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A privacidade no local de trabalho

CAPÍTULO III – AS COMUNICAÇÕES ELETRÓNICAS DO TRABALHADOR

3. O controlo do correio eletrónico

3.1. A privacidade no local de trabalho

É importante questionar se podemos falar de um direito à privacidade no local de trabalho, se ao trabalhador é conferido um reduto no ambiente em que realiza a sua prestação laboral.

Consideramos que a privacidade no local de trabalho é incontestável537. Como vimos, o direito à privacidade, decorrente da dignidade humana, é indispensável para a pessoa538, devendo também ser reconhecido na empresa. Entendemos que o trabalhador tem uma expetativa legítima de privacidade, uma vez que é no local de trabalho que desenvolve uma parte significativa e importante das suas relações sociais539. De facto, no local de trabalho é incontornável e manifesta a tutela que deve ser conferida aos direitos, uma vez que é nesse mesmo local que os trabalhadores passam grande parte do seu tempo e onde definem uma parte importante da sua vida540. A empresa não é apenas o local da execução da prestação laboral, é também onde acontecem atos que não se enquadram na esfera profissional541.

Neste contexto, justifica-se a proteção que deve ser conferida ao correio eletrónico, não só instrumento de trabalho, mas também um mecanismo de comunicação, que promove a interação entre as pessoas. Embora o sistema informático seja propriedade da empresa, as comunicações que o trabalhador tenha, utilizando o mesmo, não perdem a sua natureza pessoal, já que, se assim fosse, poderiam chegar-se a situações extremas como “a possibilidade de [a entidade empregadora], querendo, abrir as carteiras e fiscalizar o conteúdo das malas ou dos telemóveis dos trabalhadores pelo singelo facto de estarem guardados dentro de gavetas ou armários colocados dentro das suas instalações”, como sagazmente se aponta no acórdão de 07/03/2012, do Tribunal da Relação de Lisboa. O trabalhador espera que as comunicações pessoais que mantenha continuem privadas, nomeadamente porque o acesso ao correio eletrónico é, geralmente, limitado

537 Assim ROMAIN ROBERT; KAREN ROSIER, Réglementation et contrôle de l'utilisation des technologies de la communication et de l'information sur le lieu de travail, in “Le Droit du Travail à l’Ére du Numérique”, in Anthemis, 2011, in

http://www.crid.be/pdf/public/6851.pdf, p. 231

538 Neste sentido, consultar p. 11

539 GRUPO DE PROTEÇÃO DE DADOS, Documento de trabalho sobre a vigilância das comunicações eletrónicas no local de trabalho, de 29 de Maio de 2002, in http://ec.europa.eu/justice/policies/privacy/docs/wpdocs/2002/wp55_pt.pdf, p. 4

540 GEORGE RADWANSKI, Address to the University of Toronto and Lancaster House Conference on New Developments in

Workplace Privacy, Canadá, 2001, in https://www.priv.gc.ca/en/opc-news/speeches/02_05_a_010406/

por palavra-passe e colocado exclusivamente à sua disposição542, o que confere a

sensação de que existe um certo grau de privacidade no envio e na receção de e-mails. Sobre este ponto, aludimos ao referido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/03/2012, a propósito do uso do messenger, podendo aplicar-se o mesmo raciocínio à utilização do e-mail: “As pessoas, normalmente, quando estão em círculos privados e fechados, em que sabem que só são escutadas pelo destinatário ou destinatários presentes (…) falam à vontade, dizem disparates, queixam-se, exageram, troçam de terceiros”. Assim se alude à expetativa de privacidade, aplicável às comunicações privadas que se mantenham. No caso do correio eletrónico coletivo, caraterizado por ser um endereço partilhado por vários trabalhadores, pelo contrário, a expetativa de privacidade de cada um será reduzida, já não estando em causa mensagens dirigidas a um destinatário individualizado, mas à empresa em si. Desta forma, não está em causa uma comunicação fechada, pelo que a entidade empregadora terá legitimidade de acesso a mensagens integradas num endereço eletrónico coletivo543.

Por outro lado, constatamos a dificuldade em separar a vida pessoal do trabalho, sendo complexo para o trabalhador, assim que entra na empresa, deixar à porta os seus problemas familiares, as suas vivências pessoais. Neste sentido, mesmo que exista uma proibição de utilização dos instrumentos de trabalho para fins de caráter não profissional, consideramos razoável que o trabalhador, até para se poder concentrar no trabalho, possa contatar a família para, por exemplo, saber se o filho, que está doente, se encontra melhor544. É, no fundo, olhar para além do trabalhador e ver a pessoa em causa.

