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A tutela da privacidade na Alemanha

CAPÍTULO I – A PRIVACIDADE

5. A tutela da privacidade no Direito Comparado

5.3. A tutela da privacidade na Alemanha

O período correspondente à II Guerra Mundial provocou alterações significativas no que toca à questão da privacidade no ordenamento jurídico alemão178. Até ao final da referida guerra, o direito à reserva da vida privada era apenas protegido indiretamente, através de institutos como o direito à imagem179 e o direito ao nome. Contudo, tudo se alterou, devido às consequências que a guerra originou e que mostraram a necessidade de uma proteção mais forte dos direitos de personalidade e também devido à divulgação dos meios de comunicação durante a segunda metade do século XX, potenciadores da invasão da privacidade180.

A doutrina constitucional, suportada na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, a Grundgesetz, de 1949, confere importantes contributos quanto à questão da privacidade. Desde logo, na primeira parte do artigo 1º, diz-se que “a dignidade da pessoa humana é inviolável”, como que a instituir uma espécie de lição histórica da experiência nacional-socialista e a mostrar o impacto que esta teve nos direitos de personalidade181. A segunda parte do artigo diz respeito ao papel do Estado para assegurar a dignidade: uma atitude passiva, porque deve respeitá-la e uma atitude ativa, uma vez que deve atuar no sentido da sua proteção e concretização. A dignidade humana, entendida então como princípio base de estado e como um direito fundamental, encontra-se reforçada no

177 Disponível em http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2000/23/contentse cuja análise se encontra no ponto 2.2.2. do capítulo III 178 ARMIN HOLAND, “Germany”, in Employment privacy law in the European Union: surveillance and monitoring (coord. Frank

Hendrickx), Intersentia, 2002, p. 107

179 Destaca PAULO MOTA PINTO, última op. cit., p. 516, nota 103, que, em 1898, discutia-se o caso de Otto Bismarck, ao qual se

tiraram fotografias depois de ter falecido, facto que punha em causa o seu direito à imagem.

180 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., pp. 203-204 181 ARMIN HOLAND, op. cit. p. 108

parágrafo 3 do artigo 79º, não podendo ser derrogada, modificada pelo constituinte ou concretizada pela lei182.

O artigo 2º, por sua vez, afirma no primeiro parágrafo que cada pessoa tem direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade e, no segundo parágrafo, estabelece o direito à vida, à integridade corporal e à liberdade183.

O direito ao livre desenvolvimento da personalidade é entendido como um direito geral de ação, devendo ser interpretado à luz da dignidade da pessoa humana. O Tribunal Federal de Justiça alemão, o Bundesgerichtshof, reconheceu o direito de personalidade a 25 de Maio de 1954, tendo por base os artigos 1º e 2º da Lei. Por seu turno, o Tribunal Constitucional alemão, o Bundesverfassungsgericht, reconheceu diferentes derivações do direito geral de personalidade, como a proteção da honra e da imagem e também a proteção da vida privada – desta forma, a tutela da privacidade foi desentranhada do direito geral de personalidade184. Esta proteção estende-se não só ao segredo, mas também à liberdade da vida privada, uma vez que o direito ao livre desenvolvimento pressupõe o reconhecimento de uma esfera em que a pessoa, sendo livre nos seus atos, desenvolve a sua personalidade. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, entendido como liberdade geral de ação, foi assim consagrado em 1957, no caso Elfes, tendo-se estabelecido que esta liberdade conferia ao titular do direito uma ação ou omissão de caráter genérico185.

