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CAPÍTULO 3 A Bossa Nova

3.3 Chega de Saudade

É neste contexto que surge, em agosto de 1958, o compacto simples96 do violonista e cantor João Gilberto, com as músicas “Chega de Saudade” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, no lado A, e “Bim Bom” do próprio João Gilberto, no lado B. Para muitos pesquisadores, o lançamento deste compacto simples é considerado como o marco inicial da Bossa Nova97.

A canção “Chega de Saudade” já havia sido gravada meses antes na voz de Elizeth Cardoso em seu disco Canção do Amor Demais, um disco todo de composições da dupla Tom Jobim e Vinícius de Morais, com arranjos de Tom Jobim e o próprio João Gilberto no violão nas faixas “Chega de Saudade” e “Outra Vez”. Para outros pesquisadores esse sim seria o marco inicial da Bossa Nova uma vez que, nesta canção em especial, já se ouvia alguns dos aspectos estéticos que passariam a definir o estilo posteriormente, sobretudo a batida da Bossa Nova, aspecto que veremos mais detalhadamente ainda neste capítulo.

De qualquer maneira, independentemente de qual seria o marco inicial do estilo, João Gilberto e Tom Jobim já apareciam em ambos os casos como envolvidos

95ULHÔA, 1999, p. 51.

96Tipo de disco de vinil que tinha, a cada lado, a possibilidade de armazenar 4 minutos de gravação. Por

este motivo, a imensa maioria deste tipo de disco trazia apenas duas músicas.

diretos, demonstrando por meio de “Chega de Saudade” as novas abordagens musicais que viriam a ser marcas da Bossa Nova. Apresentamos a seguir alguns excertos da canção “Chega de Saudade” em partitura bem como sua gravação no compacto simples de João Gilberto, de 1958. Em relação a notação da canção em partitura, é necessário ressalvar que nosso intuito é somente oferecer uma referência, uma vez que a notação pode estar sujeita a variações, sobretudo no âmbito rítmico, em relação a interpretação de João Gilberto contida no fonograma.

A respeito da canção apresentada anteriormente, discorreremos brevemente sobre algumas de suas principais características estéticas para que, na próxima seção do texto, possamos nos aprofundar em cada característica, separadamente.

Ao ouvir a gravação do fonograma de “Chega de Saudade”, um dos primeiros aspectos a ser discutido é a maneira de cantar de João Gilberto. João nega a figura do cantor de voz potente e interpretação passional, tão associado ao Samba- canção da época, ao propor um canto muito mais próximo da maneira de falar, articulando minuciosamente o texto cantado, sem a presença de vibrato, sem grandes variações de dinâmica, sem portamentos e ornamentos. Esta proposta vocal de João, sobretudo para esta canção, foi motivo de um desentendimento entre Elizeth Cardoso e João Gilberto no decorrer da gravação do disco Canção do amor demais. Segundo Ruy Castro, em seu livro Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova:

(...) quando Tom e Vinícius se reuniam com Elizete na rua Nascimento Silva, para ensinar-lhe as canções [do disco Canção do Amor Demais], ele [João Gilberto] fazia questão de estar presente. Não estava gostando da gravidade com que a Divina [Elizete] tratava as músicas, como se fossem peças de algum repertório sacro — talvez porque as letras fossem de um poeta importante, Vinicius de Moraes. João queria que Elizete as cantasse mais para cima, principalmente os sambas, e às vezes se metia a dar palpites. Mostrou-lhe como fazia com ‘Chega de Saudade’, atrasando e adiantando o ritmo de acordo com o que achava que a letra pedia, e tentou induzi-la a tentar algo pa- recido. Mas Elizete não se interessou muito por suas sugestões e, pela insistência, deu a entender que não precisava dos seus palpites (CASTRO, 1990, p. 176).

Nesse sentido, parece que mesmo antes da gravação de sua interpretação para esta canção, João Gilberto já tinha em mente o tratamento vocal que julgava ser o adequado para este contexto. A respeito da sugestão de se “atrasar e adiantar o ritmo”, João faz menção, na realidade, a um certo deslocamento métrico da melodia do canto em relação ao acompanhamento, na tentativa de apresentar o texto de modo mais natural, como se o estivesse dizendo. Este aspecto interpretativo do canto de João

Gilberto se evidencia mais claramente no início da segunda parte da canção, ao cantar o texto /Mas se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda/. Além disso, essa é uma das características mais marcantes de seu estilo vocal e se manifesta em inúmeras outras interpretações do cantor.

