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CAPÍTULO 3 A Bossa Nova

3.5 A batida bossa nova

Antes de iniciarmos uma discussão mais aprofundada sobre a batida específica da Bossa Nova e suas inovações trazidas por João Gilberto, é interessante refletir mais profundamente sobre a própria ideia de batida. Conforme já mencionamos anteriormente, a batida trata-se de um padrão rítmico constante, com termos equivalentes como levada, clave, ritmo, groove, toada, entre outros. Sua execução é marcada pela periodicidade de um ou mais padrões, pela constante repetição de um certo ostinato rítmico e suas variações, e cujo processo de escuta joga continuamente com a expectativa do ouvinte, muitas vezes gerando um pulso/impulso corporal. Não à toa nota-se que muitos dos diferentes ritmos, cada qual com a sua peculiar batida,

possuem correspondências diretas com ritmos de dança, como o samba, forró, frevo,

funk (carioca ou estadunidense), tango, salsa, valsa, etc.

No contexto da canção popular brasileira, frequentemente notamos no acompanhamento instrumental da melodia cantada a presença de um ritmo nestes termos. Nestes casos, o acompanhamento instaura um modelo característico na base da reiteração, consolidando uma camada com balanço próprio e cujas outras camadas (da melodia ou de contracantos, por exemplo) podem estar ora em fase ora em defasagem com a camada do acompanhamento. Assim, nota-se que a presença da batida na canção popular embala a escuta de uma reiterada expectativa e de uma corporeidade e acaba sugerindo ao ouvinte uma espécie de escuta polifônica, uma vez que em inúmeros casos o ouvinte concatena a escuta de distintas camadas sonoras concomitantemente.

Especificamente em relação à batida da Bossa Nova, o pesquisador Walter Garcia111 chama atenção para o fato de que um dos elementos decisivos para a caracterização da Bossa Nova como um novo estilo musical foi o ritmo da batida do violão de João Gilberto. De fato, a proposta de João Gilberto causou uma reação imediata entre os músicos da época, que rapidamente reconheceram o aspecto inovador do acompanhamento de seu violão. Em depoimento (contido no songbook Bossa Nova

volume 2, organizado por Almir Chediak) o violonista Roberto Menescal conta como aprendeu a batida de João Gilberto: “Grudei no João uns dez dias, jantei, almocei e tomei café com ele até pegar a batida. Carlinhos [Lyra] fez a mesma coisa. Para nós, foi um pouco difícil, porque era uma coisa inteiramente nova, mas sabíamos que iríamos assimilar logo” 112

.

Aos analisarmos os principais aspectos desta batida, é interessante notar que sua proposta está em fase com o delineamento estético do estilo Bossa Nova como um todo, uma vez que sua proposição se relaciona com a busca por concisão e despojamento. Nesse sentido, a gênese da batida da Bossa Nova tem como ponto de partida a batida do samba, porém tratado como um samba menos denso, com a inserção de mais espaços vazios e feição mais moderna devido aos acordes utilizados. Uma boa definição do acompanhamento do violão de João Gilberto é dada por Luiz Tatit:

111 GARCIA, 1999, p. 78.

Do ponto de vista rítmico, a batida regular que o cancionista [João Gilberto] articula na mão direita está plenamente conectada à tradição regular do samba. Ocorre que (...) João Gilberto omite (...) a obviedade contida na marcação dos tempos fortes (aquilo que, numa batucada de escola de samba, equivaleria à marcação periódica do surdo) deixando-a, entretanto, fartamente sugerida nos impulsos dos toques intermediários. O resultado é um samba, mas um samba compatibilizado com o tratamento centrípeto e econômico que caracterizou a bossa nova (TATIT, 2002, p. 163).

A batida bossa nova herda diretamente do ritmo do samba o sotaque característico do compasso binário, com a presença da sincopa, a subdivisão em semicolcheias, o peso no segundo tempo do compasso (que no samba normalmente é executado pelo surdo). Em relação ao processo de omissão de elementos na gênese da

batida bossa nova, Tom Jobim comenta:

[a batida da Bossa Nova] já existia no carnaval, já existia no tamborim (...) mas não era proeminente. O samba sempre teve muito acompanhamento, muita batucada – às vezes sofria de excesso de acompanhamento, inclusive. Você tocando tudo ao mesmo tempo (...) não deixa espaços. Você acaba criando uma zoeira que mais parece um mar de ressaca. O que nós fizemos ali com o João [Gilberto] foi tirar as coisas, criar espaços, dissecar, despojar, economizar (JOBIM

apud GARCIA, 1999, p. 22).