Da conjugação do parágrafo 1 do artigo 1º com o parágrafo 1 do artigo 2º da Constituição, conferiu-se valor constitucional ao direito à autodeterminação informacional, no acórdão de 1 de Dezembro de 1983. O caso dizia respeito a uns censos que iram ser realizados, sendo que o tribunal declarou que os mesmos eram inconstitucionais, alegando o direito constitucional à autodeterminação informativa e reconhecendo uma esfera privada e intangível da pessoa humana. Defende-se que, na origem da construção jurisprudencial deste direito, estarão o caso Elfes e a teoria das três esferas186. De facto, não podemos esquecer que foi na Alemanha, sobretudo pela obra de

182 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., pp. 205-206

183 Neste sentido ARMIN HOLAND, op. cit. p. 108 e XAVIER BIOY, “Le libre développement de la personnalité en droit

constitutionnel essai de comparaison (Allemagne, Espagne, France, Italie, Suisse)”, in Revue Internationale de Droit Comparé, vol. 55, nº 1, 2003, p. 124

184 PAULO MOTA PINTO, última op. cit., pp. 516-517

185 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, “Da esfera (…)”, cit., pp. 86-87. Da mesma autora A Privacidade (…), cit., p. 209 186 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 212

H. HUBMANN, que se generalizou a teoria das três esferas que, como vimos, distingue uma esfera individual, uma esfera privada e uma esfera secreta187.

No direito à autodeterminação informativa, o bem protegido é o dado pessoal, entendido pelo Tribunal Constitucional como as informações individuais de determinada pessoa, sobre si mesma ou com ela relacionada, podendo os dados pessoais assumir a natureza de diários, notas, gravações privadas, dados fiscais ou relatórios médicos. Neste sentido, mostrou-se particularmente importante uma decisão do Tribunal, datada de 2 de Março de 2006, que incluiu os dados de tráfego e de conteúdo no segredo das telecomunicações, relacionando estes dados com dados pessoais188.

Tendo em conta a importância deste tipo de dados, cada vez mais discutida face às inovações tecnológicas que se fazem sentir, várias leis de proteção de dados foram aprovadas na Alemanha. Assim, em 1970, a Lei do Land de Hesse, refere-se a ficheiros de organismos públicos. Ainda em 1970, surgiu a Lei de Proteção de Dados da Baviera e, em 1974, a de Rheinland-Pfalz, que instituiu o reconhecimento constitucional do direito à proteção de dados de alguns Estados. Em 1978, entrou em vigor a Datenschutzgesetz, tendo como objetivo a proteção de dados, evitando que os mesmos sejam usados de forma incorreta189. A Bundesdatenschutzgesetz190, em vigor, alterada pela última vez a 25 de Fevereiro de 2015, tem como objetivo proteger a pessoa face à manipulação dos seus dados pessoais, visando assim proteger a sua privacidade. Este ato federal aplica-se às entidades públicas da Federação, a entidades públicas dos estados e a organismos privados, sendo que na seção 2 da parte 1 do diploma podemos perceber o que entende por cada uma destas entidades. O Telekommunikationsgesetz191, com a alteração mais recente datada de 24 de Maio de 2016, tem como propósito a salvaguarda dos interesses dos utilizadores no respeitante ao uso das telecomunicações, bem como a tarefa de manter o segredo das mesmas, pretendendo também, portanto, a defesa da privacidade.

As telecomunicações são também protegidas pelo artigo 10º da Lei Fundamental alemã192, que regula o segredo da correspondência, dos correios e das telecomunicações,

187 PAULO MOTA PINTO, última op. cit., p. 517

188 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 217 189 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 219

190 Que transpôs a Diretiva 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Julho de 1995, revogada pelo Regulamento

(UE) 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016. Disponível em http://www.gesetze-im- internet.de/englisch_bdsg/index.html

191 Disponível em http://germanlawarchive.iuscomp.org/?p=692 192 ARMIN HOLAND, op. cit. p. 108

incluindo-se aqui o correio eletrónico. Por outro lado, importa também o artigo 13º do diploma, que protege o domicílio e que garante às pessoas um espaço próprio, conferindo às pessoas o “direito a ser deixado tranquilo” num local privado193.

A tutela da privacidade na Alemanha encontra-se, assim, fortalecida, dando resposta aos desafios atuais colocados à privacidade.