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A hora da voz, a vez da palavra : a poética-musical da Bossa Nova e da Seconda Pratica

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

HENRIQUE CANTALOGO COUTO

A HORA DA VOZ, A VEZ DA PALAVRA: A

POÉTICA-MUSICAL DA BOSSA NOVA E DA

SECONDA PRATICA

Campinas

2017

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HENRIQUE CANTALOGO COUTO

A hora da voz, a vez da palavra: a poética-musical da Bossa Nova

e da Seconda Pratica

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Música, na Área de Concentração: Teoria, criação e prática.

Orientadora: Profa. Dra. REGINA MACHADO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO HENRIQUE CANTALOGO COUTO, E ORIENTADO PELA PROFA. DRA. REGINA MACHADO.

Campinas 2017

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Agradecimentos

Aos meus amados pais, Roseli e Lucélio, por todo o apoio, pela fonte inesgotável de afeto, carinho e motivação. A meus irmãos, Hugo e Laura, pelo carinho e parceria. À Beatriz Coimbra, pela luz que ilumina tanto do que eu vejo... e torna tudo tão mais bonito. Agradeço imensamente à Regina Machado, por acolher meu trabalho e minhas ideias e pelos preciosos comentários, correções e orientações realizadas neste texto. Ao Marcelo Onofri, pela amizade, pela generosidade e por todos os horizontes revelados. Ao José Augusto Mannis, pela generosidade, pelo exemplo ímpar de competência e seriedade e por catalisar um salto sem precedentes em minha formação. Ao Edmundo Hora, pela germinação deste trabalho, pelos ensinamentos e pelo período de orientação. Aos funcionários e professores do Instituto de Artes da UNICAMP, em especial à Helena Jank e Suzel Reily, com as quais aprendi muito nas disciplinas do curso de Pós-Graduação da UNICAMP. À CAPES, pelo apoio financeiro que permitiu que eu realizasse este trabalho com o tempo e a dedicação necessária. Aos amigos Theo de Blasis, Lucas Uriarte, Marcelo Chacur, Fernando Sagawa, Fábio Evangelista, Gabriel Rimoldi, Eduardo Pereira, Camilla dos Santos, Fernando Goldenberg, Nelson Dias, Gabriel Valladão, Thiago Xavier, e tantos outros, com os quais a minha vida em Barão Geraldo nestes últimos anos se tornou uma experiência acima de tudo divertida e enriquecedora.

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Resumo:

Este trabalho propõe um estudo comparativo entre dois estilos musicais separados pelo tempo e pelo espaço: a Seconda Pratica, estilo musical italiano do início do período barroco em música, mais especificamente do início do século XVII; e a Bossa Nova, estilo musical brasileiro nascido no final da década de 1950. Ao confrontarmos características estéticas e os contextos culturais envolvidos no surgimento de cada um dos estilos musicais em questão, verificamos a presença de diversas semelhanças, sobretudo na maneira como cada estilo propôs a utilização da voz no cantar, na instrumentação adotada, na concepção estética associada à ideia de economia e síntese e na relação entre música e texto. Ao abordarmos essas correntes artísticas e seus usos característicos da voz, fizemos uso de partituras, fonogramas, tratados históricos, entrevistas, textos de pesquisadores da área (livros, artigos, teses, dissertações e páginas da internet) e obras literárias como fontes de investigação.

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Abstract:

This work aims at a comparative study between two musical styles far apart in time and space: the early baroque Italian style of Seconda Pratica and the Brazilian Bossa Nova which emerged in the late fifties of the twentieth century. In comparing aesthetic traits and the cultural environments of each of these musical styles we find a series of similarities, chiefly concerning the means by which each of them established a proper practice of singing, the instrumentation displayed and the aesthetic conception associated with the notions of economy and synthesis, and the relationship between music and text. In order to approach these artistic currents which had their innovative proposals unfolded in their use of voice, we'll resort to musical scores, audio recordings, historical treatises, interviews, reports of research in the field (books, papers, doctoral theses and dissertations, webpages) and literature as sources for our investigation. Keywords: Seconda pratica, Bossa Nova, Spoken singing, Recitative, Tune.

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Lista de figuras

Figura 1: Diagrama de George List______________________________________________25 Figura 2: Primeira página do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi__________41 Figura 3: Compassos 13 e 14 do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi_______42 Figura 4: Excerto homofônico em “Cruda Amarilli”_________________________________44 Figura 5: Primeira página do madrigal “Sfogava con le stelle” de Claudio Monteverdi______46 Figura 6:“Tu se Morta!” de Monteverdi, do segundo ato da ópera Orfeu (1607)___________47 Figura 7:Excerto de “Amor, fortuna” de Palestrina_________________________________50 Figura 8:Compassos 7 e 8: dissonância preparada no madrigal de Palestrina_____________51 Figura 9: Excerto do Credo da Missa Papa Marcelli, de Palestrina______________________58 Figura 10:Excerto do Recitativo “Movetevi Pietà”, do livro “Le Nuove Musiche” (1601) de Giulio Caccini_______________________________________________________________69 Figura 11:Prologo da ópera “Euridice” de Jacopo Peri_______________________________71 Figura 12:Excerto de monodia de Caccini com baixo contínuo não realizado_____________75 Figura 13: Exemplo de Recitativo acompagnato. Excerto da fala de Jesus em Paixão segundo S. Mateus, de J. S. Bach_______________________________________________________77 Figura 14: “e Pedro chorou amargamente”, excerto de um Recitativo da Paixão Segundo São João de J. S. Bach____________________________________________________________81 Figura 15: Excerto da Modinha “Anália Ingrata” (1859) de Carlos Gomes_______________92 Figura 16: Croqui de Niemeyer: objetividade e despojamento________________________104 Figura 17: Exemplo de poesia concreta. “Tensão” (1956) de Augusto de Campos________104

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Figura 18: Excerto da canção "Chega de Saudade"_________________________________106 Figura 19: Excerto de “Chega de Saudade”_______________________________________110 Figura 20: Seção em Ré maior de “Chega de Saudade”_____________________________111 Figura 21: Exemplo de alteração métrica na interpretação de João Gilberto_____________117 Figura 22: Marcação básica da Bossa Nova______________________________________125 Figura 23: Fases rítmicas mais características do samba, segundo Gilberto Mendes_______125 Figura 24: “Ritmo de Habanera”, segundo Carlos Sandroni__________________________126 Figura 25: Variações da batida da Bossa Nova segundo Gilberto Mendes_______________128 Figura 26: Transcrição rítmica da melodia cantada e do acompanhamento no violão da canção “Bim Bom”, de João Gilberto__________________________________________________129 Figura 27: João Gilberto e seu violão, em 1991____________________________________147 Figura 28: “Tocador de Alaúde” (1594) do pintor italiano Caravaggio (1571 – 1610)______149 Figura 29: Primeira página da canção “Modinha”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes____153 Figura 30: Segunda página da canção “Modinha” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes____154

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12 Estrutura do trabalho e descrição de seus objetivos______________________12

CAPÍTULO 1: Canto, fala e canto-falado 16 1.1 Breve incursão sobre os conceitos de canto, fala e canto-falado_________16 1.2 O canto-falado à luz da Etnomusicologia __________________________20 1.3 O canto-falado para alguns pensadores brasileiros ___________________28 1.4 Nó nos conceitos: uma questão de escuta __________________________34

CAPÍTULO 2: A Seconda Pratica 37 2.1 A controvérsia Artusi versus Monteverdi___________________________38 2.2 A Prima Pratica ______________________________________________49 2.3 A questão da inteligibilidade do texto cantado_______________________54 2.4 Camerata Fiorentina __________________________________________58 2.5 O Recitativo – falar em harmonia ________________________________ 65 2.6 Baixo contínuo_______________________________________________ 73 2.7 Ária versus Recitativo _________________________________________ 78

CAPÍTULO 3: A Bossa Nova 82 3.1 A musicalidade da fala na canção brasileira ________________________ 83 3.2 Samba-canção e Bossa Nova____________________________________ 95 3.3 Chega de Saudade____________________________________________105