Outro aspecto importante a ser mencionado trata da batida da Bossa Nova, presente no violão de João Gilberto tanto na versão de seu compacto simples quanto na interpretação de Elizeth Cardoso. O termo batida faz menção a um certo padrão rítmico constante, uma espécie de clave, ou levada, do acompanhamento, que realiza a sequência harmônica sempre no mesmo balanço. No caso da batida da Bossa nova, ela é originaria diretamente do ritmo do samba, porém com a omissão de alguns elementos deixando-os subentendidos, valorizando o caráter sincopado do acompanhamento.

Em relação ao arranjo de “Chega de Saudade”, escrito por Tom Jobim para o compacto de João Gilberto, nota-se uma diferença em relação aos arranjos do samba- canção, como, por exemplo, o arranjo de “Segredo” na interpretação de Dalva de Oliveira, canção apresentada e discutida anteriormente neste capítulo. Ao invés da presença constante de contracantos em bloco feitos pela orquestra, Tom Jobim preza pelo espaço vazio ao inserir somente algumas linhas melódicas como contracanto, priorizando sempre o aparecimento paulatino dos instrumentos que, com linhas simples e precisas, muitas vezes reforçam alguma das vozes da sequência harmônica. Cabe mencionar que esta concepção de arranjo desenvolvida por Jobim já pode ser constatada no disco Canção do amor demais. Na primeira estrofe de “Chega de Saudade” na versão de João Gilberto, por exemplo, nota-se o aparecimento de uma linha de trombone solo que se inicia cuidadosamente no intervalo de uma respiração do cantor. Sua entrada, apesar de nos remeter à ideia de uma certa solenidade, pode sugerir também a ideia de melancolia expressa pela letra da canção, uma vez que a figuração rítmica de seu contracanto possui notas de longa duração em relação à melodia principal e seu desenho melódico move-se por graus conjuntos, sempre em movimento descendente. Essa característica é reforçada no fim da linha de trombone que, sob o excerto de texto “é só tristeza e a melancolia que não sai de mim...”, fecha seu percurso melódico realizando uma sequência cromática descendente, uma espécie de catabasis98 lamentosa que dialoga diretamente com o conteúdo poético da letra cantada.

98 Catabasis é o nome de uma figura retórico-musical que se caracteriza por ser uma sucessão de notas

O mesmo acontece com a segunda parte da canção, marcada pela mudança de caráter do texto poético que deixa de ser envolto pela atmosfera de melancolia e passa a exprimir esperança e alegria nos versos “Mas se ela voltar, que coisa linda, que coisa louca...”. É neste momento que Tom Jobim apresenta na orquestração do arranjo o naipe de cordas que, apesar do número grande de instrumentos que o compõe, realiza uma linha em uníssono. Vemos, portanto, que a relação dialética de melancolia/alegria expressa pela letra da canção é considerada por Jobim no âmbito da escolha da instrumentação do arranjo ao associar cada afeto do texto a um tipo de instrumentação: melancolia/metal/solo; esperança/cordas/naipe. Interessante notar que este tipo de associação entre o afeto do texto e a instrumentação utilizada já havia sido explorada por Claudio Monteverdi em sua ópera “Orfeu”, que, na ocasião, relacionou a instrumentação utilizada aos locais por onde as cenas de sua narrativa transcorriam. Em “Orfeu”, por exemplo, os instrumentos de metal como trombones e cornetos só aparecem quando o protagonista Orfeu chega ao inferno.

Ainda acerca do arranjo de Jobim para “Chega de Saudade”, em relação à instrumentação de base, nota-se a ausência do contrabaixo, cuja função passou a ser feita pelo próprio violão. A bateria também é tocada sem o bumbo e com a condução na caixa feita por baquetas estilo vassourinha99. Com isso, Jobim ressalta na canção o papel do violão e da voz, principais protagonistas do fazer bossanovista, e dá à música um tratamento mais soft e econômico.

No âmbito melódico, a primeira parte da canção apresenta uma figuração rítmica com a presença maior de notas de longa duração. Já na segunda parte, a ênfase nos recortes rítmicos, acaba por atenuar o caráter passional da primeira, valorizando mais o componente temático100

característico das celebrações e das conjunções.

Já no âmbito da harmonia, constata-se que vários dos acordes utilizados na canção possuem tensões – dissonâncias como sétimas, nonas e décimas terceiras –

99 Observação realizada por Cacá Machado e presente em seu livro “Tom Jobim” de 2008.

100 A esse respeito, Tatit afirma em seu livro O cancionista: “(...) ao investir na continuidade melódica, no

prolongamento das vogais, o autor está modalizando todo o percurso da canção com o /ser/ e com os estados passivos da paixão (é necessário o pleonasmo). Suas tensões internas são transferidas para a emissão alongada das frequências e, por vezes, para as amplas oscilações da tessitura. Chamo a esse processo passionalização. Ao investir na segmentação, nos ataques consonantais, o autor age sob a influência do /fazer/, convertendo suas tensões internas em impulsos somáticos fundados na subdivisão dos valores rítmicos, na marcação dos acentos e na recorrência. Trata-se, aqui, da tematização.” (TATIT, 2002, p. 22).