Parece-nos ser também essencial a ideia de que se, atualmente, assistimos a uma maior flexibilidade de horários e um esbatimento da fronteira entre a vida pessoal e a vida profissional, sendo que não raras vezes o trabalhador continua as suas tarefas em casa, então deve haver reciprocidade e permitir que o trabalhador possa despender de algum tempo de trabalho com questões de foro pessoal545.

Sobre a posição de que a privacidade não se aplica no local de trabalho546, podem ser apontados dois argumentos: a ideia de que o direito à privacidade terá menos importância nas relações privadas, incluindo a relação de trabalho, e a conceção de que

542 CHRISTINE NEYLON O’BRIEN, op. cit. p. 578 e MICHAEL W. DROKE, op. cit., p. 184

543 AMADEU GUERRA, última op. cit., p. 370 e MARIA RAQUEL GUIMARÃES; MARIA REGINA REDINHA, op. cit., p. 664 544 Assim entende JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, op. cit. p. 323, aplicando o referido raciocínio ao uso do telefone. 545 RITA GARCIA PEREIRA, op. cit. 195

enquanto o trabalhador se encontra na empresa simplesmente não está a usufruir de “tempo privado”. O primeiro argumento pode ser explicado através do raciocínio de que as intromissões na privacidade levadas a cabo pelas entidades estatais serão mais lesivas do que as perpetuadas por entes privados. Não concordamos, uma vez que o empregador ocupa uma posição de poder na relação de trabalho análoga àquela que o Estado ocupa na sua relação com os cidadãos, podendo o direito à privacidade, na relação laboral, sofrer fortes intromissões, precisamente devido à posição de supremacia que a entidade empregadora assume. Quanto à visão de que durante os momentos de trabalho o trabalhador não estará a desfrutar de “tempo privado”, o que está aqui em questão é que, como já defendemos, não é possível para o ser humano ser inibido total e permanentemente da sua privacidade durante o horário laboral. Faz parte da natureza humana a necessidade de um domínio privado, que não deverá ser colocado em risco pelo facto de a pessoa se encontrar a realizar a sua prestação laboral.

No emblemático caso Nikon, o Tribunal decidiu que “o trabalhador tem direito, mesmo durante o seu tempo e local de trabalho, ao respeito pela vida privada; esta implica, em particular, o segredo de correspondência, não podendo o empregador violar esta liberdade fundamental, tomar conhecimento das mensagens pessoais emitidas pelo trabalhador e por ele recebidas graças a um utensílio informático colocado à disposição para o seu trabalho, mesmo que aquele tenha interdito uma utilização não profissional do computador”. Reconheceu-se, assim, o direito à privacidade no local de trabalho547 e

traçou-se, de forma concreta, a fronteira jurídica entre a proteção conferida ao e-mail enviado ou recebido enquanto trabalhador e a mensagem enviada ou rececionada enquanto pessoa548. Ao estabelecer que, mesmo que nos casos em que existe uma vedação de utilização dos meios informáticos para fins pessoais, tal não permite a consulta dos e- mails pessoais, salvaguarda a privacidade do trabalhador. Ao contrário, nas já referidas sentença 4053/2010, de 6 de Outubro de 2011 e na sentença 170/2013, de 7 de Outubro, que criticamos, os tribunais entenderam que a expetativa de privacidade ficaria afastada pelo facto de, nos casos em apreço, a entidade empregadora ter proibido de forma absoluta o uso dos meios informáticos para fins pessoais, pelo que a ingerência no correio

547 AGATHE LEPAGE, “La vie privée (…)”, cit., p. 366 548 ARIANE MOLE, op. cit., p. 84

eletrónico dos trabalhadores não consubstanciou um abuso dos seus direitos, tendo o despedimento sido considerado lícito549.

Também a jurisprudência do TEDH estabeleceu claramente que o trabalhador tem direito a ver protegida a sua privacidade no local de trabalho550. No já citado caso Copland v. United Kingdom, de 2007, o Tribunal entendeu que, efetivamente, se poderia falar num atentado à vida privada a propósito do uso de meios de comunicação no local de trabalho. Contudo, considerou que a prestação de informações adequadas sobre a utilização dos instrumentos informáticos, dadas ao trabalhador pelo empregador, poderá reduzir a expetativa de privacidade do trabalhador551.