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CAPÍTULO 2 A Seconda pratica

2.1 A controvérsia Artusi versus Monteverd

O desenrolar do percurso histórico nas artes é marcado pela presença constante do embate ideológico. Este processo vivo de inter-relação de tendências e ideias nas práticas e correntes artísticas oferece ao observador atento o vislumbre de uma das facetas da dinâmica cultural de uma sociedade, fazendo-nos lembrar da conhecida e velha questão: a arte imita a vida?

Com frequência algum destes incontáveis confrontos passa por um processo de personificação, emergindo assim uma querela entre dois personagens. Nesse sentido, a querela entre Giovanni Artusi (c1540 – 1613) e Claudio Monteverdi (1567 – 1643), na virada do século XVI para o século XVII na Itália, é considerada por muitos pesquisadores como de importância vital para o entendimento da emergência de uma nova prática de composição na música vocal e, para alguns, a inauguração do período barroco em música.

Como ponto de partida da incursão a este antigo certame, apresentamos um de seus protagonistas, o compositor Claudio Monteverdi. Nascido em Cremona, na Itália, é considerado como um importante compositor de sua época, com feitos criativos revolucionários no âmbito musical como o desenvolvimento de uma rica linguagem harmônica, na idealização de um conjunto instrumental ousado para a época, base do que se tornaria séculos depois a orquestra sinfônica, e na conciliação de estilos e práticas musicais distintas em seu próprio trabalho composicional. Fora do âmbito estritamente musical também realizou importantes criações, especialmente na fusão de sua música com outras plataformas artísticas, manifesto em sua frutífera contribuição ao desenvolvimento de um incipiente gênero musico-teatral, sendo reconhecido por pesquisadores como o primeiro grande mestre do gênero operístico37.

Ao longo de sua carreira como compositor, Monteverdi publicou oito livros de Madrigais (um nono livro foi publicado postumamente, em 1651). Reconhecidas como uma das principais criações artísticas de Monteverdi, os Madrigais apresentaram, ao longo do desenvolvimento de suas nove coletâneas, uma série de inovações estilísticas para a época, conciliando características de práticas musicais tradicionais e de vanguarda. Naturalmente, decorrências deste aspecto vanguardista de Monteverdi

geraram uma série de críticas na época, principalmente entre os representantes da tradição contrapontística do Renascimento. A mais célebre destas críticas, feitas pelo teórico Giovanni Maria Artusi, deu início a um embate posteriormente reconhecido como a querela Artusi versus Monteverdi.

Giovanni Maria Artusi foi um musicólogo nascido na cidade de Bolonha, conhecido, principalmente, por ser discípulo e herdeiro do pensamento musical do teórico Gioseffo Zarlino (1517 – 1590). Zarlino, por sua vez, foi um renomado teórico e compositor do século XVI, também italiano, que desenvolveu um importante legado a respeito de aspectos teóricos da música como as afinações e, sobretudo, a codificação de regras para a realização do contraponto no contexto modal. Parte essencial deste legado encontra-se no tratado Le Institutione Harmoniche (Veneza, 1558). Sua abordagem privilegiava o aspecto científico e racional da música, em prol da busca pela perfeição na composição musical. Especificamente em relação às suas regras harmônicas, vê-se uma atenção especial ao uso de intervalos dissonantes (como segundas e sétimas), no qual a dissonância devia sempre ser preparada e resolvida de uma maneira cuidadosamente prescrita.38

Na transição entre o século XVI e XVII, vê-se emergir na música vocal contrapontística uma certa flexibilização das regras codificadas por Zarlino, “a ponto de suscitarem acusações de [estas regras] estarem sendo infringidas. ”39. Como discípulo e herdeiro do legado de Zarlino, foi Artusi quem responsabilizou-se por apontar as

imperfeições que vinham sendo cometidas na música vocal de seu tempo (moderna), o

que ocasionou não apenas a sua querela com Monteverdi, mas também controvérsias com outros compositores como Ercole Bottrigari e Vincenzo Galilei40. Em seu tratado

L'Artusi, overo Delle Imperttioni della moderna musica41 (1600), escrito em forma de diálogo entre dois hipotéticos personagens (Vario e Luca), Artusi argumenta contra a maneira de usar as dissonâncias por parte dos compositores modernos bem como o uso

