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CAPÍTULO 2 A Seconda pratica

55 COELHO, 2000 56 PALISCA, 1989.

2.6 O Baixo contínuo

Na Seconda Pratica, a prática de acompanhar o canto, a realização do que é chamado de baixo contínuo, ou baixo cifrado, se firmou como uma técnica de acompanhamento que perpassou inúmeros outros estilos musicais ao longo do período barroco. Acredita-se que esta técnica tenha sido criada pelos compositores da Camerata

Fiorentina, conforme nos explica Stella Almeida Rosa:

As origens da técnica de acompanhamento conhecida por baixo contínuo remontam à Itália do final do século XVI. Convencionou-se considerar o método de notação “baixo cifrado” (basso numerato,

figured bass, basse chiffrée, General bass) como uma invenção de Lodovico da Viadana (1564-1645), com sua obra Cento Concerti

Eclesiastici, de 1602. Essa convenção é, contudo, contestada pelos trabalhos publicados por Jacopo Peri (1561-1633), Giulio Caccini (1545-1618) e Emilio de Cavalieri (1550-1602) contendo baixos numerados dois anos antes da publicação dos concertos de Viadana. Esses três compositores pertenceram à Camerata Fiorentina, o que pode significar que a técnica de baixo cifrado tenha se originado naquele grupo de nobres e músicos que, no anseio de recriar o drama grego com música, produziram as primeiras experiências em ópera (ROSA, 2007, p. 5).

Estéticamente, a realização e prática do baixo contínuofoi desenvolvida ao longo de muitos anos, tendo sido descrita e aperfeiçoada por muitos Tratados, tais como: Del sonare sopra il basso [Do tocar sobre um baixo] (1607) de Agostino Agazzari (1578 – 1640), Breve Regola Per Imparar A Sonare Il Basso Com Ogni Sorte

D’Istrumento [Breve Regra Para Aprender a Tocar O Baixo Com Cada Tipo de Instrumento] (1607) de Francesco Bianciardi (1570 – 1607), entre inúmeros outros. Os instrumentos mais comumente utilizados neste tipo de acompanhamento eram o órgão,

a harpa, a viola da gamba, a teorba, o chitarrone, a espineta, e, principalmente, o cravo e o alaúde67.

Em síntese, a técnica consiste na escrita de uma linha melódica de baixo, em oposição a linha melódica principal. Sob as notas desta melodia grave muitas vezes são colocadas cifras numéricas que fazem menção à construção do acorde que deve ser tocado nos momentos estabelecidos. Por um lado, a técnica de escrita do baixo cifrado nos remete às cifras de música popular, hoje normalmente encontradas em songbooks, uma vez que indicam quais acordes serão tocados e onde cada acorde deve aparecer em relação a melodia. Uma das principais diferenças reside na autonomia da realização melódica do baixo, haja vista que no repertório barroco o baixo dos acordes é escrito na partitura como uma linha melódica e no contexto das cifras de música popular o caminho do baixo está incorporado pela cifragem.

No repertório barroco a realização do baixo contínuo não implica a utilização de um instrumento em específico, de modo que, em contextos musicais longos, como em uma ópera, esta escolha de instrumentação pode ser utilizada com fins poéticos, como por exemplo, associar o instrumento que realiza o contínuo a um personagem, um afeto ou um lugar hipotético da história narrada. Vê-se, também, muitas vezes a presença de uma viola da gamba ou violoncelo dobrando somente a linha melódica do baixo com o instrumento que realiza o contínuo. No caso da realização do contínuo em um instrumento de teclado, costuma-se executar a linha do baixo com a mão esquerda e completar a harmonia com a mão direita, um ótimo exercício para o instrumentista em formação, diga-se de passagem, já que grande parte da abordagem inicial do aluno com esse tipo de instrumento parte do contrário: melodias na mão direita e acordes na mão esquerda.

Em relação às cifras no baixo contínuo, na maioria das vezes elas vêm em forma de números que indicam o intervalo da nota a ser acrescentada na harmonia em relação ao baixo. Então, como exemplo, se o baixo for a nota dó e este vier com os números 4 e 6, sabemos que o acorde a ser montado compreende as notas dó (o baixo),

fá (uma quarta) e lá (uma sexta). Os números 3 e 5 normalmente não aparecem na cifragem pois via de regra as terças e quintas (e mesmo as oitavas) estão subentendidas na montagem do acorde. Bemóis e sustenidos são acrescentados na cifragem para alterar

uma nota de acordo com o diatonismo vigente. Vejamos a seguir o excerto do Recitativo “Al fonte, al prato” de Caccini, com a linha do contínuo não realizada.