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3.4 O canto-falado de João Gilberto_________________________________113 3.5 A batida bossa nova__________________________________________ 122 3.6 A instrumentação e o arranjo na Bossa Nova ______________________ 131

CAPÍTULO 4: Tecendo paralelos 134 4.1 A busca pelo canto-falado _____________________________________ 134 4.2 A sprezzatura como ideia de naturalidade_________________________ 141 4.3 O banquinho e o alaúde_______________________________________ 144 4.4 A expressão dos afetos________________________________________156

Considerações Finais 161

Referências _________________________________________________________162 Livros ________________________________________________________162 Artigos_______________________________________________________ 165 Teses, Dissertações e Monografias_________________________________ 167 Sites e Internet_________________________________________________ 168 Referências fonográficas _________________________________________169 Referências musicais em partitura__________________________________173

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INTRODUÇÃO

Estrutura do trabalho e descrição de seus objetivos

o novo não me choca mais nada de novo sob o sol

apenas o mesmo ovo de sempre choca o mesmo novo

Paulo Leminski

Este trabalho partiu de um vislumbre fugaz, ocorrido há alguns anos, ao reconhecer um certo grau de parentesco entre dois estilos de música vocal a princípio distantes, pelo menos em seus contextos geográficos e cronológicos. De um lado, o repertório de monodias italianas do início do período barroco em música – mais especificamente no início do século XVII – tipicamente interpretadas por um cantor solista com o acompanhamento de um instrumento harmônico e associadas ao estilo que passou a ser chamado de Seconda pratica. De outro, as canções da Bossa Nova, de um Brasil das décadas de 1950 e 1960, muitas vezes também interpretadas por uma voz solo e acompanhadas por um instrumento harmônico; um banquinho e um violão.

Na busca pelo desenvolvimento desta ideia inicial, por meio de uma investigação essencialmente comparativa entre cada um desses contextos poético-musicais, aspectos bastante similares acabaram se evidenciando, sobretudo nos traços estéticos do canto, na instrumentação utilizada, no modo de articulação entre texto poético e música e no ideal presente em ambos os estilos que se manifesta na busca pelo sintético e essencial.

Por meio deste processo de comparação, emergiu a constatação de que características associadas a um estilo ou gênero musical particular podem encontrar

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correspondências, diretas ou indiretas, com traços estéticos de estilos cronologicamente e/ou geograficamente distantes. Em outras palavras, por trás da sedimentação de cada estilo ou prática artística existe um percurso genealógico que culmina com a emergência deste novo estilo, de um novo jeito de se fazer e conceber, entretanto com a frequente apropriação de características de estilos antecessores. Neste contexto, com um certo olhar panorâmico percebe-se que várias das inovações proclamadas por determinado estilo musical podem encontrar aspectos em comum com práticas anteriores1.

Em termos metodológicos, houve a tentativa de se preservar um caráter dialético, almejando contrapor as ideias e soluções encontradas em cada um dos estilos e repertórios de modo a sintetizar aquilo que, do ponto de vista estético-composicional-interpretativo, une-os ante o mesmo objetivo: valorizar a palavra em suas interações com a música. Por este motivo, vale ressaltar que ao abordarmos aqui estilos e gêneros como Recitativo, Canção, Ópera, Madrigais e Cantatas, entre outros, estamos nos referindo a criações artísticas poético-musicais por excelência, onde música e texto poético imbricam-se e tornam-se de certa forma indissociáveis.

Além disso, partimos da ideia de que a análise destes repertórios, bem como sua posterior comparação, devesse partir de um olhar com múltiplos focos, contando com o suporte teórico de plataformas variadas, como partituras, fonogramas, tratados históricos, entrevistas, textos de pesquisadores da área (livros, artigos, teses, dissertações e páginas da internet) e, inclusive, obras literárias.

A respeito deste último item mencionado, inserimos com certa frequência excertos de obras literárias em nosso trabalho, tanto de poemas quanto trechos de alguns Romances. Nosso intuito com isso está em oferecer momentos de síntese sensível acerca de temas explorados ao longo do texto ou mesmo nos utilizarmos de uma valiosa descrição historicamente informada por alguns Romances de costumes, sobretudo da relação entre a música e a sociedade brasileira dos séculos XIX e XX.

Além disso, o próprio título da Dissertação faz menção a um texto literário específico: o conto “A Hora e vez de Augusto Matraga”, do livro Sagarana de João Guimarães Rosa. Neste conto, frequentemente é invocada a frase “Cada um tem a sua

1 A esse respeito, Flô Menezes sintetiza: “a não-linearidade histórica reemprega constantemente elementos ou aspectos do passado, refuncionalizando-os a novos fins” (MENEZES, 2002, p. 153).

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hora e a sua vez...”2, podendo o termo “a hora e vez” ser entendido como momento

oportuno, a aurora de, o destino final. Nesse sentido, por tratarmos nesta Dissertação de dois estilos vocais cujas propostas se centralizam na valorização da palavra em música, sugere-se pelo título que voz e palavra têm sua hora e vez concedidas e reveladas pela música da Seconda Pratica e da Bossa Nova.

Em relação às menções feitas a fonogramas específicos ou exemplos musicais com ou sem a presença de partitura no decorrer do texto, oferecemos no final da Dissertação uma lista com o link de cada exemplo musical mencionado, a ser encontrado no item Referências Fonográficas, para que o leitor possa acessar de maneira fácil o exemplo musical durante a leitura, em plataformas virtuais como o

youtube.

Já em termos estruturais, esta Dissertação é construída com o intuito de apresentar cada estilo musical separadamente ao leitor, na tentativa de se construir um percurso claro e didático culminando com uma discussão final, que discorre justamente sobre a comparação entre os dois estilos, organizada em distintos pilares: na maneira de se utilizar a voz no canto, na instrumentação e no tratamento ao acompanhamento musical e na articulação entre música e texto poético. Assim, a Dissertação apresenta quatro capítulos, a saber:

No Capítulo 1, realizaremos uma breve discussão acerca de alguns conceitos e ideias envolvendo as definições, diferenças e semelhanças das emissões canto, fala e seus estados intermediários, os cantos-falados.

No Capítulo 2, denominado como “A Seconda Pratica”, mencionaremos o episódio histórico envolvendo a controvérsia entre o teórico italiano Giovanni Maria Artusi e o compositor Claudio Monteverdi, episódio que sintetiza as principais vertentes filosóficas e estilísticas da música italiana do início do período barroco e que inaugura o termo Seconda Pratica. Em seguida, apresentamos um breve panorama acerca da música e das ideias da Prima Pratica, no intuito de se contextualizar o estilo musical antecessor à Seconda Pratica em termos históricos e estéticos, discutindo, também, a questão da inteligibilidade do texto cantado durante o Renascimento. Em sequência, como tema central do capítulo, tratamos a respeito do grupo de compositores e teóricos italianos conhecido como Camerata Fiorentina, bem como suas principais ideias e

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publicações, em especial, o surgimento do Estilo Recitativo e sua influência em alguns estilos musicais sucessores. Por fim, discutimos quais as possíveis heranças deixadas pelo Estilo Recitativo para as gerações musicais posteriores, tangenciando o aparecimento da Ópera e a sedimentação de uma estrutura narrativa baseada na utilização do par ária versus recitativo.

No Capítulo 3, apresentaremos ao leitor o estilo Bossa Nova, expondo, assim como no Capítulo 2 em relação à Seconda Pratica, o contexto no qual ela surge e suas principais características poéticas e musicais. Para tal, partimos da discussão sobre a presença da oralidade na música popular brasileira, buscando incidências deste aspecto desde o gênero da Modinha até o surgimento da canção popular no século XX. Em sequência, discorreremos sobre as principais diferenças entre o samba-canção e a Bossa Nova, na tentativa de compreender em que sentido a Bossa Nova traz consigo novidades estéticas em relação aos estilos antecessores. Em seguida, nos aprofundaremos na figura do cantor João Gilberto, mais especificamente em sua maneira de tocar o violão e cantar, principalmente no que tange aspectos da intensidade e da dicção cancional. Posteriormente, nos aprofundaremos em alguns aspectos mais pontuais da estética musical do estilo, como a tentativa de aproximar o canto à fala, as características rítmicas e harmônicas da batida da Bossa Nova e o tratamento dado aos arranjos das canções do estilo.

