade54. Envolve a sua personalidade de tal forma que se torna complexo dissociar claramente a prestação de trabalho da sua própria pessoa55. Não é por acaso que o contrato de trabalho é comummente caraterizado como um contrato intuitu personae56 e que o trabalhador é visto como o contraente mais fraco57, justificando-se assim a criação de uma zona de imunização do trabalhador58 contra os riscos da utilização das novas tecnologias no local de trabalho. De facto, o desenvolvimento da informática revela-se como um vetor de amplificação de reivindicações no que toca à vida privada59, permitindo constantes ataques ao cerne privado do trabalhador e, exigindo, assim, novas formas de combater tais ingerências.

Neste contexto, ao longo dos tempos, surgiram diversos instrumentos legislativos com vista à proteção da privacidade, o que se justifica, exatamente, pelos ataques de que esta pode ser alvo no mundo atual, marcado pela tecnologia e pelo controlo.

52 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit., pp. 49 e 122

53 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, Estudos (…), cit., p. 192. Contudo, como alerta a autora, “a tecnologia é em si

mesma neutra, o mesmo não se podendo dizer do homem que a utiliza”.

54 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “O respeito pela esfera privada do trabalhador”, I Congresso Nacional de Direito do Trabalho – Memórias, (coord. António Moreira), Almedina, Coimbra, 1998, p. 19, LUÍS MENEZES LEITÃO, “A proteção dos dados pessoais

no Contrato de Trabalho”, in A Reforma do Código do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 124 e TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, Estudos (…), cit., p. 66

55 Neste sentido GUILHERME DRAY, “Justa causa e esfera privada”, in Estudos do Instituto do Direito do Trabalho, vol. 2, (coord.

Pedro Romano Martinez), Almedina, 2001, p. 36 e MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Tratado de Direito do Trabalho,

Parte II, Situações Laborais, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 429

56 Assim defende JOÃO LEAL AMADO, Contrato de Trabalho, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 31, escrevendo que

a relação de trabalho é uma relação fortemente assimétrica.

57 OCTAVIO BUENO MAGANO, “Princípios do Direito do Trabalho e os avanços da tecnologia”, in Os Novos Paradigmas do Direito do Trabalho (coord. Rita Maria Silvestre e Amauri Mascaro Nascimento), Editora Saraiva, 2001, p. 81 destaca a debilidade

do trabalhador. JOSÉ JOÃO ABRANTES, Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, 2005, p. 36 realça que trabalhador e empregador não têm igual liberdade quanto à celebração contratual nem possibilidades semelhantes no que diz respeito às cláusulas negociais (nem quanto à estipulação, nem quanto à exigência de cumprimento)

58 MARIA REGINA REDINHA, - “Os direitos de personalidade no Código do Trabalho: atualidade e oportunidade da sua inclusão”,

in A Reforma do Código do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 161

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4. A tutela da privacidade no ordenamento jurídico português

No âmbito nacional, a privacidade é protegida a diferentes níveis. No plano constitucional, a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra no seu artigo 26º a reserva da intimidade da vida privada. Por seu turno, o artigo 80º do Código Civil (CC) institui o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. No domínio penal, a privacidade encontra-se tutelada através da previsão de crimes contra a reserva da vida privada, nos artigos 190º a 198º do Código Penal (CP). Já no Código de Processo Penal (CPP), relevam os artigos 187º a 190º, que tratam das escutas telefónicas. A reserva da intimidade da vida privada vem salvaguarda, ao nível laboral, no artigo 16º do Código de Trabalho (CT).

Além desta proteção abrangente da privacidade em diversos instrumentos legislativos nacionais, destacamos o papel da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), criada em 1994, e que, entre as atribuições, controla e fiscaliza o cumprimento das regras respeitantes à proteção de dados pessoais e exerce poderes de autoridade que lhe permitem ordenar o bloqueio e a destruição de dados e proibir de forma temporária ou definitiva o tratamento de dados pessoais60.

