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CAPÍTULO 4 Tecendo paralelos

4.1 A busca pelo canto-falado

Cícero, Oratio: Est autem in dicendo quidam cantus obscurior (no modo de falar existe um canto oculto)

Uma das mais fortes semelhanças entre a Seconda Pratica italiana e a Bossa Nova está relacionada ao modo como cada estilo propõe o seu canto. A ideia de que a voz, ao cantar, deva aproximar-se da fala permeia o fazer musical de ambos os estilos e configura, de certa forma, um ideal comum.

Na Bossa Nova, a busca autoconsciente por uma maneira de cantar próxima da fala é tida como uma das principais marcas do estilo, e esta se dá pela influência de alguns cantores como Nora Ney, Lúcio Alves e mesmo Carmen Miranda e Mário Reis que, antes mesmo do surgimento da Bossa Nova em 1958, propuseram uma certa atenuação da dramaticidade no cantar e a consequente aproximação da voz cantada à voz falada.

Ainda na Bossa Nova, este tipo de canto foi minuciosamente trabalhado e desenvolvido por João Gilberto. Identificamos em seu trabalho artístico como cantor um dos ápices desta abordagem vocal na história da canção brasileira, bem como reconhecemos sua importância para as gerações posteriores. A respeito da maneira de cantar de João Gilberto, o musicólogo Lorenzo Mammi escreve:

João Gilberto tenta reproduzir na melodia todos os parâmetros do som, sem que por isso a voz se torne instrumento — ao contrário, aproximando sempre mais o canto à fala. É uma aspiração recorrente na música ocidental, colher a articulação com que a melodia se destaca da palavra, mas ainda manter uma ligação necessária com ela, encontrar o momento exato em que o canto adquire forma própria, sem que esta seja outra coisa além da forma do falar, sublimada. Em João Gilberto tudo isso parece alcançar uma realização (MAMMI, 1992, p. 66).

No excerto de seu texto, Mammi descreve a aproximação do canto de João Gilberto à fala, vetor original da palavra, sendo que esta aproximação reside, sobretudo, na dinâmica e na cuidadosa articulação das palavras que são cantadas. Nesse sentido, por se tratar de um canto absolutamente rigoroso em parâmetros como afinação, por exemplo, é possível dizer que o canto de João Gilberto se compromete com a música numa relação regida pela fala.

Além disso, Mammi também cita a “aspiração recorrente na música ocidental” em se encontrar este elo essencial entre melodia e palavra. Este elo tem sido estudado por pesquisadores de diversas áreas — conforme mencionamos no Capítulo 1

a melodia musical cantada e a melodia entoativa que brota das palavras faladas119 , elo este que, no canto de João Gilberto, conforme escrito por Mammi, “parece alcançar uma realização” 120

.

João Gilberto, em entrevista para a revista “O Cruzeiro” — mencionada em nosso texto na página 115 — afirma que “[no canto] as palavras devem ser pronunciadas da forma mais natural possível, como se estivesse conversando”. Com isso, João Gilberto dizia querer respeitar o “sentido” do texto poético da canção escrito pelo letrista e, acima de tudo, a prosódia da língua portuguesa. Além disso, ele também visava flexibilizar a melodia cantada na estrutura métrica da canção, aproximando a realização de seu canto à ideia de canto-falado e, consequentemente, à ideia musical de

rubato, ou mesmo métrica derramada.

Interessante atentar para o fato de que este mesmo procedimento foi também utilizado pelo compositor italiano Claudio Monteverdi em seus Madrigais. Conforme vimos no capítulo 2, em seu madrigal “Sfogava con le stelle” (página 44), Monteverdi indica que os compassos 1, 6 e 11 devem ser cantados com “Libera

declamazione, quasi parlato” 121 .

Monteverdi, ao musicar longos trechos de texto sem uma rítmica prescrita, e ao oferecer ao cantor a indicação de que estes trechos deveriam ser declamados livremente, buscava, assim como João Gilberto o fez, porém de um modo distinto, um certo tipo de canto-falado. O próprio Claudio Monteverdi, em uma carta a Alessandro Striggio (1573 – 1630), libretista de sua ópera Orfeu, publicada no livro Cartas de

Claudio Monteverdi de Ligiana Costa, faz uso dos termos “falar cantando” e “cantar falando” 122, como recursos de composição, distinguindo cada vocalização, inclusive, com finalidades poéticas distintas.

No caso de João Gilberto, sua voz cantada, que age “como se estivesse conversando”, é fruto de um posicionamento estético cônscio que influenciou toda uma geração posterior de cantores123

. Desse modo, a Bossa Nova, impelida pelo ideal estético do cantor João Gilberto, se consolida como um dos estilos mais expressivos dentro do gênero da canção brasileira em relação à busca por uma maneira de cantar

119 TATIT, 2002. 120 MAMMI, 1992, p. 66.

121 Declamação livre, quase falado. 122 COSTA, 2001, p. 44.

próxima de uma das múltiplas falas possíveis no vasto idioma português do modo como como é falado no Brasil.

