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A tutela da privacidade em França

CAPÍTULO I – A PRIVACIDADE

5. A tutela da privacidade no Direito Comparado

5.4. A tutela da privacidade em França

A dignidade humana não é retratada na Constituição francesa, tendo, contudo, sido elevada a princípio de valor constitucional na decisão conhecida como decisão “bioética”, de 27 de Julho de 1997, pelo Conselho Constitucional. A dignidade surgiu então como um limite supremo, não representando uma proibição absoluta aos atentados à pessoa, mas como uma proibição de colocar a dignidade em risco194. Também a vida privada não é protegida diretamente na Constituição195.

O direito à reserva da vida privada encontra-se previsto no artigo 9º do CC francês, tendo sido reconhecido pela lei nº 70-643 de 17 de Julho de 1970. Esta conceção de vida privada não é nova196, mas a verdade é que este direito se desenvolveu essencialmente após a segunda Guerra Mundial.

O referido artigo institui que cada pessoa tem direito ao respeito da vida privada. Neste sentido, não se estabelecem precisões quanto ao que implica este direito e ao que engloba a vida privada197. Assim, o CC confere um direito subjetivo a todas as pessoas,

mas não é claro o objeto deste direito, as restrições que comporta e os deveres de

193 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 212

194 Para mais desenvolvimentos TERESA ALEXANDRE COELHO MOREIRA, última op. cit., pp. 236-237

195 Neste sentido ELISENDA BRU CUADRADA, op. cit. p. 86 e SOPHIE NERBONNE, “France”, in Employment privacy law in the European Union: surveillance and monitoring (coord. Frank Hendrickx), Intersentia, 2002, p. 91. Em 1993, através do relatório

Vedel, propôs-se que o artigo 66º da Constituição previsse o direito ao respeito da vida privada e à dignidade da pessoa. ESTELLE BOMBERGER, “Le droit à la vie privée: 20 ans d'une reconnaissance constitutionnelle”, in Montesquieu Law Review, nº 2, Julho, 2015, in http://www.montesquieulawreview.eu/mlr2/fulltexts_f/bomberger_fr.pdf, p. 3. Para uma incursão da questão da privacidade no ordenamento jurídico francês ver ESTELLE BOMBERGER, “Le droit à la vie privée: 20 ans d'une reconnaissance constitutionnelle”, in Montesquieu Law Review, nº 2, Julho, 2015, in http://www.montesquieulawreview.eu/mlr2/fulltexts_f/bomberger_fr.pdf

196 A este propósito PAULO MOTA PINTO, última op. cit., pp. 518-519, nota 107 refere a publicação, em 1868, da Loi relative à la Presse, em que aparece pela primeira vez a tutela expressa da vie privée.

abstenção impostos198. Podemos entender que a proteção conferida pelo direito referido

é relativa, dependendo das circunstâncias em que é invocado199.

Para FRANÇOIS RIGAUX200, o conteúdo do direito à reserva da vida privada,

direito que embora não comporte uma definição fácil, compreende três categorias de situações, a saber: atentados à vida privada, atentados à intimidade da vida privada e atentados à intimidade da vida privada que são objeto de incriminação penal. A primeira conceção abarca a segunda, sendo que a terceira é ainda mais restrita.

Em matéria de proteção da vida privada, a jurisprudência representa uma fonte de inspiração doutrinal201, sendo que o direito ao respeito da vida privada foi, no contexto francês, uma criação jurisprudencial. A jurisprudência começou por consagrar o direito ao segredo das cartas confidenciais e, posteriormente, o direito da pessoa sobre a sua imagem. De facto, não raras vezes o direito ao respeito pela vida privada foi confundido com o direito à imagem, sendo que um dos primeiros casos é o caso Rachel, do século XIX, reportando-se a fotografias ilícitas da atriz no leito de morte202. A tutela do respeito pelo direito à vida privada desenvolveu-se a partir de 1955 e, a partir de 1965, registaram- se diversos casos relativos ao respeito pela vida privada de pessoas conhecidas. Neste sentido, a vida privada difere conforme a pessoa que esteja em causa, isto é, conforme a exposição pública da mesma. Nesta decorrência, definiu-se os limites entre o respeito pela vida privada e o direito do público à informação e a liberdade imprensa. A este propósito, destacamos dois casos desta época, que contribuíram para a formação do direito ao respeito pela vida privada e para a delimitação deste, nomeadamente por ação da vida pública. Assim, em 16 de Março de 1955, o Tribunal de Paris julgou o caso sobre a publicação das memórias da atriz Marlene Dietrich, destacando e opondo os conceitos de vida pública e de vida privada da pessoa. O mesmo tribunal julgou, em 6 de Julho de 1965, o livro de memórias Vivre avec Picasso, escrito por uma antiga companheira do pintor Pablo Picasso e que dava conta de aspetos privados da sua vida. Atualmente, os

