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CAPÍTULO 4 Tecendo paralelos

4.2 A Sprezzatura como ideia de naturalidade

Assim como no caso de Vincenzo Galilei e Jacopo Peri, a mesma busca por um modo de cantar próximo às inflexões da fala na interpretação das monodias pode ser vista nas ideias do compositor Giulio Caccini. Em seu tratado Le Nuove Musiche (1601) (As Novas Músicas), Caccini explicita a proximidade que o canto, em suas composições, deveria ter com a fala, e sugere aos intérpretes cantores dos Recitativos, por consequência, a utilização das ideias de sprezzatura e de liberdade rítmica, podendo ser entendido por nós através do termo rubato (Página 67).

Ao analisarmos a definição do termo sprezzatura oferecida por Castiglioni (página 67), deparamo-nos com a preocupação por parte do Cortesão barroco com sua imagem e com o juízo que os outros possam fazer de sua competência. Neste contexto, aquele que realiza algo de modo bem feito, aparentando facilidade e naturalidade, mostra-se capaz, persuade e promove deslumbre ao espectador. Este conceito, aplicado ao campo da música como fez Caccini no prefácio de seu tratado, manifesta-se em dois termos: no âmbito da atuação cênica e no âmbito da técnica vocal. No âmbito da atuação, o músico deve persuadir o espectador, simulando conscientemente uma atitude que faça parecer que o que se faz é realizado com extrema facilidade. Neste âmbito vemos, novamente, uma convergência com a arte teatral já que a performance musical do cantor não deixa de ser, também, um ato teatral codificado.

Já no âmbito técnico do canto, a utilização do termo sprezzatura propõe um modo de cantar que simule a ideia de “naturalidade” contida na voz que entoa uma fala cotidiana. Caccini sugere que a realização desta ideia possa ser conseguida através da ideia de rubato, termo pelo qual entende-se que o canto possa sofrer uma flexibilização métrica, propondo um canto mais livre em termos rítmicos.

Nota-se que uma abordagem muito parecida ocorre no canto de João Gilberto em relação à flexibilização da métrica da melodia cantada. A esse processo, lembramos que Martha Ulhôa denominou de métrica derramada e que este, assim como a proposta de Caccini, está intimamente relacionado à busca pela ideia de naturalidade no canto. Essa ligação pode ser confirmada ao notarmos no prefácio de Le Nuove

Musiche de Caccini a menção da ideia de que o canto possa, em suas músicas, não “se submeter à métrica regular”, de modo que, semelhante ao já citado depoimento de João

Gilberto (mencionado na página 115), praticamente flutue, sobre o acompanhamento do

Chitarrone com maior liberdade em termos rítmicos.

Em entrevista à revista “O Cruzeiro” no dia 10 de outubro de 1960, João Gilberto oferece um depoimento reforçando a ideia de que a voz cantada deva também ser amalgamada pela sensação de naturalidade:

Acho que os cantores devem sentir a música como estética, senti-la em termos de poesia e de naturalidade. Quem canta deveria ser como quem reza: o essencial é a sensibilidade. Música é som. E som é voz, instrumento. O cantor terá, por isso, necessidade de saber quando e como deve alongar um agudo, um grave, de modo a transmitir com perfeição a mensagem emocional (João Gilberto apud CAMPOS, 1986, p. 36).

Desse modo, conforme depoimentos na já mencionada entrevista a Tarik de Souza e Elifas Andreatto, João Gilberto demonstra que sua ideia a respeito do ato de cantar está relacionada ao par sensibilidade e consciência. Seu cantar de modo sensível se manifesta, inclusive, na escolha da instrumentação intimista pelo duo voz e violão. Ademais, sua proposta, com forte embasamento estético, parece evitar no canto qualquer tipo de afetação, refutando, para isso, a ideia de dramaticidade no modo de cantar, comum à canção brasileira da década de 1950, pré-Bossa Nova, composta em grande parte de sambas-canções que possuíam caráter grandioso, principalmente, devido aos arranjos com cordas e metais e um cantar operístico e passionalizado131. A esse respeito, Augusto de Campos relata, em seu livro Balanço da Bossa e outras

bossas:

[Tom] Jobim definiu a concepção do canto na Bossa Nova como consistindo em se cantar cool. Tentaremos explicar esta colocação. Isto quer dizer: cantar sem procura de efeitos contrastantes, sem arroubos melodramáticos, sem demonstrações de afetado virtuosismo, sem malabarismos. O cool coíbe o personalismo em favor de uma real

integração do canto na obra musical. O que está de acordo com a posição estética do movimento. A "voz cheia", o "dó de peito", a "lágrima na voz", o "canto soluçado" etc., são rejeitados pela Bossa Nova. Algo que causou e ainda causa espanto em grande parte do público: o fato de não se incrementar a loudness da voz quando se canta uma nota aguda. O canto flui como na fala normal (CAMPOS, 1986, p. 35).

Identificamos, portanto, um interesse em comum entre o canto de ambos os estilos ao negar não somente qualquer sinal de afetação ou esforço na voz132, mas também qualquer atitude ou maneira de cantar que distancie o fazer musical do propósito essencial de “elevar” a importância das palavras em música. Este propósito essencial é trazido à tona nos depoimentos aqui transcritos, e encontra-se relacionado tanto na aproximação do canto à fala (vocalização que privilegia a textualidade), quanto nos ideais subentendidos na utilização de termos como naturalidade, sprezzatura e até mesmo cool 133.

Outra característica de interessante constatação, em ambos os estilos musicais, é o fato de que a realização desta música tão fiel à inteligibilidade da palavra e à expressão de seu conteúdo poético é marcada e caracterizada por uma certa ruptura em relação às ideias e princípios estéticos dos respectivos estilos musicais antecessores, a saber: a Prima Pratica e o Samba-canção. Não à toa, os nomes Bossa Nova e Seconda

Pratica deixam sugerir que se tratam de estilos novos, ou diferentes. Conforme já vimos, o termo “Bossa Nova” nos remete a um jeito novo e diferente de fazer qualquer coisa134. Por sua vez, o termo Seconda Pratica nasce justamente em contraposição direta ao seu estilo antecessor, a Prima Pratica, refutando a maneira contrapontística de cantar o texto poético.

132 Com exceção, conforme mencionado na página 69, do caso das Monodias de Caccini, que

frequentemente apresentam longos ornamentos.

133 “Cool é um adjetivo na língua inglesa e que significa “legal”, na tradução literal para o português. Este

termo é utilizado em um contexto informal, como uma gíria para qualificar algo ou alguém como “radical”, “calmo”, “descolado” ou “tranquilo”, por exemplo. ”. Fonte: <http://www.significados.com.br/cool/>.

Ainda mais interessante é notar que a ópera – gênero que surge na Seconda

Pratica como decorrência justamente da busca por um canto que simulasse a ideia de naturalidade, por uma maneira discreta de se cantar uma história por meio do Recitativo

– chega entre os músicos da Bossa Nova, em especial João Gilberto, após mais de

quatro séculos de desenvolvimento e apresentando uma diferença gritante em relação à sua proposta estética original, associada a um modo de cantar exagerado e grandioso. Naturalmente, por se tratar de um gênero musical com longa trajetória, a ópera possui flutuações estéticas próprias e, a respeito da transição da ideia de economia para a de exagero (cujo ápice está situado no século XIX), está associada aos locais onde este gênero passou a ser apresentado no decorrer de sua evolução: espaços físicos cada vez maiores, onde a voz sem um tratamento especial, certamente distante de seu comportamento cotidiano na fala, não seria ouvida a contento.

De outra parte, é apenas devido à invenção do microfone que o cantor João Gilberto pôde apresentar-se, à sua maneira, em grandes teatros e casas de show, mesmo que se priorizasse, pelo menos a princípio, que o local de apresentação da Bossa Nova fosse um ambiente pequeno e de atmosfera intimista. A invenção da amplificação sonora artificial por meio do microfone permitiu que uma gama variada de recursos vocais de baixa intensidade pudesse ser ouvida a longas distâncias ou para plateias numerosas. Esse advento tecnológico gerou, sintomaticamente, novas demandas técnicas para a voz cantada em muitos estilos musicais.