A este propósito, mencionamos a Lei de Proteção de Dados Pessoais (lei 67/98, de 26 de Outubro61), modificada em Agosto de 2015. Tem como objeto a tutela das

pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação dos mesmos. Destaca, no artigo 2º, a importância de o tratamento dos dados pessoais ser feito respeitando a reserva da vida privada. Diz-nos o artigo 4º qual o âmbito de aplicação desta lei, nomeadamente o “tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como o tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados”. Tendo por base o artigo 5º, o tratamento dos dados pessoais deve ser regido pelos princípios da legalidade, da finalidade, da pertinência e da veracidade. Por seu turno, o artigo 6º aborda a questão do consentimento do titular dos dados e o artigo 7º estabelece o tratamento de dados sensíveis.

60 Para mais desenvolvimentos https://www.cnpd.pt/

61 Que transpôs a Diretiva 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Julho de 1995, revogada pelo Regulamento

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Destacamos ainda a lei nº 41/2004, de 18 de Agosto62, alterada pela última vez em

Agosto de 2012, relativa à proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações. Tendo por base o artigo 1º da mesma, as suas disposições aplicam-se ao “tratamento de dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público em redes de comunicações públicas, nomeadamente nas redes públicas de comunicações que sirvam de suporte a dispositivos de recolha de dados e de identificação”.

4.1. A tutela constitucional da privacidade

As constituições consagram direitos que se intitulam de direitos fundamentais63. Estes direitos alcançaram o triunfo político no século XVIII, sendo um produto das revoluções liberais americana e francesa64.

Em termos históricos e dogmáticos, os direitos fundamentais têm como fim a proteção da pessoa face ao Estado, exprimindo, por isso, as posições dos indivíduos contra aquele65. Relembramos, contudo, que, embora a disciplina da CRP traduza a preocupação desta proteção, o próprio artigo 18º nº 1 destaca a aplicabilidade direta dos direitos, liberdades e garantidas (regulados nos artigos 24º e seguintes) e a vinculação das entidades públicas e privadas66. A este propósito, MENEZES CORDEIRO67 fala em

eficácia reflexa, civil ou privada dos direitos fundamentais, enquadrando a eficácia dos direitos fundamentais perante terceiros. É que pode o Estado, ele próprio, atingir

62 Que transpôs a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Julho, alterada pela Diretiva 2006/24/CE,

do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de 15 de Março de 2006, e pela Diretiva 2009/136/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2009

63 JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, I, AAFDL, Lisboa, 1978, p. 310 esclarece que os direitos

fundamentais “em sentido formal, são atribuídos pela Constituição”.

64 Para mais desenvolvimentos sobre a história dos direitos fundamentais TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, A Privacidade (…), cit., pp. 265-269

65 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, - Tratado de Direito Civil, I, 4ª edição (reformulada e atualizada), Almedina, Coimbra, 2012,

p. 935 e “O respeito (…)”, cit., p. 30

66 Neste sentido GUILHERME DRAY, “Justa causa (…)”, cit., pp. 42-43 e JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito (…), cit., p.

67. PAULO MOTA PINTO, “A proteção da vida privada e a Constituição, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra, vol. 76, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2000, p. 186 questiona se a referida aplicação direta

valerá da mesma forma para as entidades públicas e privadas ou se existirão diferenças a apontar, incluindo no que toca às diferentes entidades privadas. Para mais desenvolvimentos sobre a vinculação das entidades públicas e privadas aos direitos fundamentais ver J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., pp. 383-387.

67 Tratado (…), cit., pp. 29-32. O autor indica como limites da eficácia constitucional reflexa a adequação valorativa – entre o direito

fundamental consagrado e o bem a proteger deverá existir uma relação axiológica substancial – e a limitação funcional – os direitos fundamentais são suscetíveis de concretização e consequente restrição, embora a mesma deva ter certos limites.

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diretamente realidades protegidas pelos direitos fundamentais ou, por outro lado, permitir que terceiros efetuem essa violação.

