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CAPÍTULO 4 Tecendo paralelos

4.3 O banquinho e o Alaúde

“Quem poderia pensar que Orfeu, Orfeu cujo violão é a vida da cidade E cuja fala, como o vento à flor Despetala as mulheres - que ele, Orfeu, Ficasse assim rendido aos teus encantos?” (Excerto do “Monólogo de Orfeu” de Vinícius de Moraes)

Outro aspecto essencial na construção de um paralelo entre Bossa Nova e

Seconda Pratica revela-se através da instrumentação padrão utilizada em ambos os estilos musicais. Neste sentido, o termo “banquinho e violão”, que se refere diretamente aos objetos indispensáveis do fazer musical bossanovista, alude a um instrumental arquetípico dos estilos poético-musicais nos quais a voz é posta em absoluto primeiro plano. O duo voz e instrumento harmônico se configura como a escolha instrumental mais óbvia ao canto acompanhado devido a certas especificidades de escritura: a necessidade de se haver uma linha melódica e um acompanhamento harmônico. O duo voz e violão, por sua vez, se configura como uma escolha coerente devido à certas especificidades acústicas da voz humana, sobretudo a sua limitação de volume no canto- falado, conforme menciona Luiz Tatit em citação da página 131.

Além disso, a escolha do violão como elemento icônico da Bossa Nova pode também estar relacionada com a presença massiva do instrumento na estrutura sociocultural brasileira. A esse respeito, o violonista Fábio Zanon (1966 - ) escreve:

Como o café e o futebol, o violão está indissociavelmente ligado a uma visão sociocultural do Brasil, e nossa identidade musical é impensável sem a sua presença. E não é para menos. Instrumentos da família do violão foram já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese, e José Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do século XVI revelam em comum o acompanhamento ao som de viola”. Dessa forma, desde o primeiro encontro que define nossa identidade cultural, o violão está presente. (ZANON, 2006, p. 1)

Nesse sentido, é possível considerar que a escolha do violão como instrumento acompanhador da canção bossanovista pode também ter sido influenciada pela presença abundante do instrumento desde os primórdios da música popular brasileira, conforme mencionado por Zanon. Interessante notar também que, se até o início do século XX o violão não gozava de prestígio por entre as camadas sociais mais abastadas da sociedade – sendo considerado um instrumento associado ao estilo de vida das classes baixas, marginalizadas –, a partir do surgimento da Bossa Nova “o violão

passou a ser o instrumento predileto da juventude”135 e aquele que vai legitimar a produção musical dessa mesma elite que antes o negava.

De qualquer modo, apesar de suas compatibilidades inerentes em termos de intensidade, o uso do violão na obra cancional de João Gilberto transcende a função meramente acompanhadora. A maneira como o violão é tocado neste caso – lembrada, muitas vezes, por conta de sua emblemática batida – oferece ao instrumento, junto com a voz, o status de protagonista na canção, e é considerada, assim como seu canto-falado, uma importante inovação estética na história da canção brasileira. Nesse sentido, o canto-falado de João Gilberto trata-se de uma proposta coesa em relação a seu vínculo rítmico com a batida da Bossa Nova, uma vez que, para que de fato haja uma integração entre a voz e a batida do modo como se nota nas interpretações de João Gilberto, é necessário que a voz seja emitida de modo ágil, o que, novamente, a aproxima de uma vocalização próxima da fala.

A respeito desta íntima relação entre a voz cantada e o violão, João Gilberto, na mesma entrevista publicada por Walter Garcia, discorre:

Geralmente, o cantor se preocupa com a voz emitida da garganta e sobe muito, deixando o violão – ou qualquer outro instrumento de acompanhamento – falando sozinho lá embaixo. É preciso que a voz se encaixe no violão com a precisão de um golpe de caratê, e a letra não perca sua coerência poética (apud GARCIA, 1999, p. 128).

Figura 27: João Gilberto e seu violão, em 1991.

Fonte: Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/joao-gilberto-perde-nova-batalha-

contra-biografia-nao-autorizada>. Acesso em 30 de junho de 2016.