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Segunda Zarlino, em seu tratado Le Institutione Harmoniche o uso de uma dissonância na composição musical deve ser condicionado às seguintes regras: “pode-se eventualmente alternar consonâncias e dissonâncias, mas as dissonâncias têm que estar sempre nos tempos fracos; (...) a dissonância deve ser seguida pela consonância mais próxima; (...) salto para dissonância não é permitido, pois ela é tão notada no salto que dificilmente pode ser tolerada; (...) Resumindo o uso das dissonâncias, elas podem aparecer: por grau conjunto, no tempo fraco e como nota mais curta do que a consonância. Devem também ser sempre resolvidas na consonância mais próxima. ” (DIAS,2015, p. 54).

39STASI, 2009, p. 11. 40STASI, 2009.

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de vários modos na mesma música, citando, especialmente, o madrigal “Cruda Amarilli” de Monteverdi como exemplo.

Para que possamos compreender o teor das críticas de Artusi, vejamos o seguinte excerto da primeira página do madrigal “Cruda Amarilli”, escrita pelo compositor italiano Claudio Monteverdi e publicada em seu Quinto Livro de Madrigais (1605).

Figura 2: Primeira página do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi. Fonte: <imslp.org>

Talvez a mais emblemática ilustração de uma destas “imperfeições”, segundo Artusi, encontra-se no compasso 13 do madrigal, onde a nota Lá do soprano é uma dissonância (intervalo de nona) não preparada em relação a nota Sol do baixo. Como se não bastasse, a nota Lá do soprano salta para a nota Fá, que é também uma dissonância (uma sétima) em relação à nota Sol do baixo.

Figura 3: Compassos 13 e 14 do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi

Para Artusi, esse procedimento contrapontístico fere um conjunto de regras a respeito da manipulação das dissonâncias postuladas por Zarlino. Para que esta passagem musical pudesse estar de acordo com os preceitos contrapontísticos defendidos por Artusi, seria necessário, por exemplo, que a nota Lá do soprano, por ser uma dissonância em relação ao Sol do baixo, fosse precedida por uma consonância e, depois, fosse resolvida para uma consonância por grau conjunto descendente. Não é o caso no madrigal, já que a nota Lá salta para a nota Fá.

Monteverdi, apesar de seu exímio conhecimento contrapontístico, preferiu argumentar a razão de suas escolhas composicionais por outro viés. No seu Quinto

Livro de Madrigais (1605), escolhe o madrigal “Cruda Amarilli” como o primeiro do conjunto e no prefácio, publica um texto explicativo em tom de réplica às críticas de

Artusi, assumindo que, de fato, sua prática musical não respeita as codificadas regras harmônicas e contrapontísticas propostas por Zarlino. Neste texto, Monteverdi inaugura o termo Seconda Pratica.

Alguns acharão isto estranho, não acreditando que exista outra prática para além da ensinada por Zarlino. Mas a esses posso garantir, a respeito de consonâncias e dissonâncias, que há uma forma de as considerar diferente dessa já determinada, (...). Quis dizer isto tanto para que os outros não se apropriassem da minha expressão seconda

pratica como para que os homens de inteligência pudessem considerar outras reflexões sobre harmonia (MONTEVERDI apud STASI, 2009, p. 12).

Alguns anos mais tarde, o irmão mais novo de Claudio Monteverdi, Giulio Cesare Monteverdi (1573 – 1630/31), publica no prefácio do livro de Claudio Scherzi

Musicali a ter voci (1607) uma ‘Dichiaratione’ (declaração) afirmando que as escolhas musicais de Claudio Monteverdi em seus madrigais se pautavam pela ideia de que a palavra é senhora da harmonia, e não serva. Para tal, Giulio Cesare embasa seus argumentos retomando os princípios musicais do filósofo grego Platão (428/427 – 348/347 a.C.). Platão, em sua República (398d e 400d), afirma que: “A canção [melodia] é composta de três elementos: oração, harmonia e ritmo (…) Ritmo e harmonia seguem a oração, e não a oração segue o ritmo e a harmonia. ”42. Com isso, Monteverdi associa a sua prática musical à ideia de que, na música vocal, conforme preconizado há muito por Platão, a harmonia e o ritmo devem ser completamente subordinados à palavra (texto cantado). Ao priorizar a palavra em relação à música, Monteverdi abre precedentes para que as regras de condução harmônica de Zarlino fossem quebradas em prol da expressão do conteúdo poético da palavra em música – e com isso nomeia esta prática como Seconda Pratica.