No quarto e último capítulo, cujo o nome é “Traçando paralelos”, trataremos da construção de uma análise buscando investigar e elencar semelhanças poéticas e musicais entre os dois estilos musicais expostos nos dois capítulos anteriores. A discussão das semelhanças será realizada em três âmbitos: 1) no uso da voz, evidenciando a busca pelo canto-falado; 2) na instrumentação utilizada e no papel do instrumento acompanhador na estrutura das composições e da interpretação e 3) nas semelhanças no nível poético, evidenciando a busca pela expressão dos afetos e ideias do texto poético em música, seja pela sequência harmônica ou pela relação entre a linha melódica e a harmonia.

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CAPÍTULO 1

A fala, o canto e o canto-falado

Neste capítulo, trataremos das principais distinções e semelhanças entre a fala, o canto e a vocalização que se encontra entre ambas, chamada por nós de canto-falado. Para isso, nos utilizaremos das ideias e dos conceitos de diversos artistas e teóricos, no intuito de oferecer ao leitor um panorama deste universo conceitual. Por fim, trataremos da hipótese de que o elemento chave para a definição de uma vocalização pode estar no processo de escuta.

1.1 Breve incursão sobre conceitos de canto, fala e canto-falado

Ao dar vida a um texto, a voz veicula as palavras transformando-as em sons; mesmo em uma leitura silenciosa, o som das palavras lidas soa internamente no leitor. Por sua vez, as palavras, possuidoras de sentidos, quando sonorizadas, musical ou vocalmente, são carregadas ainda de outros sentidos e comunicam ao ouvinte suas ideias, intenções, imagens e afetos. Assim, o texto vivo pela voz e movido pela entoação revela o conteúdo semântico de cada termo vocalizado e o conteúdo expressivo das elocuções musicalizadas.

A dualidade inerente a este processo nos faz pensar que na fusão da palavra com a voz, sempre há mais de uma faceta a ser considerada. Quando essa fusão se dá no domínio da música vocal, então, o intérprete age mesmo como um malabarista3,

equilibrando a perene tensão entre a música dita e as palavras cantadas.

No decorrer do percurso histórico da música vocal, a busca pela conciliação entre texto e música resultou em uma infinidade de maneiras diferentes de se utilizar a voz, ora privilegiando o aspecto musical, ora o aspecto textual, e em outras tantas vezes buscando um equilíbrio entre estas forças.

Nesse sentido, em um dos extremos destas distintas abordagens encontra-se o cantar sem a presença da palavra, onde a voz atua como um instrumento musical

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particular. Como um dos inúmeros exemplos deste tipo de proposta podemos mencionar o trabalho do cantor Demetrio Stratos (1945 – 1979). Stratos buscava no canto a “voz música”, livre da presença da palavra e da “dominação da voz pelo utilitarismo da função comunicativo-verbal”4. Seu canto experimentava diferentes tipos de ruídos

vocais e corporais, na busca de uma vocalidade que comunicasse além da palavra; na busca por uma voz que fosse veículo de si mesma5.

Mesmo no canto com a presença da palavra, por vezes deparamo-nos com propostas que privilegiam o aspecto musical em detrimento do aspecto textual, como no caso do repertório vocal polifônico do Renascimento, na obra de compositores como Giovanni Pierluigi da Palestrina (1526-1594) e Luca Marenzio (1553-1599), por exemplo. Este tratamento polifônico do texto cantado frequentemente gerava o problema de inteligibilidade do texto, já que as palavras não soavam simultaneamente nas diferentes vozes, ou mesmo, por vezes, os textos de cada voz eram diferentes entre si. De fato, o propósito essencial deste repertório “consistia no sofisticado relacionamento das diferentes vozes independentes num complexo emaranhado polifônico”6 e não na valorização do texto poético. Algo similar acontece em parte das

canções populares das últimas décadas, nas quais cantores muitas vezes passaram a adquirir um léxico próprio de termos que, antes de qualquer significado semântico mais claro, trazem uma ênfase no aspecto sonoro, como no scat singing, característico do

jazz, ou ainda nos tra-la-lás, shimbalaiês, yeah’s, iê-iê-iês, tchubi-rubas, asserehês,

lalaiás, bim boms, lererês, presentes em tantos refrães da música midiatizada.

Por outro lado, vemos a tentativa de valorizar a palavra através do canto desde a Grécia antiga. O filósofo grego Platão (428/427 –348/347 a.C.) acreditava que o ideal de música é servir sempre às palavras, a ponto de considerar, inclusive, que “não seria recomendável apresentar melodias e ritmos destituídos de palavras (…) porque, desse modo, seria impossível saber quais as intenções dos poetas com esses ritmos e essas harmonias78. Conforme veremos no capítulo seguinte, a diretriz de Platão ecoou

4

EL HAOULI, 2002, p. 48.

5

Para mais informações sobre o legado artístico deixado por Demetrio Stratos, ver “Demetrio Stratos: em busca da voz-música” de Janete El Haouli.

6

HARNONCOURT, 1993, p. 26.

7

Vale ressaltar que a terminologia utilizada por Platão, mais especificamente no uso dos termos “harmonia” e “ritmo”, não possui as mesmas acepções na atualidade. Para os gregos antigos, de modo geral, o termo “harmonia” se refere a ideia de “proporção”, “união de partes”, e não ao estudo da sucessão e relação dos acordes de uma composição. Essa questão é investigada pelo pesquisador Gonçalo Armijos Palácios em seu texto “Compreensão filosófica dos aspectos musicais”: “Não exagero ao dizer que a compreensão de um dos aspectos centrais da música é simultânea com a compreensão da própria essência

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em muitos outros períodos históricos e estilos musicais – um deles, a própria Seconda

Pratica – influenciando abordagens correlatas na busca pela valorização da palavra no canto. Este tipo de canto, cuja proposta central é enaltecer e conduzir a palavra, aproxima-se, sintomaticamente, da fala, um de seus vetores primordiais.

Nesse sentido, a voz falada se anuncia como momento ápice de um compromisso entre a vocalização e o aspecto textual. Não à toa, é quando a voz oferece à palavra o maior potencial de inteligibilidade e a música inerente a este tipo de vocalização – a entoação – “confirma” o ideal platônico de servir às palavras. O cantar, por sua vez, sobretudo o cantar tal qual a abordagem de Demetrio Stratos com sua “voz música”, um dos inúmeros tipos de canto sem a presença da palavra, trata-se de uma vocalização que privilegia o aspecto sonoro-musical. Assim, parece lógico dispor os termos canto e fala em dois distintos polos, ainda que ambas as vocalizações partilhem tantas similaridades. No infinito meio termo entre ambas, eis que surge o canto-falado, um canto que se faz ouvir como fala, ou vice-versa.

Interessa-nos, portanto, investigar estilos musicais aqui relacionados que, entre outras características, se utilizam do canto-falado como proposta estética. Em outros termos, estilos que buscaram um equilíbrio no tratamento dos âmbitos musicais e textuais na utilização da voz, muitas vezes aproveitando no ato composicional a musicalidade que brota do próprio texto poético falado ou recitado. Esse modo de cantar próximo da fala é característico da estética dos estilos musicais que serão abordados nos capítulos seguintes, configurando, assim, um dos principais parâmetros a ser considerado neste olhar transversal e comparativo que será construído entre Seconda

Pratica e Bossa Nova.