Nesta envolvência, podemos caraterizar direitos fundamentais como sendo aqueles que se encontram contemplados na Constituição, representando posições jurídicas subjetivas da pessoa, considerada de forma individual ou em sentido institucional68. Interessante ideia, da qual partilhamos, é que não existem direitos fundamentais sem que se reconheça uma esfera própria das pessoas, frente ao poder político. Da mesma forma, não existem direitos fundamentais sem que os indivíduos estejam em relação imediata com o Estado, providas do mesmo estatuto e não sujeitas a estatutos específicos69.

Face ao progresso marcado pelas tecnologias e a todas as modificações possibilitadas pela sua expansão, surgiu um novo tipo de direitos – os direitos de quarta geração70. São direitos essencialmente dirigidos contra o Estado, dos quais se destacam a possibilidade de proteção da privacidade contra certos fenómenos intrusivos, aliados à utilização das NTIC. Na nossa opinião, é a constatação de que o Direito acompanha, e deve acompanhar, a evolução tecnológica, procurando adaptar-se à mudança dos tempos. O direito à reserva da intimidade da vida privada vem então consagrado, como direito fundamental, no artigo 26º da CRP, ditando o nº 1 que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação” e acrescentando o nº2 que “a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”. De resto, este citado nº 2 implica que, por forma a se proteger a reserva sobre a intimidade da vida privada, possam ser impostas ao Estado determinadas obrigações positivas71.

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA72 destacam a dificuldade em traçar uma linha que separe o âmbito da vida privada e familiar suscetível de proteção da reserva

68 GULHERME DRAY, – O Princípio da Proteção do Trabalhador, Almedina, 2015, p. 169 e JORGE MIRANDA, “Os Direitos

Fundamentais na Ordem Constitucional Portuguesa”, in Revista Española de Derecho Constitucional, nº 18, 1986 – ano VI, pp. 107-111, que distingue entre direitos fundamentais em sentido formal e em sentido material.

69 JORGE MIRANDA, op. cit., p. 108

70 Neste sentido TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., pp. 267-268 71 PAULO MOTA PINTO, última op. cit. p. 187

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de intimidade e o campo mais ou menos recetivo à publicidade. Os autores defendem que o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar pode ser analisado em dois direitos menores, o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outra pessoa.

Como refere LUÍS MENEZES LEITÃO73, de acordo com a teoria das três esferas, no direito à intimidade da vida privada podemos distinguir, como o próprio nome da teoria indica, três esferas: uma esfera íntima, uma esfera privada e uma esfera pública. A esfera íntima está revestida, em princípio, de uma proteção absoluta e abrange a vida familiar, aspetos de saúde, comportamentos sexuais e convicções políticas e religiosas. Por sua vez, a esfera privada tem já uma proteção relativa, pelo que pode ceder em caso de conflito com direito ou interesse superior. A esfera pública contende com situações conhecidas publicamente e, por isso, estas podem ser divulgadas sem qualquer entrave. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS74 destacam que, a propósito da referida teoria, há autores que defendem a existência de uma esfera íntima, o núcleo essencial do direito em causa, uma esfera privada, que admite ponderação de questões de proporcionalidade, e uma esfera social, que dirá respeito não ao direito à intimidade da vida privada, mas ao direito à imagem e ao direito à palavra.

Seguindo de perto PAULO MOTA PINTO75, entendemos que esta divisão não

permite uma definição clara do conteúdo do direito à intimidade da vida privada. Contudo, mostra-se útil, uma vez que permite a graduação da gravidade da ofensa em causa, tendo em conta que tipo de informações foram reveladas. Assim, será de adotar a distinção entre vida privada e vida pública, o que implica que a proteção constitucional abarcará os aspetos que a pessoa pretenda ver afastados do conhecimento alheio e excluirá aqueles que não oculte do conhecimento de terceiros. Incluem-se, ainda, no raio de proteção do artigo 26º nº 1 da CRP, informações respeitantes à vida profissional ou ao segredo dos negócios, se estiverem relacionadas com a vida privada, e acontecimentos que, integrando a vida privada, aconteçam em locais públicos. A este propósito, entendemos que o critério que permite operar a distinção entre vida pública e vida privada

73 “A proteção dos dados pessoais no Contrato de Trabalho”, in A Reforma do Código do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2004,

p. 126 e Direito do Trabalho, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 169. Também RITA AMARAL CABRAL, última op. cit., p. 30 refere que a teoria das três esferas se divide em vida íntima, vida privada e vida pública.