Mas como se manifesta, em termos práticos, esta ideia de Platão de que a palavra deve ser seguida pelos elementos musicais? No madrigal “Cruda Amarilli” de Monteverdi, por exemplo, podemos identificar esta ideia manifesta de duas maneiras: a preocupação com a inteligibilidade da palavra que é cantada (o que gera,

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sintomaticamente, uma preocupação com o tratamento da textura musical e da maneira de se cantar) e a expressão do conteúdo do texto poético através da música. Acerca da inteligibilidade da palavra quando cantada, tópico que será explorado mais detalhadamente ainda neste capítulo, um procedimento composicional bastante utilizado por Monteverdi foi a variação de texturas: a textura homofônica e a textura contrapontística. A textura homofônica, ao fazer com que as vozes cantem a mesma figuração rítmica consecutivamente, permite que o texto seja cantado ao mesmo tempo em todas as vozes, aumentando assim a sua inteligibilidade para o ouvinte.

Figura 4: Excerto homofônico em “Cruda Amarilli”.

Procedimentos similares a estes encontrados no madrigal “Cruda Amarilli” podem ser encontrados em outras peças vocais de Monteverdi, demonstrando que estes eram artífices comuns empregados pelo compositor na busca pela valorização do texto poético em suas músicas. Em seu madrigal “Sfogava con le stelle” (Figura 6), do

Quarto livro de Madrigais (1603), Monteverdi se utiliza, no primeiro, no sexto e no décimo primeiro compasso, de um longo trecho de texto sem uma rítmica estabelecida, fornecendo aos intérpretes somente a seguinte indicação: “Libera delamazione, quasi

parlato”43. Neste exemplo, mais do que buscar a textura homofônica em prol da inteligibilidade do texto, Monteverdi dá claras indicações de que o canto seja como uma declamação livre, e a rítmica deste canto a mais próxima possível do ritmo da fala. Com isso, Monteverdi mais uma vez retoma o pensamento de Platão ao fazer com que não só a harmonia sirva às palavras, mas também o ritmo.

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Figura 5: primeira página do madrigal “Sfogava con le stelle” de Claudio Monteverdi. Fonte: <imslp.org>

Já a respeito da expressão do conteúdo do texto poético em música, vejamos, novamente, o compasso 13 do Madrigal “Cruda Amarilli” (figura 2) onde o texto cantado é /ahi lasso/ (ai de mim). O conteúdo semântico desta expressão verbal expressa ao leitor o sentimento de dor do eu-lírico em relação à amargura de sua amada Amarílis. A música que é colocada sobre este excerto de texto – e, principalmente, a maneira como é colocada – almeja simular no ouvinte a sensação desta dor. Aos ouvidos da época, acostumados a um tratamento polifônico há muito sedimentado, uma dissonância não preparada causaria um súbito estranhamento que, quando associado a ideia de dor, como expresso no texto deste excerto, se justifica não somente em termos poéticos, mas também em termos sensoriais.

Podemos ver esta mesma associação poético-musical na peça “Tu se morta!”, ária da ópera “Orfeu” (1607) de Claudio Monteverdi e libreto de Alessandro Striggio. Neste excerto musical, presente no segundo Ato da ópera, o protagonista Orfeu recebe a notícia de que sua amada Eurídice foi morta por uma picada de cobra. Em um dos momentos mais dramáticos da narrativa, Orfeu canta então a ária Tu se morta!, seu lamento em música. O texto cantado no início da ária pode ser traduzido como: “Você está morta, está morta minha vida, e eu respiro?”. Vejamos:

Figura 6: Recitativo “Tu se Morta!” de Monteverdi, do segundo ato da ópera Orfeu (1607).