As propostas estéticas de canto-falado presentes nos estilos musicais supracitados, de maneira muito interessante, encontram incidências semelhantes ainda em outros estilos musicais de variadas épocas distintas, o que nos faz cogitar que o canto-falado, ou mesmo o canto que melodicamente se compatibiliza com a musicalidade inerente à fala cotidiana, funcione como um arquétipo na esfera das

do universo e da natureza humana. Quando Pitágoras descobriu a relação entre o comprimento das cordas e os sons produzidos por elas pôs os alicerces para uma transformação sem precedentes na visão que uma cultura teria sobre a realidade. Descobrindo a relação íntima entre os intervalos das notas e os números (quarta, quinta, oitava) chegou a uma teoria da harmonia que a fez extensiva não só à música como a todo o universo, incluído o ser humano. Assim, a harmonia musical não faz mais do que refletir a harmonia do universo.” (PALACIOS, 2001, p.1).

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vocalizações humanas, um meio de expressão verbivocomusical9 recorrente em um

recorte histórico, com incidências, como já vimos, desde a Grécia Antiga10 até às

últimas vanguardas artísticas11.

O canto-falado, por estar situado em uma contínua faixa de transição conceitual, um continuum entre as fronteiras de duas vocalizações (canto e fala), permite a existência de infinitas manifestações, assim como afirma o axioma da geometria euclidiana: existem infinitos pontos entre dois pontos quaisquer de uma reta.

Na busca por uma sistemática de classificação de vocalizações, inclusive de cada um dos possíveis cantos qualificados como canto-falado, até os dias de hoje, pesquisadores de diversas áreas esforçam-se para encontrar definições conceituais aplicáveis a contextos culturais múltiplos. Um exemplo deste desafio é trazido pela pesquisadora Suzel Reily em seu texto “As vozes das folias: um tributo a Elizabeth Travassos Lins”:

(...) nem sempre aquilo que o analista ouve como canto é considerado canto nas sociedades em que se pratica a vocalização. Um exemplo frequentemente invocado por etnomusicólogos para demonstrar isto é a classificação da vocalização do alcorão; para ouvidos não-islâmicos essas performances podem soar como “canto”, mas, por a música ocupar uma posição ambígua no islamismo, os muçulmanos dizem que “recitam” o alcorão (JACOBSON, 2003-2005; NETTL, 1983:20), termo que, na língua portuguesa, aproxima-se mais da fala que do canto (REILY, 2014, p. 37).

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Termo cunhado por Augusto de Campos (CAMPOS, 1986). Em analogia ao termo “verbivocovisual” cunhado pelo poeta James Joyce (1882 – 1941), que tão bem define a Poesia Concreta, gênero poético brasileiro que será mencionado com maiores detalhes no Capítulo 3.

10 Acredita-se que no Teatro Grego “havia duas formas de cantos: os cantos corais e a monodia. Os

primeiros eram cantados por todo o coro, em dialeto dórico estilizado. As monodias eram cantos-solo de atores. ” (BOURSCHEID, 2008, p. 27). Este tipo de canto denominado monodia foi a base do que veio a ser os Recitativos no início do período barroco, conforme veremos no próximo capítulo.

11Um dos inúmeros exemplos a ser mencionado no âmbito das propostas musicais de vanguarda que

exploraram o canto-falado é o Sprechgesang, do compositor Arnold Schoenberg. Este tipo de proposta vocal foi explorado em obras como “Pierrot Lunaire”, conforme mencionaremos com maiores detalhes ainda neste Capítulo.

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Nesse sentido, nota-se que cada cultura se utiliza de parâmetros distintos na classificação de suas vocalizações, o que resulta, sintomaticamente, em definições de vocalizações divergentes para cada contexto.

Outra característica curiosa desta empreitada conceitual reside também no fato de que a busca por definições sobre o que é canto e o que é fala pode levar em consideração a intencionalidade do vocalizador: quem vocaliza pretende cantar ou falar? Em muitos contextos culturais, essa distinção entre o que é canto e o que é fala é feita pelo próprio grupo social em questão. Por sua vez, essas classificações nos oferecem informações valiosas sobre como grupos de diferentes contextos culturais compreendem suas vocalizações.

Pela dificuldade inerente a estas definições conceituais e pela multiplicidade de pontos de vista, nosso intuito aqui está mais relacionado em expor uma amostra de ideias diversas acerca dos termos e conceitos das vocalizações em questão do que eleger algum pensamento como base conceitual de nossa discussão. Assim, dividiremos a seção em duas frentes: na primeira delas, nos utilizaremos das ideias e reflexões de alguns trabalhos da área da Etnomusicologia12 e da História Oral, contando com o

valioso suporte dos autores George List, John Blacking, Anthony Seeger, Paul Zumthor e Suzel Reily; na segunda frente, com foco na discussão destas ideias no contexto brasileiro, nos utilizaremos das reflexões de Mário de Andrade, Luiz Tatit e Hermeto Pascoal.

1.2 O canto-falado à luz da Etnomusicologia

O texto The boundaries of speech and song (As fronteiras da fala e do canto), escrito pelo etnomusicólogo George List (1911-2008) e publicado em 1963, é considerado como um dos “primeiros estudos etnomusicológicos voltados para a demarcação de um campo estético que poderia ser chamado de canto” 13 e tem como objetivo primário construir um método de classificação onde possam ser feitas

12

Etnomusicologia, também conhecida como etnografia da música, tem por objetivo o estudo da música em seu contexto cultural ou estudo da música como cultura.

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distinções conceituais interculturais entre o canto e a fala. Esta busca conceitual, que parte da polarização entre as duas vocalizações, é fundamentada pelo autor por meio de parâmetros como estabilidade tonal e tessitura utilizada na vocalização, e preocupa-se, inclusive, com uma classificação adequada de outros tipos de vocalizações intermediárias entre os polos fala e canto. Para a elaboração de seu método de classificação e sua posterior discussão, List baseou-se na investigação de diversos tipos de canto de culturas diferentes, oriundos de seus estudos etnográficos, citando no decorrer do texto cantos dos índios Hopi do noroeste do Arizona, dos Maori da Nova Zelândia e das mulheres de Palau da Micronésia. Com isso, o autor objetivava pôr a prova seu sistema de classificação se utilizando de práticas musicais diferentes da música tonal europeia.

Logo no início de seu texto, List trata das similaridades das vocalizações canto e fala, apresentando a ideia de que são “duas formas de comunicação humana sonora” 14 e que dividem entre si pelo menos três características: são “1) vocalmente produzidas, 2) linguisticamente significativas, e 3) melódicas” 15. O critério de comparação utilizado entre as vocalizações, tanto canto e fala quanto seus estágios intermediários, é baseado principalmente na característica melódica de cada uma delas. Desse modo, List apresenta as seguintes definições: a fala é definida como uma elocução (utterance) casual, como em uma conversação. Conforme a fala deixa de ser elemento de uma conversação ordinária e passa a compor situações sociais mais estruturadas (como representações dramáticas, o contar de piadas e histórias) torna-se, então, uma fala salientada16 (heightened speech), um grau intermediário entre o cantar e o falar e que apresenta uma certa expansão da tessitura vocal e maior precisão das alturas. Canto, por sua vez, segundo List, é a uma vocalização que exibe alturas relativamente estáveis, possui uma estrutura escalar minimamente elaborada e apresenta pouca, ou nenhuma, influência melódica da entoação da fala17.

É importante ressaltar que as ideias expostas por George List em busca da precisa definição dos termos canto e fala entram em conflito com a ideia de outros pesquisadores. Especificamente em relação a definição de List para a vocalização

14 LIST, 1963, p.1. 15 Idem. 16

Termo traduzido por Suzel Ana Reily no texto “As Vozes das Folias: um tribute a Elizabeth Travassos Lins”.

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“canto”, o filósofo Jean-Jacques Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas propõe uma ideia bem distinta:

A melodia [do canto], imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das paixões. Imita as inflexões das línguas e os torneios ligados, em cada idioma, a certos impulsos da alma (ROUSSEAU, 1978, p. 190).

Desse modo, Rousseau, diferentemente da ideia apresentada por List, enxerga no canto uma influência direta das inflexões da fala.