No caso da Seconda Pratica italiana nota-se frequentemente a mesma instrumentação característica: a voz acompanhada por um instrumento harmônico. Esta escolha, presente em grande parte das monodias barrocas italianas, sedimentou-se possivelmente por um motivo análogo ao da Bossa Nova: a voz cantada neste registro próximo da fala não tem condições de competir, em termos de intensidade, com uma instrumentação maior. Ademais, este tipo de fazer musical que compreende o repertório da Seconda Pratica normalmente era concebido para ser apresentado em locais físicos de pequeno porte. Neste contexto, Federici afirma que a música de um dos expoentes deste período, o compositor Giulio Caccini, “não era para ser executada para grandes plateias, mas na comodidade do salotto, da sala pequena, íntima, somente onde seria possível a apreensão de todas as nuances, cumpridas a pouca distância do ouvinte” 136. Com isso, o autor evidencia o caráter íntimo e delicado deste tipo de música, o que se reflete, naturalmente, no modo como é estruturada e interpretada. Nesse sentido, o aspecto relacionado ao local de apresentação da obra vocal na Seconda Pratica também

encontra semelhanças com os locais de apresentação na Bossa Nova. Frequentemente se tratavam de espaços pequenos e intimistas, conforme descrito por Júlio Medaglia e Walter Garcia na página 133.

Nesse sentido, vale ressaltar que uma grande semelhança existente entre os dois estilos de música vocal aqui tratados, reside também no modo como o cantor aborda o ouvinte, envolvendo-o em uma atmosfera de intimidade e cumplicidade. O canto-falado, somado ao tratamento intimista dado à instrumentação, aproxima ouvinte e intérprete e constrói uma situação de verdade enunciativa; em outras palavras, este tipo de abordagem potencializa a força enunciativa137 do canto e desperta a fé do ouvinte naquilo que é cantado. Trata-se de uma abordagem bem diferente do canto polifônico sacro do Renascimento, ou mesmo do canto passionalizado do Samba- canção, nos quais nota-se um distanciamento do cantor em relação ao ouvinte. Assim, é possível pensar que tal abordagem do canto funciona como um forte recurso persuasivo, uma ferramenta de convencimento, ou seja, trata-se de um recurso retórico.

Apesar das inúmeras similaridades encontradas por nós entre os estilos musicais aqui abordados, um aspecto muito importante que é tratado de modo bem distinto entre os estilos deve ser discutido: a realização do acompanhamento instrumental.

Retomemos os principais aspectos da realização do acompanhamento instrumental na Seconda Pratica, guiada pela prática do Baixo contínuo. Em síntese, a realização do baixo contínuo consiste no ato de harmonizar a linha melódica do baixo, que, normalmente, vem acompanhada de uma cifragem específica, daí o nome baixo cifrado. Este processo de harmonização, apesar de ser improvisado pelo continuísta, é construído sob inúmeras regras de condução de vozes e esteticamente orientado de acordo com o país e a época do repertório a ser executado. Em seu tratado Le Nuove

Musiche, Caccini menciona esta técnica de acompanhamento:

Pois que eu tenha o costume de em todas as minhas músicas saídas de minha pena, denotar pelas cifras sobre a parte do Baixo, as terças e as sextas, nas maiores onde é assinalado o sustenido e nas menores o bemol, similarmente às sétimas ou outras dissonâncias para

acompanhamento das partes do meio (CACCINI apud FEDERICI, 2009, p. 38-39).

Figura 28: “Tocador de Alaúde” (1594) do pintor italiano Caravaggio (1571 – 1610). Óleo sobre tela,

100 cm × 126.5 cm.

Fonte: <http://wikipedia.org>

Outra importante indicação que Caccini oferece aos leitores de seu Tratado, que versa especificamente acerca do acompanhamento harmônico de suas monodias, é: “O acompanhamento deve ser simples, a ponto de não ser escutado; as dissonâncias só devem ser utilizadas sobre determinadas palavras, para enfatizar uma expressão verbal.” 138. Desse modo, Caccini atesta que o papel do acompanhamento em suas músicas, diferentemente do caso de João Gilberto e seu violão, é executar um discreto suporte

harmônico, que quase não é escutado, tamanha a importância que a voz cantada assume neste contexto. Observamos também que o uso da dissonância neste caso está diretamente associado a expressão das ideias ou afetos contidos no texto cantado, enfatizando seu teor semântico.

Vemos, portanto, entre o acompanhamento instrumental da canção bossanovista e da monodia da Seconda Pratica, a semelhança que reside no fato de ambas se utilizarem, muitas vezes, de instrumentos bastante parecidos: o violão e o alaúde (ou o Chitarrone). Conforme vimos, em ambos os casos a escolha desta esparsa instrumentação parece estar relacionada à limitação de volume da voz cantada próxima do registro da fala bem como o intuito de se valorizar a palavra cantada na estrutura da composição, o que, por consequência, acaba por caracterizar práticas musicais intimistas e econômicas.