74 Constituição Portuguesa Anotada, 2ª edição, Coimbra Editora, 2010, p. 620 75 Última op.cit. pp. 162-164

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não será um critério espacial. Ou seja, embora o local onde os factos ocorrem seja importante, não é determinante para aferir da proteção ou não da privacidade, uma vez que uma conversa ocorrida num lugar público poderá dizer respeito a factos privados e, nesse sentido, encontrar-se protegida. Da mesma forma, nem tudo o que acontece num local mais resguardado constitui necessariamente uma situação privada76. Parece-nos esta uma posição razoável, uma vez que o que consideramos importante é saber se estamos perante situações que contendem com aspetos privados e que, por isso, merecem tutela, e já não em que locais estas situações ocorrem, sendo esta uma questão secundária. Sobre o que possibilita a distinção entre o que poderá ou não usufruir da tutela da privacidade prevista na CRP, parece-nos também interessante o contributo de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA77, que referem que o critério constitucional deverá ter por base os conceitos de privacidade e de dignidade humana, para que se possa definir um conceito de esfera privada de cada pessoa, que seja culturalmente adequado à vida atual. Aqui se denota a necessidade de adaptar o conceito de privacidade de acordo com o mundo em que vivemos, o que pensamos ser uma posição sensata.

Secundando PAULO MOTA PINTO78, em abstrato, na delimitação do conteúdo da noção de vida privada, podemos incluir informações respeitantes à pessoa ou à sua identidade como impressões digitais, código genético, elementos relativos à saúde, acontecimentos como encontros com amigos, destinos de férias e outros comportamentos privados. Podemos ainda incluir informações sobre a vida familiar, conjugal, amorosa e afetiva e sobre a vida do lar e o que nela acontece, bem como o que acontece noutros locais privados e mesmo públicos, como já vimos. Também podemos incluir a informação patrimonial e financeira e ainda abranger as comunicações por correspondência, quer em suporte de papel, quer em suporte digital (como o e-mail).

Quanto ao que o Tribunal Constitucional entende por direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, a primeira definição sobre o conteúdo deste direito foi dada pelo Acórdão nº 128/9279, que entendeu que se trata “do direito de um cada um a ver

76 Neste sentido AGATHE LEPAGE, op. cit., p. 369, JORGE MIRANDA; RUI MEDEIROS, última op. cit. 622 e TERESA

ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 287. A este propósito, refere-se o Acórdão 207/2003, disponível http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030207.html, que considerou inconstitucional a norma do artigo 52º do Decreto-Lei nº 422/89, de 7 de Dezembro, relativo à videovigilância nas salas de jogos, sítios públicos, e que tal levantava questões relacionadas com a intimidade da vida privada.

77 Última op. cit., p. 468 78 Última op. cit., pp. 166-169

79 Neste sentido PAULO MOTA PINTO, última op. cit. p. 157. Acórdão disponível em

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protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias. É a privacy do direito anglo-saxónico. (…) Este direito à intimidade ou à vida privada, este direito a uma esfera própria e inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respetivo titular compreende: a) a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa esfera de intimidade; b) o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado”. Esta definição pautou pela sua abrangência, uma vez que pareceu abarcar aspetos da reserva da vida privada, atinentes à informação, mas também a liberdade da vida privada. Posteriormente, o TC aplicou o conceito de intimidade da vida privada apenas aos casos em que estava em causa informação atinente àquela realidade, deixando de atender à liberdade da vida privada para preencher o conteúdo do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada80. De resto, tal posição do Tribunal parece ter sido reforçada através da previsão, no artigo 26º nº 1 da CRP, do direito ao (livre) desenvolvimento da personalidade – que comporta duas dimensões: a proteção da personalidade, como indicativo da individualidade, e a proteção da liberdade geral de ação, em que se protege a livre decisão sobre o comportamento do titular81.

