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A tutela da privacidade nos Estados Unidos da América

CAPÍTULO I – A PRIVACIDADE

5. A tutela da privacidade no Direito Comparado

5.1. A tutela da privacidade nos Estados Unidos da América

Os Estados Unidos foram o berço da privacidade, sendo que vários fatores contribuíram para que assim tivesse sido. A agressividade do jornalismo sensacionalista, o tipo de sociedade existente no país no fim do século XIX e o avanço tecnológico em relação a outros estados foram elementos preponderantes145. Por outro lado, os valores sobre os quais a sociedade americana se encontra construída foram também relevantes146. Assim, o liberalismo democrático que representa a ideologia política fundamental no ordenamento jurídico do país funda-se sob os princípios da democracia, da liberdade, da educação e da liberdade de imprensa, que devem ser conciliados entre si e harmonizados com a privacidade de cada pessoa.

A privacidade perspetivada por WARREN e BRANDEIS, entendida como o right to be alone, que, sendo violado, corresponderia apenas a um tipo de dano, foi criticada em 1960 por PROSSER147, que defendeu a existência de quatro torts148, ou seja, quatro tipos de danos que correspondem à invasão de quatro interesses distintos. Os quatro torts são então: a intrusão na esfera privada, a revelação pública de factos privados, a publicidade que coloca a vítima a uma falsa luz aos olhos do público e a apropriação do nome ou da imagem. Estas quatro dimensões pouco têm em comum149, excetuando o

facto de que cada uma representa uma interferência no direito da pessoa lesada. Assim, a intrusão na esfera privada e a revelação pública de factos privados implicam a invasão de algo secreto ou privado do lesado, enquanto que a publicidade que coloca a vítima a uma falsa luz aos olhos do público e a apropriação do nome ou da imagem não implica essa mesma invasão. Embora a revelação pública de factos privados e a publicidade que coloca a vítima a uma falsa luz aos olhos do público dependam de publicidade, os outros torts não dependem, apesar de a apropriação do nome ou da imagem normalmente estar associada à publicidade. A publicidade que coloca a vítima a uma falsa luz aos olhos do público implica a existência de algo falso ou ficcional, sendo que não se verifica o mesmo

145 PAULO MOTA PINTO, última op. cit., p. 513

146 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 135 147 Op. cit., pp. 389 e ss

148 Como refere PAULO MOTA PINTO, última op. cit., p. 514, a categorização levada a cabo por PROSSER foi acolhida no Restatement (Second) of Torts, de 1967, e seguida pela maioria da jurisprudência.

149 O autor defende que, no que toca a qualquer um dos torts, o direito em causa é pessoal, não se estendendo aos membros da família.

Por outro lado, mesmo que a cause of action sobreviva depois da morte do autor, não há na common law um direito de ação relativo a uma publicação sobre alguém que já morreu, p. 408

em relação aos restantes torts. A apropriação do nome ou da imagem é o único tort em que a defesa da pessoa acusada se mostra necessária.

Assim, PROSSER criticou a aparente unidade da definição de privacidade dada por WARREN e BRANDEIS, já que, defendendo a existência dos diferentes torts, pretendeu mostrar que o que os autores entenderam por privacidade, na verdade, corresponde a vários tipos de valores e de interesses150.

Em 1964, BLOUSTEIN, num artigo intitulado de Privacy as an aspect of human dignity: an answer to Dean Prosser151, veio precisamente responder às conclusões teorizadas por PROSSER. O autor, referindo que, apesar da numerosa jurisprudência e doutrina surgidas desde o artigo de WARREN e BRANDEIS, destaca a existência de uma confusão considerável que se mantém no que diz respeito à natureza do interesse que o direito à privacidade pretende proteger. Assim, estabeleceu também que a sua ideia seria a de propor uma teoria geral da privacidade individual152, no fundo, retomar um conceito unitário de privacidade, exatamente o que PROSSER criticou.

BLOUSTEIN argumentou que os diferentes interesses, relacionados com os quatro torts, não representavam nenhum interesse caraterístico no tocante à privacidade. Assim, quanto à intrusão na esfera privada, o que estaria em causa seria o interesse na libertação de uma agonia psicológica. Nos torts relativos à revelação pública de factos privados e à publicidade que coloca a vítima a uma falsa luz aos olhos do público, identificar-se-ia um interesse na reputação. Quanto ao tort respeitante à apropriação do nome ou da imagem, relevaria aqui o interesse do proprietário. Desta forma, na sua análise, PROSSER reconduziu o que seriam ataques à privacidade a casos de difamação, danos mentais e apropriação indevida153.