198 FRANÇOIS RIGAUX, La protection de la vie privée et des autres biens de la personalité, Bibliotheque de la Faculté de Droit de

L’Université Catholique de Louvain, 1990, pp. 724-725, que entende que é impossível, e também inútil, definir vida privada. Ainda assim, refere que a noção americana de privacy é mais abrangente do que a noção francesa de vie privée, “La liberté…”, cit., p. 541

199 AGATHE LEPAGE, Libertés et droits fondamentaux à l’épreuve de l’internet – Droits de l’internaute, Liberté d’expression sur l’Internet, Responsabilité, Litec, Paris, 2002, pp. 101-102

200 Última op. cit. pp. 718-719

201 AGATHE LEPAGE, “La vie…”, cit., p. 364

202 PAULO MOTA PINTO, última op. cit., pp. 518-519, nota 107 e TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit.,

tribunais entendem que as pessoas conhecidas têm direito à sua privada e que, sem o seu consentimento, apenas pode ser divulgada a vida pública ou profissional das mesmas203.

Apesar de a Constituição francesa não abordar as NTIC, face às violações de privacidade que os meios tecnológicos permitem e facilitam204, revelou-se necessária uma resposta aos perigos criados. Assim, estas matérias começaram a ser tratadas na decisão do Conselho Constitucional de 18 de Janeiro de 1995, relativa à videovigilância e confirmada posteriormente pela decisão de 23 de Julho de 1999205.

No seguimento das ameaças tecnológicas, a lei n° 78-17 de 6 Janeiro de 1978, relativa à informática, aos ficheiros e às liberdades e alterada pela última vez em Novembro de 2016206, institui que a tecnologia informática não deve violar a identidade humana, os direitos humanos, a privacidade e as liberdades individuais ou públicas. O diploma aplica-se ao tratamento automatizado de dados e ainda ao tratamento que não seja considerada automatizado, sendo que por dados pessoais entendem-se aqueles que dizem respeito a uma pessoa identificada ou identificável. O tratamento destes dados engloba as operações de recolha, registo, organização, conservação, adaptação, modificação, extração, consulta, utilização, comunicação através de transmissão, difusão ou outra qualquer forma de colocar os dados disponíveis, junção, bloqueio ou destruição dos dados. Relacionado com esta lei, destacamos o Decreto-Lei nº 2005-1309207 de 20 de

Outubro de 2005, modificado pela última vez em Dezembro de 2016, que aborda a Commission Nationale de L'informatique et des Libertés (CNIL), responsável por proteger os cidadãos dos seus direitos e de os informar sobre as questões relativas à aplicação da informática e à influência desta quanto aos seus dados pessoais208.

A tutela do direito ao respeito pela privada, embora não encontre assento na Constituição, é, de certa forma, elevada a este nível, face às importantes decisões do

203 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., pp. 239-240

204 A este propósito, referimos o projeto SAFARI, levado a cabo pelo Instituto Nacional de Estatística francês e que tinha como

objetivo a “interconexação de ficheiros nominativos da administração graças a um número de identificação único e pretendia recolher informações pertinentes repartidas pelos diferentes repertórios de dados públicos”. Para mais desenvolvimentos TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., pp. 244-245

205 TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, última op. cit., p. 244

206 Que transpôs a Diretiva 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Julho de 1995, revogada pelo Regulamento

(UE) 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016. Disponível em https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000886460. Como refere AGATHE LEPAGE, “La vie…”, cit., p. 374, é um dos pilares de proteção em matéria de tratamento de dados de caráter pessoal.

207 Disponível em https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000241445 208 Entre outras missões aos quais esta Comissão se propõe. Para mais desenvolvimentos https://www.cnil.fr/fr

Conselho Constitucional. Por outro lado, é também protegido por diplomas que visam proteger aspetos respeitantes à relação entre a vida privada e a informática209.