incorporadas à sua estrutura, dando à sequência harmônica uma sonoridade específica já há muito utilizada por compositores como Claude Debussy e Maurice Ravel, e mesmo Johnny Alf e Radamés Gnatalli, de quem Tom Jobim foi discípulo. Além disso, chama- nos a atenção um detalhe interessante: mais uma vez a expressão da dor ou sofrimento pela ausência da amada pelo eu-lírico se manifesta no âmbito da harmonia por uma dissonância. Na canção, a palavra “sofrer”, do excerto “porque eu não posso mais sofrer...” decai sob uma nona diminuta (b9), ou uma segunda menor, em relação ao baixo Lá.

Figura 19: excerto de “Chega de Saudade”.

A segunda parte da canção – a qual já mencionamos ser o momento em que o texto abandona o caráter melancólico e passa a ser esperançoso em relação à volta da mulher amada – possui reflexos diretos no âmbito da harmonia, uma vez que esta passa por uma modulação, indo de Ré menor para Ré maior. Na figura seguinte, apresentamos um excerto da canção em partitura desta seção em Ré maior.

Figura 20: seção em Ré maior de “Chega de Saudade”.

Assim, a clássica associação afetiva atribuida às terças maiores ou menores também se confirma nesta canção, dada a mudança de harmonia da composição e do tratamento melódico serem concomitantes à mudança de afeto do texto poético. Essa característica pode ainda ser vista mais pontualmente no fato de a conjunção adversativa “mas”, primeira palavra da nova seção da canção e termo que naturalmente expressa um contraste em relação ao que estava sendo dito anteriormente, decair justamente sob uma terça maior em relação ao baixo, nota mais importante na concretização e percepção da modalização harmônica101 de Ré menor para Ré maior.

Um ano após o lançamento do compacto simples com as canções “Chega de Saudade” e “Bim Bom”, João Gilberto lança o LP “Chega de Saudade”, com as mesmas

101 O termo modalização é utilizado uma vez que na canção, entre a primeira e a segunda parte, ocorre

uma mudança no modo escalar (de menor para maior), mas o espectro das notas percorridas é o mesmo. Não ocorre uma mudança/expansão de tessitura; mas, sim é possível perceber uma abertura do caráter melódico, dada a passagem do menor para o maior

canções de seu compacto simples de 1958 e mais outras 10 canções, entre elas “Desafinado” de Tom Jobim e Newton Mendonça, e “Rosa Morena” de Dorival Caymmi. Uma característica interessante deste disco de João Gilberto, e também de outros discos posteriores como O amor, o sorriso e a flor (1960) e João Gilberto (1961) é a presença de sambas anteriores à Bossa Nova com interpretação de João Gilberto, que aplicou seu traço estético a um repertório que até então era abordado de uma maneira bem distinta.

Na contracapa do LP “Chega de Saudade”, Tom Jobim escreve o seguinte texto de apresentação:

João Gilberto é um baiano, "bossa-nova" de vinte e seis anos. Em pouquíssimo tempo, influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores. Nossa maior preocupação, neste "long-playing" foi que Joãozinho não fosse atrapalhado por arranjos que tirassem sua liberdade, sua natural agilidade, sua maneira pessoal e intransferível de ser, em suma, sua espontaneidade. (...) Eu acredito em João Gilberto, porque ele é simples, sincero e extraordinariamente musical.

P. S. - Caymmi também acha (JOBIM in “Chega de Saudade”, 1959).

Por meio de seu texto, Jobim atesta sua consciente preocupação em escrever os arranjos do disco de João Gilberto de modo a não atrapalhar uma importante característica da interpretação do cantor: a agilidade e o aspecto econômico de seu canto, sobretudo em relação à batida de seu violão.

Após o lançamento deste LP de João Gilberto, vê-se emergir uma série de outros LPs de autores como Roberto Menescal, Carlos Lyra, Nara Leão, Sylvia Telles, entre outros, produção que seria caracterizada por Luiz Tatit como “Bossa Nova intensa”. Apesar de se tratar de uma importante produção para a sedimentação do estilo, neste trabalho focaremos no recorte dado à obra de João Gilberto em parceria com Tom Jobim no período inicial da Bossa Nova, recorte que já contém os aspectos fundamentais do estilo e que permite a construção da comparação com a Seconda

Pratica no Capítulo seguinte. Desse modo, trataremos mais especificamente, até o fim deste Capítulo, de aspectos como o canto-falado de João Gilberto, sua batida de violão,

os aspectos da instrumentação utilizada e da elaboração dos arranjos e da relação entre harmonia e letra cantada.