De volta ao texto de List, o autor associa os parâmetros estabilidade das alturas e tessitura utilizada na vocalização como mecanismos definidores de diferentes vocalizações, de modo que quanto mais estáveis as alturas emitidas pela voz e maior a tessitura utilizada, mais esta vocalização aproxima-se do canto. A fala ordinária, devido a sua particular musicalidade, que nos remete a um percurso melódico caótico e que não utiliza uma tessitura ampla na vocalização, define-se por ser uma vocalização cujo as alturas são pouco estáveis18. A fala salientada, por sua vez, seria o que nomeamos nesse

trabalho como canto-falado, uma espécie de meio termo que se encontra entre o canto e a fala propriamente ditas e que abarca uma série de manifestações vocais.

Ao expor suas definições primárias, List ressalva o fato de que estas distinções não se organizam desta mesma maneira em outras culturas e cita a dificuldade em adaptar sua sistemática de classificação às línguas tonais19, haja vista

que, nestes casos, a entonação faz parte da estrutura semântica do idioma. Exemplos da riqueza de interpretações que envolvem as definições de canto e fala em culturas diferentes, podem ser encontradas ainda em outros trabalhos científicos de outros

18

Talvez por este motivo o compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874 – 1951), ao elaborar seu

Sprechgesang, ou Sprechstimme, sugeriu que a cantora abandonasse as alturas entoadas por meio de

glissandos. Essa diretriz na proposta de canto de Schoenberg é reforçada pela observação do próprio compositor no Prefácio de sua peça “Pierrot Lunaire”: “[o cantor deve] tornar-se extremamente consciente da diferença entre a entoação do canto e a entoação da fala: a entoação do canto permanece inalterável na altura emitida, enquanto a entoação da fala emite uma altura mas imediatamente a deixa de novo caindo ou subindo.”. (Becoming acutely aware of the difference between singing tone and speaking tone: singing

tone unalterably stays on the pitch, whereas speaking tone gives the pitch but immediately leaves it again by falling or rising.) (SCHOENBERG apud SONGER, 2016, p. 56).

19

(23)

autores. No texto Música, cultura e experiência do etnomusicólogo britânico John Blacking, o autor afirma que “os muçulmanos não classificam o canto Qur’anic como música, mas ele [o Qur’anic] possui características em comum com o canto gregoriano e com outros tipos de cantos que muitos musicólogos consideram como tal.” 20. Já no

livro Why Suyá Sing: A Musical Anthropology of an Amazonian People, o etnomusicólogo Anthony Seeger afirma que “entre os Suyá [grupo indígena brasileiro], a palavra ngere pode ser traduzida como canto, mas é contrastada com sarén, que se refere aos gêneros vocais de instrução, e não a kapérni, a palavra suyá para fala”21.

Chama-nos a atenção também alguns casos onde sequer existe a diferenciação entre os conceitos de poesia – que, de um modo geral, para nossa concepção atual remete a um gênero literário em versos – e música. Nestes casos, nota-se a relação quanota-se simbiótica que a música possui com a palavra. É o caso, por exemplo, da música do povo sul-africano Venda. No texto The Structure of musical discourse: the

problem of the song text, John Blacking afirma que “algumas sociedades sequer distinguem poesia e música. Nos Venda, versos recitados ritmicamente são tidos como música, e classificados como canto”22. Esta mesma ausência de distinções ocorreu no início do processo de desenvolvimento da tradicional música europeia, conforme explica-nos a pesquisadora Mônica Lucas:

No âmbito da composição, música e palavra já guardavam uma relação estreita praticamente desde o início da notação musical. Ela se dá pela afinidade sonora existente entre as duas artes, pois ambas lidam com ritmo e melodia. Esta identidade fica evidenciada no termo comum

carmen23, utilizado para descrever tanto música como poesia (LUCAS, 2010, p. 30).

O termo latino carmen, oferecido por Mônica Lucas, curiosamente parece encontrar uma certa correspondência a uma das acepções do termo mousikê na língua grega antiga. Conforme explica-nos o pesquisador Roosevelt Rocha Júnior:

20

BLACKING, 2007, p. 203.

21

REILY, 2014, p.37.

22 “Some societies do not even distinguish between poetry and music. In Venda, rhythmically recited

verse is music, and classed as ‘song’” (BLACKING, 1982, p. 18).

23 O plural de Carmen, Carmina, remete-nos a conhecida peça “Carmina Burana” de Carl Orff (1895 –

(24)

A palavra mousikê para os antigos gregos tinha significados diferentes do valor que a palavra “música” tem para nós hoje. Para os homens da Grécia antiga, dentre outras possibilidades semânticas, mousikê designava a união da melodia com a palavra; em certos contextos, como no da lírica coral e no dos coros das tragédias, acrescentava-se a dança. Por isso, a palavra poietês pode ser traduzida também por compositor. (ROCHA JÚNIOR, 2007, p. 32).

Nota-se que a terminologia utilizada em outros contextos culturais, cujo significado congloba os significados dos termos poesia e música, explicita a relação íntima que música e palavra possuem nestas culturas. Esta observação corrobora a ideia de que ao tomarmos conhecimento de como cada cultura classifica suas vocalizações, obtemos pistas importantes do papel da música e do fazer musical nestas sociedades.

Voltando a empreitada classificatória do etnomusicólogo George List, o autor desenvolve suas propostas ao tentar identificar matizes intermediárias entre os polos fala e canto e associar a estas “falas salientadas” duas distintas tendências: uma que vai em direção a uma maior expansão tonal da tessitura e menor precisão tonal, aproximando-se da ideia de sprechstimme (algo como o Sprechgesang de “Pierrot Lunaire” de Arnold Schoenberg); outra que vai em direção a uma menor expansão tonal da tessitura e maior precisão tonal, aproximando-se da ideia de Monoton (vide figura 1).

(25)

Figura 1: Diagrama de George List Fonte: LIST, 1963, p. 9.

Em síntese, com o diagrama cartesiano de List é possível associar a fala a uma vocalização de “expansão e precisão tonal limitada, enquanto o canto teria uma marcada expansão e precisão tonal” 24. Além disso, em seu texto List sugere que a voz, ao aproximar-se do canto, sofre uma progressiva aquisição de musicalidade, sugerindo, então, que o estado da voz cantada seja uma manifestação musical, enquanto a fala cotidiana não 25. Acerca disso, a pesquisadora Suzel Reily complementa:

24 REILY, 2014, p. 37.

25 A esse respeito, parece discordar o pesquisador Richard Paget, ao afirmar que “Toda fala, seja ela sussurrada ou vocalizada, é um fenômeno puramente musical”. (All speech, whether whispered or voiced,

(26)

Seja pelo contínuo fala–sprechstimme–canto ou fala–monotom–canto, List identifica uma progressiva “musicalização” da vocalização, processo que também poderia ser chamado de “estetização”, isto é, da inclusão de inflexões vocais com finalidades expressivas (REILY, 2014, p.37).