A ideia de concisão associada ao acompanhamento da Bossa Nova no violão é oriunda da omissão de elementos da levada do samba, uma postura tomada conscientemente em função de se criar espaços no acompanhamento instrumental e na obra cancional, como um todo. Conforme mencionado anteriormente, essa mesma postura associa-se tanto à linguagem dos arranjos escritos por Jobim quanto à própria maneira de cantar proposta por João Gilberto, que evita o prolongamento das vogais e o volume acentuado da voz.

Gilberto Mendes, em seu texto De como a MPB perdeu a direção e

continuou na vanguarda, menciona a levada rítmica da Bossa Nova proposta por João

Gilberto e a transcreve, conforme presente na seguinte figura:

Figura 22: Marcação básica da Bossa Nova. Fonte: MENDES in CAMPOS, 1986, p. 140.

Segundo o autor, João Gilberto isolou e remontou certos elementos da

batida tradicional do samba para a criação da batida da Bossa Nova. Para a visualização da gênese deste procedimento, Gilberto Mendes apresenta em seu texto “as três fases rítmicas mais características por que passou o samba” 113. Vejamos:

Figura 23: Fases rítmicas mais características do samba, segundo Gilberto Mendes. Fonte: MENDES in CAMPOS, 1986, p. 139.

Em relação à célula rítmica representada por I na figura anterior, Gilberto Mendes menciona, inclusive “segundo o próprio Mário de Andrade”, que se trata de uma célula oriunda da Habanera espanhola, conhecida como “ritmo de Habanera”, e que na América do Sul frequentemente está presente no tango argentino e nos tangos brasileiros de Alexandre Levy e Ernesto Nazareth. Entretanto, essa informação entra em conflito com o que escreve o pesquisador Carlos Sandroni em seu livro Feitiço decente:

transformações do samba no Rio de Janeiro. Para Sandroni, o “ritmo de Habanera” é

representado pela seguinte figura:

Figura 24: “ritmo de Habanera”, segundo Carlos Sandroni.

Além disso, Sandroni ainda completa com a seguinte informação:

O nome [ritmo de Habanera] é enganoso por dar a entender que foi a habanera que introduziu esse ritmo na música brasileira (aliás, de modo geral na latino-americana). Na verdade (...) a habanera é apenas uma das manifestações daquele nas músicas em questão (SANDRONI, 2001, p. 30).

Em relação à célula representada por II (na figura 24), Gilberto Mendes diz se tratar de uma célula com “maior elasticidade na permanente pulsação em semicolcheias (é o samba de morro carioca, variando-as entre cuíca, tamborim e frigideira – exemplo A), sobre a percussão fundamental (exemplo B)” 114. Em relação a célula II-A, nota-se que a pulsação permanente de semicolcheias está implícita na

batida da Bossa Nova, de modo que, mesmo não aparecendo no acompanhamento do

violão, em muitos arranjos do estilo essa figuração rítmica está presente na percussão, seja no ganzá, seja na condução da bateria com as vassourinhas.

Gilberto Mendes menciona ainda como uma das fases rítmicas características do samba a célula a qual denominou como “estrutura rítmica folclórica”. Esta célula rítmica, caracterizada pelo padrão 3+3+2, é também conhecida como

tresillo. Segundo Sandroni: “Como esse ritmo comporta três articulações, os cubanos chamaram-no tresillo (...). Mas o tresillo aparece na música de muitos outros pontos das Américas onde houve importação de escravos, inclusive, é claro, no Brasil.” 115

.

Para Gilberto Mendes, a batida da Bossa Nova se encontra em potencial na rítmica folclórica e na segunda célula apresentada. Além disso, em seu texto o autor oferece ainda a transcrição de algumas variantes dessa marcação rítmica, podendo ser encontradas nas levadas de João Gilberto e nas sessões de percussão dos arranjos das canções do estilo. Vejamos:

Figura 25: Variações da batida da Bossa Nova segundo Gilberto Mendes. Fonte: MENDES in CAMPOS, 1986, p. 140.

Dessa maneira, podemos notar que João Gilberto aplicou ao universo rítmico do samba um tratamento mais econômico, escolhendo quais células deveriam ser omitidas e remontando as figuras já conhecidas em sua batida particular. O resultado, por consequência, soa como um samba moderno e enxuto, dois atributos caros à estética bossanovista.