O trecho anterior mostra mais um exemplo em que dissonâncias não preparadas (circuladas em vermelho) são usadas na tentativa de simular a ideia de dor expressa pelo texto poético e contexto da narrativa. Neste caso específico, as duas

primeiras aparições de dissonâncias com este tratamento surgem na melodia cantada (um fá sustenido no segundo compasso e um sol sustenido no terceiro), ambas intervalos de sétima maior em relação aos baixos; o texto cantado nesse momento: /Você está morta/. Este primeiro momento contrapõe o seguinte, onde a palavra “vida” é cantada uma terça maior acima da nota do baixo. O percurso harmônico44, por sua vez, traz uma sequência de acordes menores que se move por intervalos de quinta: Sol menor, Ré menor e Lá menor. O acorde seguinte, também distante uma quinta do anterior, com baixo em mi, portanto, surpreende o ouvinte pois é maior e não menor como todos os outros anteriores, sendo que justamente a terça maior (sol sustenido), nota que evidencia a quebra de expectativa, está na melodia envolta da palavra “vida”. Nota-se, portanto, que no excerto a dicotomia morte e vida expressa pelo texto cantado é representada também pela harmonia através de acordes menores e maiores.

Desse modo, Monteverdi, ciente do valor simbólico que os intervalos musicais, a sequência harmônica e mesmo a quebra de uma condução contrapontística padrão podem oferecer, constrói nos exemplos citados uma música que visa reforçar as ideias contidas no texto poético.

Apesar das importantíssimas inovações trazidas por Monteverdi em seus madrigais, é preciso ressaltar que as críticas de Artusi não devem ser encaradas por nós na atualidade como meros sintomas de reacionarismo, mas sim como um compromisso moral que este estudioso tinha com a ideia de que a música é uma ciência45, herança do pensamento medieval o qual a música ocupava, nas Artes Liberais, lugar entre as ciências exatas (Quadrivium) 46. Neste contexto, por se tratar da ciência que exprime sonoramente as proporções matemáticas perfeitas da Natureza e que, portanto, como ciência, está erigida sobre leis e pressupostos teóricos fundamentais, quaisquer infrações às regras harmônicas já codificadas, além de imperfeições, representariam também um

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Foi inserido sob cada acorde um outro tipo de cifragem para que leitores que desconhecem os pressupostos da realização do baixo cifrado pudessem acompanhar com clareza a evolução harmônica do excerto.

45JENKINS, 2009. Para o aprofundamento neste argumento, ver “Giovanni Maria Artusi and the Ethics

of Musical Science” de Chadwick Jenkins (2009).

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A esse respeito, a pesquisadora Monica Lucas escreve: “O estudo da música nas universidades medievais concentrava-se na investigação das proporções matemáticas e não em seu efeito sonoro. Entretanto, a prática da composição musical, mesmo ausente dos estudos especulativos do quadrivium, também era regida por este mesmo pensamento proporcional. Os gêneros polifônicos mais relevantes da Idade Média, como o organum, o moteto e a missa eram elaborados a partir de um cantus firmus, uma estrutura pré-existente extraída do cantochão. Sobre ela se edificava a construção matemática da música, com base em relações numéricas (rítmicas e harmônicas).” (LUCAS, 2010, p. 30).

retrocesso no desenvolvimento científico da música. O compromisso de Monteverdi, por sua vez, assim como o compromisso da Seconda Pratica em termos gerais, parece estar mais relacionado com o uso da música como meio de expressão poética, como um possível veículo expressivo do significado das palavras que são cantadas, e não a busca pela perfeição da harmonia47. A esse respeito sintetiza Monica Lucas: “No século XVI, o aspecto declamatório da linguagem e seu valor imagético e afetivo passam a constituir as diretrizes da inventio musical, substituindo a ideia medieval de numerus.” 48.

A menção deste conflituoso episódio histórico como abertura deste capítulo teve como intuito oferecer ao leitor a origem do termo Seconda Pratica bem como contextualizar e sintetizar, em um único episódio, os conflitos ideológicos existentes entre as duas práticas. Mais do que isso, o estudo desta controvérsia entre Artusi e Monteverdi oferece, a quem a ela se debruça, uma melhor compreensão acerca das premissas estéticas e estilísticas da Seconda Pratica e dos frutíferos debates entre os músicos conservadores e progressistas por volta de 160049. Expostos aqui de maneira sintética os argumentos de cada um dos lados desta querela, partiremos agora para um aprofundamento acerca da produção musical e suas principais características em cada um dos estilos.