O mesmo ocorre com a ideia de progressiva aquisição de performatividade26 da voz ao aproximar-se do canto. A ideia de performativização da voz é abarcada por List ao associar a emergência da fala salientada ao abandono da conversação ordinária e ao aparecimento do uso da voz em situações sociais mais estruturadas. Neste fluxo, ao ouvinte passa a ser importante não apenas o que é dito, mas como é dito. E é justamente essa “maneira de se dizer” que pode deslocar uma vocalização neste continuum conceitual. Estendendo a discussão sobre a enunciação enquanto performance, e ainda retomando a problemática da conceituação entre fala e canto, apresentamos a transcrição escrita da fala do medievalista Paul Zumthor em sua entrevista a André Beaudet, excerto do livro “Escritura e Nomadismo”:

Quando falo, minha presença física tende a se atenuar mais ou menos, eu me dissolvo nas circunstâncias. Se eu canto, eu me afirmo, reivindico a totalidade do meu lugar, do meu estar no mundo. É a razão pela qual, creio eu, a maioria das performances poéticas são mais cantadas do que ditas. No entanto, por onde passa a fronteira? Tomemos o exemplo do blues. Por longa data, houve blues falados, os

talking; depois, os blues cantados, e, mesmo assim, não penso que seja possível fazer uma distinção nítida entre ambos: havia uma espécie de gradação, ao longo da qual, de repente, percebeu-se que, sem sentir se havia mudado de registro. Insisto no sem sentir. (ZUMTHOR, 2005, p. 71-72)

26Para o pesquisador Paul Zumthor “a performance é virtualmente um ato teatral, em que se integram

todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias nas quais ele existe. Retomemos um poema de Milton: num certo momento este poema foi escrito; poderia portanto dizer: é escritura. Mas então intervém a voz, na transmissão do poema, na audição que dele fazemos. Contrariamente ao que se passa na leitura, ato diferido, quando um poeta declama seu próprio texto, estamos diante dele numa situação de diálogo, uma imediatez se estabelece entre sua palavra, a percepção que temos dele e os efeitos psíquicos que ele gera em nós. ” (ZUMTHOR, p.69, 2005)

(27)

Em suas ideias Paul Zumthor explicita a crescente aquisição de

performatividade na voz ao aproximar-se do canto. Além disso, ao se utilizar do termo “gradação” ao citar a diferença entre os blues cantados e os falados, insere-se no rol dos teóricos que concebem o par canto e fala como continuum, no caso de Zumthor, um

continuum absolutamente sutil, sem estrias ou fronteiras perceptíveis ao ouvinte.

Ainda a respeito das diferenças entre canto e fala, Henri Pousseur oferece uma interessante observação, agora com foco sobre o processo de sistematização e notação destas duas vocalizações:

Embora o material da língua seja, de certo modo, o mesmo que o material da música – o som com todas as suas variantes, a variante de tempo (articulação no tempo, no ritmo), a variante de altura, a variante de timbre, de dinâmica, de intensidade –, essas variantes foram sistematizadas e anotadas diferentemente. A notação da linguagem, o alfabeto, é uma notação principalmente centrada sobre o timbre. As vogais e as consoantes são a oposição dos sons e dos ruídos; a diferenciação de vogais realizando os diferentes timbres harmônicos, as diferentes composições espectrais etc., e as consoantes os diferentes tipos de ataques, de ruídos. Por outro lado, o fenômeno da entonação, da inflexão melódica, não está claramente representado na notação da linguagem, e quando surge o problema da sua notação para fins pedagógicos, têm-se sérias dificuldades. Em contrapartida, a música especializou-se na notação de relações de duração muito precisas, que não se notam também claramente na linguagem, e sobretudo relações de alturas, porque desenvolveu essas relações muito mais sistematicamente que a língua falada (POUSSEUR, 1974, p. 153-154

apud MENEZES, 2002, p. 147).

Assim, por meio do excerto de Pousseur refletimos que a escrita em nosso alfabeto não prevê o percurso melódico nem as relações de duração precisas da inflexão melódica como em uma partitura musical. Nesse sentido, é interessante pensarmos no texto escrito como uma partitura aberta, sujeita à interpretação criativa por parte do

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intérprete-leitor. É importante considerar também que, embora alguns parâmetros dessa inflexão não sejam evidenciados no texto escrito, muitos deles são definidos pelo âmbito da cultura.

1.3 O canto-falado para alguns pensadores brasileiros

Em seu livro O Turista Aprendiz, o escritor e musicólogo Mário de Andrade (1893 – 1945) narra em forma de diário as ricas observações que fez no decorrer de duas viagens para a Amazônia e para o Nordeste brasileiro. Mesclando importantes relatos etnográficos com passagens descritivas e por vezes anedóticas, em seu livro o autor concebe os Índios Dó-mi-sol, com intuito de realizar uma “monografia humorística, sátira às explorações científicas, à etnografia e também social”27. O tom satírico da descrição desta tribo indígena fictícia dá-se já que a tribo possui moral e costumes absolutamente distintos da cultura ocidental contemporânea. Uma das mais notáveis peculiaridades dos Índios Dó-mi-sol reside na estrutura de sua linguagem, uma vez que

no período pré-histórico da separação do som, em som verbal com palavras compreensíveis e som musical inarticulado e sem sentido intelectual, [os Índios Dó-mi-sol] fizeram o contrário: deram sentido intelectual aos sons musicais e valor meramente estético aos sons articulados e palavras (ANDRADE, 2015, p. 135).

Em um dos excertos escritos por Mário de Andrade, o autor narra passagens com especial atenção à descrição de como os índios utilizam a linguagem, vejamos:

Estou passeando no grande mocambo do rei e num dos compartimentos encontro uma rainha comendo, coisa safadíssima. Ela

27

(29)

fica indignada e me passa uma descompostura. Foi uma chuva de sons, trinados, destacados, saltos de oitava duma velocidade e dum belcanto admiravelmente virtuosístico, meu Deus! que tarantela! Aliás, força é notar que o número de sons que eles possuíam era muito maior que a nossa pobre escala cromática. Era frequente o quarto de tom, não raros os quintos de tons. Um dos paredros [chefes] mais apontados da tribo dó-mi-sol falava constantemente palavras em que entravam sextos de tom e outras miudezas sonoras que inda me pareceram mais sutis. Inventara um vocabulário próprio, exclusivamente dele e que ninguém não compreendia. Era um grande filósofo, todos afirmavam. Os que, depois de vários anos de estudo, conseguiam o interpretar o achavam genial, e davam pra se degradar, degradar e ficavam completamente degradados. Escutei muitas vezes esse filósofo falando ao povo, sentado nas raízes das sumaúmas ou encarapitado no oco dum pau. Era como um chilro leviano de passarinho; e, com exceção dos discípulos degradados, todos iam aos poucos adormecendo. Então o filósofo sacudia levemente a cabeça, e num sorriso meigo compreendia e aceitava a incapacidade geral de o seguir. Calava-se. E como o exercício do chilro o enchera muito de ar, peidava com melancolia (ANDRADE, 2015, p. 137).

A anedótica menção desta ficção etnográfica a respeito dos Índios Dó-mi-sol em nosso texto objetiva apresentar ao leitor a tentativa de definição conceitual de canto e fala segundo Mário de Andrade. Partindo deste relato, em busca do oposto ao que faziam os Dó-mi-sol, podemos aferir que, para Mário de Andrade, o som verbal com as palavras compreensíveis (a fala) está associado a um sentido intelectual, já ao som musical inarticulado (o que para nós poderia ser um canto sem a presença das palavras) atribui-se um valor meramente estético. Estas ideias podem ser sintetizadas na seguinte citação de Mário de Andrade: “a voz cantada quer a pureza e a imediata intensidade fisiológica do som musical. A voz falada quer a inteligibilidade e a imediata intensidade psicológica da palavra oral (…) ”28.

Ao mencionar nas citações anteriores os pares ‘intelectual versus estético’ e ‘fisiológico versus psicológico’, Mário de Andrade se utiliza de um viés dicotômico na

28

(30)

comparação das vocalizações. Abordando ainda outros parâmetros, o autor dá prosseguimento a discussão entre as diferenças entre canto e fala no livro “Aspectos da Música Brasileira”, vejamos:

Como o arco que vibra tanto para lançar longe a flecha como pra lançar perto o som: a voz humana tanto vibra pra lançar perto a palavra como pra lançar longe o som musical. E quando a palavra falada quer atingir longe, no grito, no apelo e na declamação, ela se aproxima caracteristicamente do canto e vai deixando aos poucos de ser instrumento oral para se tornar instrumento musical (ANDRADE, 1965, p.43).

Para Mário de Andrade, a ideia de que a voz cantada emite um “som musical” é semelhante ao argumento de List, conforme expusemos. Cantar seria, para ambos, a atitude musical do instrumento Voz. A voz falada, por sua vez, emite um som oral, ou seja, sua pertinência é altamente “linguística”, sua característica fortemente textual e sua natureza no campo sonoro, efêmera; por isso mesmo, não seria, de acordo com os autores, música. Além disso, ao usar a expressão “vai deixando aos poucos”, Mário de Andrade atesta também a favor da ideia do continuum que liga estas duas pontas: fala e canto. Para o autor, a voz – ao ir em direção ao canto – ganha notadamente um maior alcance e não só se faz ouvir de mais longe, como também se faz notar enquanto ato performático.