Figura 12: Excerto de monodia de Caccini com baixo contínuo não realizado Fonte: FEDERICI, 2009, p. 59.

Com o excerto anterior é possível notar que o continuísta frequentemente deve lidar com a falta de informações expressas na partitura, avaliando sempre o contexto global da música para a boa realização de sua parte. O instrumentista que acompanha a monodia deve, muitas vezes, atentar-se para as notas que os outros instrumentos estão tocando para deduzir qual harmonia deve ser tocada ou para não tocar notas que entrem em conflito com as linhas melódicas. Um exemplo disso ocorre no compasso 5, onde no terceiro tempo o baixo vai para a nota lá e sem nenhuma cifra, levando o intérprete a supor que o acorde a ser tocado seja um lá menor (com baixo, terça e quinta, intervalos subentendidos na realização do baixo sem cifra). Entretanto, a linha melódica do canto nesse exato momento vem de uma suspensão na nota fá (uma sexta em relação ao baixo) e, ainda no terceiro tempo, passa pela nota mi bemol, dissonância de trítono em relação ao baixo. Este caminho melódico do canto esclarece ao continuísta que a harmonia desse compasso não possui um lá menor, mas sim um fá

maior com a sétima menor (com baixo em lá), uma dominante em relação ao próximo

De qualquer maneira, é importante atentar que a cifragem do baixo contínuo estabelece as diretrizes harmônicas da composição, mencionando qual acorde e em qual lugar ele deve ser tocado, mas nem sempre oferece na notação em partitura todas as informações necessárias aos intérpretes. A sua realização, portanto, está vinculada a uma certa expertise previamente adquirida, sem contar nas flutuações estéticas existentes na realização do contínuo de acordo com o estilo e o país de determinado repertório. Interessante também é notar que o contraponto, tão combatido pelos membros da Camerata quando presente nas linhas vocais, passa a ter um papel essencial na realização do acompanhamento instrumental. Nesse sentido, o continuísta, assim como os compositores da Prima Pratica, deveria estudar para se tornar um hábil contrapontista.

Ainda a respeito do acompanhamento musical realizado pelo baixo contínuo, Caccini discorre: “O acompanhamento deve ser simples, a ponto de não ser escutado; as dissonâncias só devem ser utilizadas sobre determinadas palavras, para enfatizar uma expressão verbal.”68. Nota-se na afirmação de Caccini que o seu critério de uso das dissonâncias converge com o critério de Monteverdi ao defender-se das acusações de Artusi: o texto é quem indica o que acontecerá na música.

Com o desenvolvimento do estilo recitativo para além da Seconda Pratica, nota-se a emergência de dois tipos distintos em relação ao acompanhamento instrumental: o recitativo secco e recitativo acomppagnato. No caso do recitativo secco, o canto é acompanhado pelo menor número possível de instrumentos, muitas vezes com acompanhamento solo de Cravo, Órgão, Alaúde, entre outros. Trata-se de recitativos como os de Caccini ou Peri anteriormente apresentados.

No caso do Recitativo acomppagnato, a instrumentação que acompanha a linha do canto ganha mais possibilidades ao permitir que a orquestra possa assumir o papel de acompanhamento instrumental e, com isso, novas cores: uma potente ferramenta composicional usada principalmente com fins poéticos. Nestes casos, a melodia do canto passa a ser, sintomaticamente, menos livre no âmbito rítmico, distanciando-se do propósito inicial da Camerata Fiorentina de aproximar o canto da fala. No caso da “Paixão segundo S. Matheus” (BWV 244), do compositor J. S. Bach, por exemplo, os Recitativos cantados pelo personagem Jesus trazem consigo, além do

68

suporte harmônico realizado pelo contínuo, o acompanhamento de violinos e viola, conferindo ao acompanhamento da “fala” desta personagem um tratamento diferenciado na sonoridade em relação aos outros personagens.

Figura 13: Exemplo de Recitativo acompagnato. Excerto da fala de Jesus em Paixão segundo S. Mateus,

de J. S. Bach.