Todavia, apesar desta semelhança, cada estilo desenvolveu uma maneira característica de realizar este acompanhamento instrumental. Na Bossa Nova, o violão se encontra em pé de igualdade com a melodia do canto, voz e violão se inter- relacionam num sofisticado jogo rítmico-harmônico e o balanço gerado pela interação entre a batida do violão e a melodia depende também do equilíbrio, sobretudo de intensidade, entre ambos os elementos. Além disso, na Bossa Nova o acompanhamento está quase sempre ligado à ideia de periodicidade, de reiteração de um padrão rítmico.

No caso da Seconda Pratica, o acompanhamento está notadamente subordinado à linha do canto, haja vista as menções encontradas em tratados dos compositores do período de que o acompanhamento realizado pelo contínuo deveria ser discreto. Ademais, muito dificilmente se encontra no acompanhamento das monodias barrocas uma abordagem que se aproxime da ideia de levada, ou batida. No baixo contínuo, na maioria das vezes os acordes são tocados pontualmente em momentos específicos do texto, muito mais sustentando a linha melódica do canto do que interagindo e se imbricando com ela.

Além disso, nota-se uma diferença também em relação ao tratamento dado às dissonâncias no acompanhamento instrumental. Nas monodias, o aparecimento das dissonâncias é condicionado a um momento propício do texto poético e, via de regra, aparecia no acompanhamento de acordo com as formulações de Zarlino, mesmo que o marco inicial do estilo musical tenha sido a suposta libertação destas regras. Na Bossa Nova, assim como na Seconda Pratica, frequentemente vemos a dissonância ser

utilizada como recurso poético, entretanto seu valor para o músico bossanovista é outro haja vista que não há, de fato, uma preparação polifônica para o seu aparecimento. A dissonância já está incorporada ao bloco sonoro do acorde, aspecto harmônico já notado desde o aparecimento do jazz ou mesmo da música erudita do fim do século XVIII.

Além do mais, na Bossa Nova a condução de vozes da harmonia executada pelo instrumento acompanhador permite mais paralelismos do que no baixo contínuo, porém, a lógica de condução que preza pela menor movimentação possível entre as vozes se mantém como diretriz presente em ambos os casos139.

As abordagens distintas entre o acompanhamento de ambos os estilos aqui apresentados se evidencia quando nos deparamos com as partituras onde estas músicas são comumente notadas. Ao relembrarmos deste aspecto no baixo contínuo, mencionado na página 73, notamos que o baixo da harmonia é tratado como uma melodia, de modo que sua notação explicita ritmos e alturas em pauta, do mesmo modo como é notada a linha melódica cantada. As vozes intermediárias que recheiam a harmonia são especificadas por cifras que, na realidade, são números que indicam a distância intervalar em relação ao baixo.

No caso da canção brasileira, vemos a questão do seu registro em partitura, com a utilização da pauta e de figuras rítmicas escritas, por exemplo, praticamente limitada à existência dos chamados Songbooks, ou cancioneiros140. Fora destes compêndios, existe a real dificuldade em se encontrar peças deste gênero registradas em termos musicais, como vimos, por exemplo, o prólogo de Peri mostrado na página 71. O que ocorre, normalmente, é uma facilidade grande em se encontrar a letra das canções, algumas vezes trazendo as cifras, mas dificilmente a melodia transcrita. Esta característica associada ao gênero da canção no Brasil pode estar relacionada ao fato de o artesanato cancional não depender necessariamente do registro em partitura para a sua sobrevivência, além do fato, já exposto anteriormente, de que a canção brasileira, em seus primórdios, esteve fortemente vinculada ao registro oral muito mais do que ao registro escrito. Diferentemente do caso das monodias barrocas, a canção brasileira vê

139 Um exemplo que demontra o paralelismo no encadeamento harmônicodo acompanhamento na Bossa

Nova pode ser encontrado na canção “Samba de uma nota só”, de Tom Jobim. Neste caso específico, o violão, logo nas primeiras estrofes da canção, realiza uma sequência descendente de acordes que é marcada pela presença constante do paralelismo.

140 Vale ressaltar que esses livros só começam a aparecer no contexto brasileiro a partir do final dos anos

1980. Antes disso, para “tirar” uma música era necessário ouvir a gravação inúmeras vezes e, a partir daí, realizar a notação.

nas gravações de áudio – os fonogramas – seu maior instrumento de registro e em seu fazer musical a escrita se mostra como um acessório.

Outro fato eloquente em nossa discussão é a percepção de que, muitas vezes, o cancionista aglutina o fazer artístico que, na Seconda Pratica, dividia-se entre o compositor da música e o poeta letrista. Na canção popular, muitas vezes não é clara a divisão de papeis entre músico compositor e letrista, de modo que a configuração das divisões de tarefas varia de caso para caso, muitas vezes ocorrendo uma certa aglutinação de funções. Independente do modo como são dividas as demandas no decorrer do processo criativo da canção, a presença da parceria neste processo parece ter se sedimentado como um modus operandi caracterísico ao estilo141, obviamente com a presença de incontáveis exceções.