Especificamente em relação a efemeridade sonora da fala na memória do ouvinte, no sentido da musicalidade da entoação da voz falada, escreve o pesquisador Luiz Tatit:

O caráter impreciso e efêmero das entonações linguísticas, extremamente adequado à rapidez da circulação das mensagens na vida cotidiana, torna-se incompatível com as leis de fixação sonora exigidas pela canção. Nesse sentido, a velocidade da fala é ruído-disforia a ser negado pela canção, ao mesmo tempo que constitui importante recurso ao alcance dos compositores e cantores

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interessados na dinamização sonora de suas obras (TATIT, 2007, p. 250-251).

Para Tatit, comparado com o canto-falado tão presente no universo da canção popular brasileira (conforme veremos no Capítulo 3), a fala, do modo como é utilizada e ouvida no dia a dia, seria rápida e com alturas imprecisas demais para um processo comum de fixação, ou seja, a apreensão imediata pelo ouvinte dos detalhes melódicos da entoação. A música da fala neste contexto seria, portanto, somente veículo de uma ideia extramusical. Por outro lado, Tatit também aponta para o fato de que, de modo geral, a canção popular brasileira tem por base as curvas entoativas da fala como elemento primordial na construção da melodia que é cantada. 29 Nesse sentido, é interessante pensar que a canção popular brasileira possibilita ao ouvinte a escuta desta musicalidade presente na fala cotidiana, porém oculta pela função comunicativa que monopoliza cotidianamente todo o processo.

De qualquer maneira, para que a comunicação no dia a dia se concretize, não há a necessidade de preservação total da sonoridade sugerida pelas entoações da fala na memória do ouvinte, mas sim do conteúdo semântico veiculado por ela. A ideia se fixa, o som se esvai. 30

É possível relacionar estas ideias de Luiz Tatit com o conceito de síntese

simultânea, cunhado pelo linguista Roman Jakobson:

(...) síntese simultânea (mormente a partir de Roman Jakobson), qualidade humana esta presente tanto na fala quanto na música e que

29

Tatit menciona esta ideia em alguns excertos do livro “O Cancionista”, como por exemplo: “Tive , em 1974, uma espécie de insight ou de susto quando, ouvindo Gilberto Gil reinterpretando antigas gravações de Germano Matias, me ocorreu a possibilidade de toda e qualquer canção popular ter sua origem na fala.” (TATIT, 2002, p.12), ou mesmo em: “A grandeza do gesto oral do cancionista está em criar uma obra perene com os mesmos recursos utilizados para a produção efêmera da fala cotidiana. As tendências opostas de articulação linguística e continuidade melódica são neutralizadas pelo gesto oral do cancionista que traduz as diferenças em compatibilidade” (TATIT, 2002, p. 11).

30

Ainda em “O Cancionista”, Luiz Tatit trata dessa mesma questão: “A fala pura é em geral instável, irregular e descartável no que tange a sonoridade. Não mantém ritmo periódico, não se estabiliza nas frequências entoativas e, assim que transmite mensagem, sua cadeia fônica pode ser esquecida. Fazer uma canção é também criar uma responsabilidade sonora. Alguma ordem deve ser estabelecida para assegurar a perpetuação sonora da obra, pois seu valor, ao contrário do colóquio, depende disso.” (TATIT, 2002, p.12).

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consiste na capacidade que temos em reter as informações do fluxo temporal e compará-las umas com as outras, constituindo o elo semântico que as une, ainda que cada informação sonora linguística ou musical se esvaneça com o próprio tempo (MENEZES, 2002, p. 28).

Nesse sentido, ao realizarmos a síntese simultânea em um processo de escuta de uma fala, retemos imediatamente suas informações linguísticas e abandonamos as informações sonoras. Talvez pela tamanha força que a questão comunicativa-verbal exerça na escuta do fenômeno sonoro que é a fala é que não conseguimos ouvir musicalmente nossa língua materna como podemos fazer com idiomas outros, que desconhecemos. Sabemos e sentimos que o Mandarim ou o Tupi soam de determinada maneira, por exemplo; mas é difícil avaliar essa sonoridade na língua que falamos todos os dias, as ideias carregadas pelas falas em nosso idioma materno ocupam a mente com mais força do que a avaliação musical deste mesmo evento. Apesar desta dificuldade, propostas artísticas criativas vêm sendo desenvolvidas no campo musical e que permitem ao ouvinte acessar com mais clareza a fruição estética da musicalidade da voz falada. Uma delas, a Música da Aura.

Na busca pelos conceitos de canto e fala, sobretudo no contexto brasileiro, é importante mencionar o trabalho do músico Hermeto Pascoal. Hermeto, que além de discutir a problemática da classificação de vocalizações canto e fala no âmbito das ideias, propôs também a sua Música da Aura, um tipo de Música que explicita ao ouvinte a tácita musicalidade da voz falada. Em entrevista a respeito do que seria a sua Música da Aura, a explicação de Hermeto Pascoal parte de um singelo relato:

Aos 7 anos de idade descobri que a nossa fala é o nosso canto. O mais natural de todos, pois cada fala é uma melodia. Eu costumava dizer para minha mãe que ela e suas amigas estavam cantando quando conversavam, mas ela dizia:" - Deixe disso, menino! Você está ficando louco?" (PASCOAL, 2009, s.n).

De início, nos deparamos com a precoce e sensível escuta de Hermeto Pascoal que percebe a coexistência harmoniosa da fala e do canto na mesma

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vocalização pois a entoação da fala cotidiana também pode ser ouvida como uma melodia. De fato, essa percepção se “anuncia” uma vez que a fala e a melodia partilham dos mesmos parâmetros musicais: altura, ritmo, dinâmica, timbre, etc. Por este viés, as ideias de Hermeto Pascoal direcionam a classificação das vocalizações para um processo de escuta do ouvinte. Este processo é a base de sua Música da Aura.

Em termos práticos, a Música da Aura funciona da seguinte maneira: um trecho gravado de fala é reproduzido e Hermeto transcreve a melodia sugerida pela entoação – por meio das alturas e durações inerentes ao falar – e explicita, ora tocando-a no piano, ora elaborando harmonizações ou arranjos sobre esta melodia, sempre com a gravação da fala original sendo executada concomitante à sua execução musical. Como matéria prima, Hermeto se utiliza de narrações de futebol, poemas declamados, excertos de aulas de natação, discursos presidenciais e pregões em uma feira livre. Esta música de Hermeto nos faz lembrar da citação de Suzel Ana Reily: “Outras formas de vocalização, como o “canto” dos números num bingo ou os comentários de um radialista num jogo de futebol envolvem características musicais que desafiam as fronteiras entre o canto e a fala. ”31.

Hermeto descreve a realização da Música da Aura como sendo simples, já que possui o reconhecimento imediato das alturas que escuta – o ouvido absoluto: “É muito fácil tocar o Som da Aura, que nada mais é do que a energia do som de cada pessoa através da música. E quando eu escuto a voz da pessoa, eu toco aquilo que estou escutando”32. Em outra entrevista, Hermeto Pascoal completa: “Percebo a melodia da fala, escrevo o tema que é essa melodia e depois faço o arranjo, que é a harmonização e o ritmo. Então, sou apenas o criador da ideia e o arranjador. A melodia pertence a quem falou.” 33. Ultrapassando as descrições práticas de sua Música da Aura, o autor a define em termos quase espirituais: “o Som Da Aura é a vibração sonora da alma de cada um, refletida pela sua fala, que faz a ligação entre mente e corpo. É possível fazer o som da aura também dos animais e dos objetos. No caso dos objetos, eles refletem a nossa energia. ”34. Há atualmente várias gravações de Músicas da Aura de Hermeto Pascoal que podem ser encontradas em seus discos Lagoa da Canoa, município de Arapiraca (1984), Festa dos Deuses (1992) e Chimarrão com Rapadura (2006), e que utilizam

31 REILY, 2014, p. 37. 32 Apud ESSINGER,2000, s.n. 33 Apud CHENTA, s.d. 34PASCOAL, 2009, s.n.

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como material sonoro: narrações esportivas, discursos presidenciais, sons de objetos e animais e falas cotidianas em diversas línguas.

