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CAPÍTULO 2 A Seconda pratica

2.3 A questão da inteligibilidade

Apesar da aparente desconsideração em relação à inteligibilidade das palavras cantadas neste período, é importante ressaltar que esta questão vinha sendo discutida e trabalhada durante o século XVI, como na Reforma Protestante, na Contra- Reforma, durante o Concílio de Trento (1545 – 1563)e mesmo no decorrer da Prima

Pratica. Parte dos frutos do esforço do monge e teólogo Martinho Lutero (1483 – 1546) em aproximar a liturgia cristã do povo na Europa encontra-se em tentativas de se privilegiar a palavra na música e no rito. Em termos práticos, Lutero propunha que a missa fosse celebrada na língua do povo, e que este fizesse parte ativamente do rito através do canto dos hinos litúrgicos e que o Sermão, momento de primazia da palavra

dentro da estrutura do culto, fosse sempre musicado e a parte de maior importância. Neste contexto, a música passa a ser um elemento vital na articulação entre os fiéis e o rito, envolvendo o ouvinte e movendo seus afetos, sem deixar de servir a palavra, ou pelo menos de admitir a sua vital importância.

Durante o Concílio de Trento, marco inicial da Contra-Reforma, a Igreja Católica também reconsiderou a questão da inteligibilidade das palavras na música sacra através de sugestões como as apresentadas a seguir publicadas em ata:

Concílio de Trento – Cânone sobre a música a utilizar na missa Todas as coisas deverão, na verdade, ser ordenadas por forma que as missas, quer celebradas com canto, quer sem canto, cheguem tranquilamente aos ouvidos e aos corações dos que as escutam (...). Qualquer concepção do canto em modos musicais deverá destinar-se, não a dar ao ouvido um vão prazer, mas a permitir que as palavras sejam claramente entendidas por todos e, assim, os corações dos ouvintes sejam tomados pelo desejo das harmonias celestiais (...) (apud GROUT; PALISCA, 2007, p. 285).

A citação anterior demonstra que o próprio núcleo gestor da Igreja Católica da época já havia percebido o problema da ininteligibilidade das palavras cantadas no repertório vocal sacro polifônico do período: um problema relativamente grave em um contexto no qual a palavra é tida como elemento sagrado. Neste caso, especificamente, a ideia proposta pelo Concílio de Trento é que a palavra é que deve guiar os corações dos ouvintes ao desejo das harmonias celestiais, e não os sons puramente musicais. Caso contrário, para os propositores deste Concílio, a música destinar-se-ia, somente, a dar ao ouvido um vão prazer.

O próprio teórico Zarlino em seu tratado Le Institutione harmoniche, o mesmo tratado que embasa as críticas de Artusi em relação aos madrigais de Monteverdi, também tangencia a questão da inteligibilidade das palavras cantadas ao sugerir aos compositores de sua época o uso da cadência que, para ele, interrompe o fluxo contrapontístico e é definida no seguinte excerto:

A cadência é muito necessária na harmonia (música), pois, quando não ocorre, a música padece da falta de um grande ornamento necessário para a distinção de suas partes, como aquelas do discurso. A cadência deve ser usada quando se chega à clausula, ou ao período contido na prosa ou no verso. (...) A cadência tem tanto valor na música quanto o ponto tem para o discurso, e por isso ela pode ser chamada de ponto da música. Deve-se colocá-la onde se repousa, ou seja, onde se encontra uma terminação da harmonia (música), de modo que se encerre uma ideia do discurso, tanto intermediária quanto final. (ZARLINO apud BARROS, 2011, p. 15).

Retomando as ideias de Mannis, trata-se, portanto, da inclusão consciente de um silêncio em meio ao fluxo da polifonia, já que “o silêncio e o vazio são elementos não somente atuantes e determinantes da inteligibilidade, mas abrangem ainda em diversos níveis os domínios semântico e estrutural, desde a contribuição de uma linguagem até a elaboração de um discurso.”52. O uso da cadência conforme proposta por Zarlino prenuncia também a preocupação muito presente entre os músicos da

Seconda Pratica de se representar, através da música, ideias extramusicais expostas pelo texto poético. Essa preocupação se evidencia ao considerar que em seu tratado, Zarlino também discorre “sobre o valor simbólico dos intervalos diatônicos ou cromáticos, dos ritmos rápidos ou lentos, dos sons graves ou agudos para a expressão dos sentimentos humanos”53. Em seu tratado, Zarlino ainda discorre:

ele [Platão] disse que a harmonia e o ritmo devem seguir as palavras e não as palavras seguirem o ritmo e a harmonia. E assim deve ser. Porque, se um texto, seja por meio de narrativa ou imitação, lida com assuntos que são alegres ou tristes, sérios ou não, e modestos ou lascivos, a escolha da harmonia e ritmo deve ser feita de acordo com a natureza do assunto contido no texto, de maneira que essas coisas, combinadas com a proporção, possa resultar em música adequada para esse propósito (ZARLINO apud MARTINS, 2015, p.2).

52MANNIS, 2009, p. 123. 53COELHO, 2000. p. 41.

É importante notar, na citação anterior, a ressalva de Zarlino: “combinadas com a proporção”. O pensamento musical de Zarlino, mesmo levando em consideração o conteúdo do texto cantado no ato de compor, não permite o abandono das regras para a suposta boa realização do contraponto. Neste sentido, assistimos à tensão perene entre “o desejo de liberdade expressiva e o de ordem na composição, sempre latente em toda a obra de arte”54.

A preocupação com a inteligibilidade do texto cantado esteve presente até mesmo no trabalho do próprio Palestrina, por exemplo, em sua peça mais famosa, a “Missa do Papa Marcelo”. Segundo Grout e Palisca:

Na Missa do Papa Marcelo o compositor [Palestrina] esforçou-se conscientemente por conseguir (...) uma maior inteligibilidade do texto. A missa foi escrita em 1562-1563, no preciso momento em que se debatia a questão da compreensão do texto e em que o Concílio de Trento promulgou o Cânone sobre a Música a Utilizar na Missa, no qual se exige “que as palavras sejam entendidas por todos” (GROUT; PALISCA, 2007, p. 292).

A fim de exemplificar essa busca por parte de Palestrina, vejamos o excerto musical a seguir (figura 10). Trata-se do Credo da “Missa do Papa Marcelo”. Para poder tornar as palavras inteligíveis aos ouvintes, o compositor evitou fazer com que o texto não soasse simultaneamente entre as seis vozes, procedimento composicional similar ao utilizado por Monteverdi em alguns de seus madrigais.

Como desenvolvimento desta escritura, e também a fim de atribuir diferentes roupagens para determinados trechos do texto, Palestrina dividiu o conjunto vocal de seis vozes em outros pequenos grupos, de modo que pudesse ter, respeitando sempre a textura homofônica, diversas possíveis combinações de naipes e reservando o

tutti a seis vozes para momentos importantes do texto.

Figura 9: Excerto do Credo da Missa Papa Marcelli, de Palestrina. Página 23. Fonte: <imslp.org>

A utilização deste exemplo de Palestrina tem como intuito discutir a ideia de que o processo de aquisição de uma preocupação com a inteligibilidade das palavras cantadas não se deu de repente na transição entre a Prima Pratica e a Seconda Pratica, mas sim paulatinamente até o emergir de um posicionamento mais radical a respeito desta questão por parte dos compositores e teóricos da Camerata Fiorentina, conforme veremos a seguir.