Vejamos como exemplo o caso da canção “Modinha”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes (Figuras 29 e 30). Esta canção, gravada inúmeras vezes desde a data de sua composição, fez parte do já mencionado disco Canção do amor demais (1958) da cantora Elizeth Cardoso. Na partitura desta canção, contida no Songbook Tom

Jobim Volume 2 produzido e editado por Almir Chediak, vemos primeiramente (Figura

29) a apresentação da letra poética escrita por Vinícius de Moraes em conjunto com as cifras musicais (trazendo, inclusive, a representação gráfica para a execução dos acordes no violão). Em muitos casos, conforme já discutido, o registro em partitura das canções brasileiras se apresenta desta maneira142, de modo que só é possível a leitura efetiva desta se o leitor já souber (por outros meios) a melodia da canção. Essa característica se deve ao fato de a canção popular ser uma manifestação artística midiatizada. Portanto, a escuta do fonograma acaba, sintomaticamente, na maioria das vezes, precedendo qualquer outra forma de registro.

141 Conforme explica-nos o pesquisador José Ramos Tinhorão, em seu livro História Social da música

brasileira: “Esse encontro dos poetas eruditos letristas de canções de rua com os músicos populares (ou com os de salão e do teatro musicado atraídos pelo estilo popular) estava destinado a marcar, na área dessa primeira canção de massa, de caráter nitidamente citadino, o advento de um novo sistema de criação: a parceria. ” (TINHORÃO, 1998, p.129).

142 É o que notamos em sites como <www.cifraclub.com.br>, <www.cifras.com.br> ou mesmo nas

Figura 29: Primeira página da canção “Modinha”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Fonte: CHEDIAK, 1994, p. 73.

Já na segunda página da canção Modinha (figura 30), vemos somente a transcrição da melodia e da harmonia, sem a letra escrita por Vinícius de Moraes.

Figura 30: Segunda página da canção “Modinha” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Fonte: CHEDIAK, 1994, p. 74.

Nota-se na figura anterior que, assim como no caso do baixo contínuo, os baixos dos acordes são todos especificados pelo compositor, ou mesmo por quem fez a transcrição da música para o Songbook, considerando o fato de que, algumas vezes, as notações musicais atritam entre uma versão e outra da mesma canção. No entanto, na notação utilizada na canção, os baixos dos acordes estão contidos na própria cifra e não isolados em uma pauta à parte, de modo que talvez não tenhamos a percepção da linha do baixo como uma linha melódica em contraponto com a linha melódica do canto.

Assim, vemos que o modo como a notação musical foi desenvolvida em cada contexto expõe a maneira que cada estilo concebe e realiza sua música.

Acerca deste aspecto em relação à Bossa Nova, Luiz Tatit acrescenta:

Parece, realmente, que o ouvido dos cancionistas possui uma Gestalt própria: concebe a harmonia tonal, não tanto como um conjunto de notas que gravita em torno de um núcleo, mas como um som compacto que aclimata as progressões melódicas e que reflete acusticamente as tensões propostas no texto; adota algumas sequências de acordes (quando toca algum instrumento) e algumas regularidades rítmicas como pontos demarcatórios para a invenção melódica, incorporando a periodicidade como parte integrante da criação. (TATIT, 2002, p. 163).

Na citação anterior, Tatit investiga as características do acompanhamento instrumental realizado na canção brasileira e indica que os acordes nesta estrutura musical funcionam, muitas vezes, como sons compactos que aclimatam o percurso melódico do canto, assim como já mencionado em relação ao acompanhamento da melodia nas monodias barrocas. Porém não podemos deixar de lembrar de uma diferença de abordagem em relação ao acompanhamento de ambos os períodos: na

Seconda Pratica a sequência harmônica se tece como malha, teia que sustenta o canto; já na Bossa Nova o canto é, por vezes, parte integrante dessa malha harmônica, estabelecendo um movimento de fusão e difusão entre esses elementos.

Assim, vimos nesta seção a semelhança entre os estilos musicais no âmbito instrumental, em especial a semelhança na instrumentação voz e violão/alaúde mais comumente utilizada. Vimos que a sedimentação do uso desta instrumentação se deu, provavelmente, devido às características acústicas da voz no registro em que é utilizado nestes estilos musicais, somado às circunstâncias locais de cada estilo. Ademais, vimos que, apesar das similaridades, cada estilo desenvolveu uma maneira particular de realizar o acompanhamento instrumental das composições, fato que se evidencia ao analisarmos as partituras de cada momento.