Para o ouvinte que escuta pela primeira vez a Música da Aura, a experiência é marcante e potencialmente relativizadora nas definições do que é fala e o que é canto já que esta joga com a escuta do ouvinte ao transpor uma fala cotidiana para um contexto onde cada variação de altura das entoações torna-se fundamental. O Som da Aura explicita a música contida na fala de modo tão criativo que esta possibilidade se abre eternamente para o ouvinte: talvez, após essa experiência o ouvinte possa ser surpreendido ao se deparar com uma fala cotidiana que acometa seus ouvidos tal qual um canto o faria35. Para Hermeto, ao realizar sua Música da Aura, a escuta do que antes era a fala (e que nos remete à definição de uma vocalização que privilegia a semântica e as ideias veiculadas pelas palavras) passa a abarcar as minúcias sonoras da vocalização do falante, transformando-a, imediatamente, em canto, relativizando, por fim, todas as tentativas de classificação expostas neste texto até agora.

1.4 Nó nos conceitos: uma questão de escuta

Retomando as ideias anteriormente expostas e apresentadas, notamos que as ideias de George List, Paul Zumthor, Luiz Tatit e Mário de Andrade acerca da classificação entre voz falada e cantada parecem entrar em consenso em alguns tópicos, como se trilhassem caminhos parecidos. List, Tatit e Zumthor atestam a favor do crescente performatividade na voz ao se aproximar do canto. George List e Mário de Andrade associam o cantar a vocalização musicada, ao contrário da fala. A respeito desta última ideia e considerando a herança deixada pela inventividade da Música da Aura de Hermeto Pascoal, talvez valha ainda um outro mergulho: mas a fala, então, não poderia ser música?

Acerca desta questão elementar, em seu importante livro How musical is

man?, o etnomusicólogo John Blacking consolida um trabalho de referência no campo dos estudos da antropologia da música e se ocupa em estudar a música e o fazer musical do povo sul-africano Venda. Neste livro, Blacking afirma que os seres humanos

35Um interessante relato desta experiência pode ser lido no endereço: <https://porepore.wordpress.com/2009/09/16/som-da-aura/>.

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naturalmente são dotados de musicalidade, ou seja, possuem a aptidão inata para perceber e fazer música. Por assim serem os seres humanos, Blacking definiu o termo música como “sons humanamente organizados”, uma definição coesa e abrangente.

Por se tratar de uma definição abrangente, logo é possível indagar: se eu, um ser humano, organizo em minha cabeça os sons que escuto de modo que posso fruí-los como música, todos os sons, portanto, podem, nesta circunstância, ser música? Esta ousada indagação pode encontrar algum recosto ao tomarmos ciência dos trabalhos de Steven Feld. No texto O Musicar Local – novas trilhas para a etnomusicologia, as pesquisadoras Suzel Reily, Flavia Toni e Rose Hikiji afirmam:

Steven Feld (1994) documentou a forma peculiar de escuta dos kaluli, de Pápua Nova Guiné, que denominou de escuta “salientar-entre-sonorizações” (lift-up-over-sounding), uma escuta marcada pelo sobre-posicionamento de sonoridades do ambiente florestal em que os Kaluli vivem, levando-os a fazer emergir, em sua escuta, uma sonoridade específica em meio à totalidade de sons presentes. Lembramos também que Blacking (1973:8) argumentou que a habilidade de identificar, apreciar e compreender estruturas musicais ouvidas deve-se à musicalidade inata dos seres humanos (REILY; TONI; HIJIKI., 2016, p.8).

Se os Kaluli escutam o ambiente sonoro da floresta ou o canto dos pássaros como música36,não seria, portanto, possível encarar a fala como um ato musical? Sendo a fala, assim como o canto, uma vocalização constituída de ritmos, alturas, acentos e modulação de timbres, esta não poderia ser ouvida como uma melodia musical cantada? Esta ideia, apesar de contrariar as ideias de List e de Mário de Andrade expostas anteriormente onde a voz tende a se musicalizar ao se aproximar do canto, encontra respaldo em discussões de diversos autores. Vejamos, por exemplo, o excerto de uma entrevista realizada com o etnomusicologo Anthony Seeger publicada na Revista de Antropologia da Universidade de São Paulo:

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Pergunta: O senhor diz em um de seus artigos que a oratória é falada, o mito é contado, a canção é cantada, mas que todos são música para seus ouvidos.... Gostaríamos que falasse um pouco mais sobre isso. Seeger: Eu achava que a distinção entre fala e música (especialmente quando a música é toda cantos e, por consequência, palavras) era uma coisa problemática. Na fala se usam tons e também se manipula o tempo; na música se usam tons e se manipula o tempo. Então, eu achava que, em vez de dizer que esta é música e aquela é fala, existe a maneira de se manipular os tons e os tempos na fala cotidiana – assim como aqui conversando em volta de uma mesa, que é diferente da maneira de usar a fala ritual (mais recitativa como uma ópera) –, que era diferente da oratória para um público, que era também diferente dos cantos. Mas todos têm esses aspectos de tons, palavras e tempos. Acho que é uma questão de quais são os parâmetros em que se muda de um para o outro (SEEGER, 2007, p. 404).

Ao reconhecer a problemática na classificação entre música e fala, Seeger prefere, por fim, distingui-las em termos de parâmetros vocais, e não como música e não música, uma vez que, assim como no depoimento dado por Hermeto Pascoal, para Seeger ambas as vocalizações soam como música em seus ouvidos.

Nos acostumamos a ouvir a fala cotidiana sem nos ater conscientemente ao seu som, mas sim ao seu significado, mesmo que este seja veiculado através do som. Para aqueles que se abrem à experiência de escutar qualquer evento sonoro como música, canto e fala deixam de ser opostos: a fala passa a ser mais um dos infinitos tipos de canto que a voz humana pode executar. A mudança no conceito parte, necessariamente, de uma mudança na escuta.

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CAPÍTULO 2

A Seconda pratica

Este capítulo busca apresentar ao leitor o estilo musical italiano do início do período barroco conhecido como Seconda Pratica. Surgido na cidade de Florença, em torno de um grupo de artistas e estudiosos conhecido como Camerata Fiorentina, em um momento histórico marcado pela busca da retomada dos conceitos e ideias da Antiguidade Clássica em um ambiente de prosperidade econômica e de fecundidade na produção artística em geral, este estilo de música vocal para muitos pesquisadores é considerado como o marco inicial do período barroco em música. Em termos estéticos, a Seconda Pratica é orientada pela ideia de que na relação entre texto e música, a música deve sempre servir às palavras, ideia oriunda do filósofo grego Platão (428/427 – 348/347 a.C.). Além disso, este estilo musical vê no Recitativo – tipo de composição poético-musical cantada por um solista e que almeja simular a ideia de que o cantor esteja falando através do canto, com o suporte de uma harmonia – a realização das ideias de Platão e do intuito em se recriar o teatro grego.

No decorrer deste capítulo, nosso intuito principal será investigar como foram tratadas as relações entre texto e música neste estilo com foco, principalmente, nas ideias e realizações musicais dos compositores e teóricos da época. Para isso, mencionaremos também as ideias e características do estilo antecessor à Seconda

Pratica, a Prima Pratica. Assim, ao longo do texto citaremos algumas vezes excertos de Tratados e cartas do estilo musical em questão, na tentativa de “dar voz” aos seus protagonistas bem como nos utilizaremos de diversos exemplos musicais em forma de áudio e partituras, para que o leitor possa visualizar na própria produção musical do estilo as questões que serão discutidas ao longo do texto.

Referências

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