Para BLOUSTEIN, os casos envolvendo a questão da privacidade são reconduzidos a um único dano e a uma única categoria. O homem, compelido a viver a sua vida entre os outros e estando certas dimensões, como os seus pensamentos, necessidades e desejos, sujeitas ao escrutínio público, tem sido privado da sua individualidade e dignidade humana. Desta forma, a sua individualidade funde-se com as massas154. Este problema levantado pelo autor, ainda nos anos 60, mostra-se também hoje

150 Neste sentido JOSÉ MARTÍNEZ DE PISÓN, op. cit. p. 33

151 In New York University Law Review, vol. 39, 1964, pp. 962-1007, in

http://courses.ischool.berkeley.edu/i205/s10/readings/week11/bloustein-privacy.pdf

152 EDWARD J. BLOUSTEIN, op. cit. pp. 962-963 153 EDWARD J. BLOUSTEIN, op. cit. pp. 965-966 154 EDWARD J. BLOUSTEIN, op. cit. p. 1003

(e cada vez mais) atual, na medida em que, com as NTIC, através do simples acesso à Internet, é possível partilhar diferentes tipos de informação com várias pessoas, em qualquer local do mundo, tudo isto em questão de segundos, o que levanta questões relacionadas com a individualidade do homem e com a influência das massas no seu domínio privado.

De facto, autores como WESTIN e ARTHUR MILLER debruçaram-se, nos anos 70, sobre as questões colocadas pelas novas tecnologias e as consequências destas no âmbito da privacidade, tendo abordado o que se entende por privacidade informacional155.

Desta forma, WESTIN, tendo por base os problemas que surgiram no ordenamento jurídico estadunidense, formulou a sua teoria, em termos de autodeterminação individual. A privacidade entendida pelo autor relaciona-se com a possibilidade de controlar a informação sobre si próprio e a forma como e quando essa informação pode ser conhecida e utilizada por terceiros. Este controlo material da privacidade não é, contudo, absoluto, uma vez que tem de se harmonizar com as normais sociais e com a vontade de comunicação e de participação.

Por seu turno, ARTHUR MILLER entendeu que a categorização proposta por PROSSER não mais se adequava aos ataques à privacidades perpetuados pelos avanços tecnológicos. Assim, o autor pretendia dar resposta aos perigos surgidos com a era da informatização, que trouxe consigo novos elementos para o debate jurídico sobre a privacidade. É que, além de permitir o controlo, a atualidade e a certeza da informação, as ferramentas informáticas permitem relativizar a ação por difamação e a ação por invasão da vida privada, esbatendo desta forma o limite entre a vida privada e a vida pública. Para o autor seria vital encontrar uma solução legal que compatibilizasse a privacidade e a tecnologia informática.

Consideramos que o contributo destes autores foi de extrema importância, uma vez que demonstraram a necessidade de uma atualização do conceito de privacidade, aliás, como WARREN e BRANDEIS tinham já alertado, mas desta vez face às ingerências na privacidade que o uso das NTIC permite. Podemos, porém, apontar uma crítica: neste contexto, a privacidade é entendida como um controlo sobre a informação, protegendo-se a informação que o indivíduo, enquanto ser individual, pretende. Contudo, a privacidade não pode ser simplesmente entendida como uma prerrogativa individual,

deve também ser vista como algo que a sociedade considera também ser apropriado proteger156.

Apesar da vasta jurisprudência e das inúmeras tentativas de teorizar o direito à privacidade, este direito não é expressamente reconhecido na Constituição americana. Ainda assim, o direito à privacidade revestiu-se de caráter constitucional, tendo sido reconhecido um direito constitucional à privacidade pela primeira vez em 1965, com o caso Griswold v. Connecticut157. O caso envolvia a existência de uma lei do Connecticut que proibia o uso de métodos de prevenção da conceção, sendo que a Sra. Griswold, diretora executiva da Liga de Planeamento Familiar do Connecticut, juntamente com o diretor médico da referida Liga, deu informações, instruções e conselhos médicos sobre controlo de natalidade a casais. Com este importante caso, reconheceu-se o poder de deduzir da Constituição direitos individuais, conferindo-lhes uma grande extensão. Por outro lado, o direito à privacidade, relacionado aqui com a informação de métodos contracetivos e de uso dos mesmos, aproximou-se da tutela da liberdade individual158, protegendo a liberdade de decisão e de auto-definição do indivíduo. Esta liberdade de decisão e de escolha foi também aplicada pelo Supremo Tribunal em casos envolvendo o direito a abortar (Roe v. Wade) ou o direito à eutanásia (Doe v. Bolton e Kelley v. Johnson)159. Vemos então que, desta forma, a privacy abriga em si diferentes realidades,

sendo um conceito definido pela sua amplitude160.

Uma vez que a Constituição americana não tem uma enumeração taxativa de direitos, a Nona Emenda mostra ter um importante papel, uma vez que é uma cláusula aberta que permite a inclusão de novos direitos. Por sua vez, a Décima Quarta Emenda, consagra que todos os cidadãos não podem ser privados da vida, liberdade ou propriedade,

156 DANIEL J. SOLOVE, op. cit., pp. 1111-1112, que refere que a conceção de que os indivíduos têm um direito de propriedade

quanto à informação relativa a eles próprios tem a sua origem em John Locke, que afirmava que os indivíduos detêm direitos de propriedade sobre a sua pessoa e os frutos do seu trabalho.