O TC identifica intimidade e vida privada, defendendo apenas, por isso, a existência de uma esfera inviolável, o que significa que não acolheu o entendimento proclamado pela teoria das três esferas. Desta forma, de acordo com o entendimento constitucional, não existe distinção entre vida privada e intimidade da vida privada82.

Destacamos o Acórdão nº 368/200283, em que o TC lembrou que o direito à

reserva sobre a intimidade da vida privada tem limitações, decorrentes da necessária harmonização do direito com outros direitos fundamentais ou com interesses constitucionalmente tutelados, devendo atender-se ao princípio da proporcionalidade84.

fundamento a prática da prostituição no imóvel arrendado. O acórdão revestiu também importância na medida em que contribuiu para a precisão do conteúdo da vida privada, tendo referido que “no âmbito desse espaço próprio inviolável engloba-se a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (v.g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou domicílio) e, bem assim, os meios de expressão e de comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc)”.

80 Como refere PAULO MOTA PINTO, última op. cit. p. 158, não se inclui aqui o Acórdão nº 278/95, disponível em

http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19950561.html, uma vez que negou que a punição de práticas sexuais com pessoas deficientes implicasse violação do direito à liberdade e ao respeito da vida privada.

81 PAULO MOTA PINTO, última op. cit. p. 160 82 PAULO MOTA PINTO, última op. cit. pp. 162-163

83 Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020368.html

84 Neste sentido TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., pp. 287-288. Para mais desenvolvimentos sobre os

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Alguns direitos fundamentais funcionam como garantias do direito à reserva da intimidade da vida privada85, entre eles o artigo 34º da CRP86, respeitante ao sigilo das

telecomunicações, e o artigo 35º da CRP, relativo à proteção dos dados pessoais.

O artigo 35º da CRP87 consagra a proteção dos cidadãos face ao tratamento de dados pessoais informatizados. De acordo com o ensinamento de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA88, o tratamento abrange a individualização, fixação, recolha, conexão, transmissão, utilização e publicação de dados. O termo “dados”, por influência da ciência informática, significa a representação de informação sob a forma analógica ou digital, permitindo o tratamento automático, que consiste na introdução, organização, gestão e processamento dos dados. A preocupação com a proteção de dados pessoais começou a ser sentida nos anos sessenta89, fruto do aparecimento e da expansão da utilização de novas tecnologias, nomeadamente, o computador. Assim se percebeu que se abria um novo mundo de possibilidades, uma vez que se podem organizar gigantescas quantidades de informação e submetê-la a tratamento informático. Desfere-se, desta forma, mais um ataque à proteção da privacidade das pessoas, sem esquecer as formas de controlo que o tratamento de dados permite.

Neste contexto, a previsão constitucional é essencial, sendo que o tratamento informático de dados pessoais arranca de direitos como a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da personalidade, a integridade pessoal e a autodeterminação informativa. Defendem os autores que, quanto à defesa contra o tratamento informático de dados pessoais, a proteção pode ser analisada em três direitos: o direito de acesso das pessoas aos registos informáticos para conhecerem os dados pessoais que neles constam e ainda para retificarem e completarem os mesmos (artigo 35º n º1), o direito ao sigilo quanto aos responsáveis de ficheiros automatizados e a terceiros dos dados pessoais e à sua não interconexão (artigo 35º nº 4) e o direito ao não tratamento informático de certos tipos de dados pessoais (artigo 35 nº 3). Estes direitos densificam o direito à autodeterminação informacional, que se apresenta como uma manifestação do âmbito

85 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., p. 467 86 Cuja análise pode ser consultada no ponto 2.1. do capítulo III

87 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 295 destaca que Portugal foi o primeiro país europeu a reconhecer

expressamente no texto constitucional um direito à proteção de dados pessoais distinto em relação ao direito à reserva sobre a intimidade da vida privada.

88 Op. cit., p. 550

Referências

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