Além disso, a melodia cantada por João Gilberto, muitas vezes busca um diálogo rítmico com a batida, criando um jogo de íntima relação. Essa abordagem pode ser vista na canção “Bim Bom”, por exemplo, presente no compacto simples de 1958 de João Gilberto. A figura a seguir mostra a transcrição rítmica da melodia cantada por João Gilberto e da batida executada pelo acompanhamento de seu violão e foi retirada

dos anexos do livro Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto, de Walter Garcia.

Figura 26: Transcrição rítmica da melodia cantada e do acompanhamento no violão da canção “Bim

Bom”, de João Gilberto.

Fonte: (GARCIA, 1999 apud FAOUR, 2006, p. 31)

Como podemos notar na figura anterior, a rítmica da melodia possui quase sempre os ataques nos espaços dos ataques da rítmica da batida. Trata-se, portanto, de um sofisticado encaixe rítmico.

A ideia de despojamento, por sua vez, pode estar relacionada a outro aspecto inovador trazido pela batida de João Gilberto: as harmonias. Em relação ao acompanhamento do samba, não tanto o samba-canção que já vinha trazendo harmonias mais sofisticadas em canções de Johnny Alf, por exemplo, mas sobretudo em relação ao samba tradicional.

Por fim, Walter Garcia sintetiza o processo de gênese da batida da Bossa Nova e relaciona o traço estético deste acompanhamento instrumental com outros aspectos da composição Bossa Nova:

A batida se produz, formalmente, pela simplificação requintada do padrão rítmico do samba, e a obra bossa-nova (desde a composição, a interpretação, o arranjo, a produção fonográfica e gráfica do disco até a apresentação em show), estruturada a partir desse violão que reduz e concentra em movimento centrípeto a batucada, despe-se do supérfluo mas volta-se para o detalhe, tornando-se derramada para dentro 116

(GARCIA, 1999, p. 81).

Com isso, podemos reconhecer na Bossa Nova um traço estético coerente, sendo possível notar a busca pela síntese, objetividade e construção do detalhe em vários aspectos de sua produção cancional, desde a batida, até o modo de cantar, o tratamento dado aos arranjos e a própria concepção do show, sobretudo em se tratando de João Gilberto e da linha genealógica de compositores e intérpretes que se construiu a partir dele e com ele identificada.

Em seu livro Semiótica da canção, Luiz Tatit oferece um outro excerto a respeito da batida de João Gilberto, desta vez mencionando também a relação com a rítmica da melodia cantada:

A batida é o pulso concebido para o acompanhamento instrumental e que assegura a continuidade da peça. Rigorosamente dentro da gramática geral do samba, a batida de João Gilberto propunha uma divisão regular, deslocando, porém, seus ataques instrumentais do tempo forte do compasso. Com isso, o intérprete já garantia uma configuração extensa livre de estereótipos que, na época, cristalizavam o samba tradicional. Em seguida (ou simultaneamente), calibrava de forma muito particular os acentos das células rítmicas da melodia, indissociáveis dos acentos das palavras da letra, com a periodicidade

116 A expressão “derramada para dentro” é de autoria de Chico Buarque e faz parte do seguinte

depoimento, presente no songbook Tom Jobim volume 1, de Almir Chediak: “Eu era um garoto que, como os outros, amava a Bossa Nova e o Tom Jobim. Queria ser um compositor igual ao Tom Jobim. Não gostava mais das canções desesperadas. Só queria aquela música que era toda enxuta, porque derramada para dentro.” (BUARQUE apud CHEDIAK, 1990, p. 8).

sincopada do acompanhamento, fortalecendo, na relação voz/violão, a autonomia da gramática interna da canção (TATIT, 2007, p. 36).

Nesse sentido, um aspecto importante a ser mencionado é o fato de que, apesar de se atribuir à Bossa Nova a ideia de ruptura estética em relação ao Samba- canção e seus exageros dramáticos, nota-se que seu elo com o samba está fortemente presente ao longo de toda a existência do estilo musical. Este elo é possível de ser constatado na sua batida peculiar, que deriva diretamente da batida do samba, e também na presença de inúmeros sambas anteriores ao aparecimento da Bossa Nova reinterpretados por João Gilberto no decorrer de sua carreira artística. Por esse motivo, João Gilberto frequentemente se diz “cantor de samba”, porém, nesse sentido, de um samba no qual a presença do silêncio se enfatiza.