157 GARY L. BOSTWICK, “A Taxonomy of Privacy: Repose, Sanctuary, and Intimate Decision”, in California Law Review, vol. 64, nº

6, Dezembro, 1976, in http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2434&context=californialawreview, p. 1466

158 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 149 159 RITA AMARAL CABRAL, op. cit., pp. 22-23

160 A este propósito, o Juiz Black, no seu dissent (voto de vencido), no acórdão Berguer v. New York, de 1967, disponível em

https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/388/41#writing-USSC_CR_0388_0041_ZD, caraterizou o conceito de privacidade como um “verdadeiro camaleão que muda de cor a cada momento”, mostrando assim a indefinição da privacy nos EUA. Entende RITA AMARAL CABRAL, op. cit., pp. 22-23 que no país se tem assistido a uma diluição do conceito de vida privada, já que se tem alargado de forma desmesurada os interesses tutelados pelo direito à privacidade. Neste sentido também PAULO MOTA PINTO, última op. cit., p. 515 destacando que a privacy é utilizada em casos onde estejam em causa quaisquer direitos fundamentais relacionados com a liberdade das pessoas, o que contribui para uma certa perda da unidade da privacy.

sem a existência de um devido processo legal, fazendo com que o Supremo Tribunal possa analisar casos que levantam estas questões relacionadas com a privacidade. Isto reforça o facto de que, embora não exista previsão constitucional do direito à privacidade, este existe, podendo ser inferido através das várias Emendas da Constituição que, de facto, demonstram a intenção do legislador em estabelecer determinadas expetativas de privacidade161.

Quanto à legislação que visa promover a proteção da privacidade, destacamos o Privacy Act, de 1974, alterado posteriormente em 1988 pelo Computer Matching Act. Este diploma aplica-se apenas quanto aos dados processados pelo governo federal, excluindo da sua proteção os dados tratados pelos governos dos diferentes estados ou pelo setor privado. Estabelece algumas regras de atuação, entre elas a obrigação de tentar ao máximo que a recolha de informação seja obtida diretamente da pessoa em causa. Por outro lado, a informação recolhida deverá ser apenas aquela que é considerada relevante e necessária, devendo estabelecer-se salvaguardas quanto à segurança dos dados recolhidos. Existe ainda a obrigação de manter registos da informação, aos quais os indivíduos possam aceder e corrigir, se necessário, determinados dados162.

Importante foi também o Electronic Communications Privacy Act (ECPA), de 1986, alterado em 2001 pelo USA Patriot Act, que, de uma maneira geral, tem como objetivo evitar que as comunicações eletrónicas de outrem sejam intersetadas, acessadas, divulgadas ou utilizadas163.

O USA Patriot Act surgiu em 2001, na decorrência do evento trágico de 11 de Setembro, por isso com o objetivo de reformar normas processuais que permitam facilitar a ação do Estado contra o terrorismo e quanto às questões relacionadas com a segurança nacional. Este diploma confere uma maior facilidade de acesso a informações pessoais, permite a expansão de formas de controlo ocultas e aumenta a possibilidade de interceção das comunicações eletrónicas, levando à criação de novos poderes do Estado e de novas

161 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 150

162 AVNER LEVIN; MARY JO NICHOLSON, op. cit., p. 362. Para mais desenvolvimentos, CHRIS HOOFNAGLE, “Big Brother’s

Little Helpers: How ChoicePoint and Other Commercial Data Brokers Collect and Package Your Data for Law Enforcement”, 29

North Carolina Journal of International Law & Commercial Regulation 595, University of California, Berkeley - School of

Information, 2004, in http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1677&context=facpubs, pp. 622-623 e JIM DEMPSEY, “Privacy’s Gap: The Largely Non-Existent Legal Framework for Government Mining of Commercial Data,” The Center

for Democracy and Technology, 2003, in https://cdt.org/files/security/usapatriot/030519cdt.pdf, pp. 4-6

formas de vigilância por parte do mesmo. Desta forma, o USA Patriot Act encerra em si uma redução das liberdades dos cidadãos164, sendo assim brutalmente criticado165.

Pelo acima exposto, podemos afirmar que a privacy nos EUA foi evoluindo em termos doutrinários, jurisprudenciais e legislativos, devendo ser entendido como um direito aberto. Entendemos que tal conceção de privacidade pode conferir uma vantagem uma vez que, face aos avanços tecnológicas e à rapidez com que estes surgem, o próprio direito se vai moldando e, dessa forma, acolhendo novas questões e permitindo respostas e soluções166.