De maneira muito semelhante, vemos também na Seconda Pratica a busca por uma maneira de cantar que fosse próxima da fala, além do caso de Monteverdi conforme já expusemos. Muitas são as menções pelos compositores e teóricos italianos da Camerata Fiorentina de que o canto desta nova prática musical deveria se aproximar da maneira de se falar, a fim de que seus intuitos – relacionados, dentre outras coisas, à plena inteligibilidade da palavra quando cantada – fossem bem-sucedidos.

Retomemos, primeiramente, o caso de Vincenzo Galilei. Na busca pela elaboração e desenvolvimento do estilo recitativo, Galilei sugere aos compositores de seu tempo que escutassem como as pessoas falam para depois poder simular esta vocalização em música (página 65). Com isso, Galilei esperava que a maneira de escrever e cantar as monodias deste novo estilo fosse influenciada pelos padrões entoativos da fala cotidiana das pessoas, fundamentando essa busca, inclusive, sob o ponto de vista técnico, ao citar técnicas da fala teatral utilizadas no período e que poderiam ser úteis na construção do trabalho vocal do cantor.

Nesse sentido, é natural que Galilei visse na parceria entre músicos e atores – parceria, aliás, tão profícua para ambos os lados até os dias de hoje – uma rica iniciativa, já que ambas as partes, no tocante ao estudo da voz, visam o aperfeiçoamento de uma vocalização expressiva em seu fazer artístico. A respeito deste aspecto do estudo da voz pelo ator, escreve Sara Lopes:

Potencializar a expressividade da voz e da fala, um dos fundamentos do trabalho vocal do ator na construção poética da representação (...). Com sua voz, o ator cria ritmo e melodia, cadências, as mais sutis modulações e inflexões, música, enfim, transformando seu texto em verdadeira partitura de tempos precisos, pausas contadas, compondo, entre sons e silêncios, a fala teatral. Esta aproximação dos termos musicais aos procedimentos técnicos da fala denota muito claramente o quanto esta se encaminha, em seu processo de elaboração, para a complexa simplicidade da música (LOPES, 2007, p. 19).

Vemos no estudo da voz enquanto elemento sonoro expressivo, levando em consideração os depoimentos aqui apresentados, um fenômeno interessante: assim como

uma parcela expressiva de cantores busca um canto próximo da fala, muitos atores, na fala teatral, tendem a encarar a voz sob o ponto de vista musical, em outras palavras, a buscar um certo tipo de fala cantada. Talvez seja por esse motivo que Galilei, ao versar sobre um estilo de canto dramático em construção no século XVII, tenha visto no teatro um possível amparo técnico para o cantor. E a recíproca é verdadeira: muitos atores, até hoje, encontram um valioso suporte no estudo do canto para a construção de seu trabalho vocal. Sobre isso, Sara Lopes comenta:

A técnica vocal que o ator desenvolve, a partir do canto, dota-o de um controle sem ansiedade da respiração pelo conhecimento da musculatura, de uma ampliação da intensidade sonora pela maximização da função dos ressoadores, de definição e precisão na emissão, de flexibilidade e nuances nas tonalidades, de ampliação dos limites da extensão a partir dos tons médios. Em relação à fala, a sustentação de sons presente no canto resulta num equilíbrio de sonoridade, evitando a perda de rendimento tão comum aos finais de palavras e/ou frases; a silabação determinada pela melodia leva, à fala, a estabilidade do tempo e a existência de cada som; a acentuação das melodias permite a compreensão e a manutenção da cadência e do ritmo da palavra falada (LOPES, 2007, p. 19).

Deste modo, percebemos o quão rico pode ser o trabalho colaborativo entre atores e cantores em relação ao estudo da voz. É bem possível que esta parceria entre a música e o teatro, no decorrer da Seconda Pratica, esteja relacionada ao surgimento do gênero operístico, considerando o fato de que uma das principais referências nas pesquisas da Camerata Fiorentina era, justamente, o drama grego. A Ópera, um dos mais importantes gêneros musicais no ocidente, gênero híbrido entre a música e o teatro, surge pontualmente durante a Seconda Pratica e em decorrência do aparecimento do Estilo Recitativo, com um propósito certeiro: cantar uma história, ou contar uma história em música. Nesse sentido, a aproximação do canto à fala com o aparecimento do recitativo ofereceu às narrativas poético-musicais muitas possibilidades, pois deu à palavra um espaço muito maior, e de maior importância, na composição musical, principalmente em relação ao repertório de músicas polifônicas do Renascimento. Além disso, com a investigação explícita por parte dos compositores da Seconda Pratica em relação à musicalidade da fala das pessoas, foi possível desenvolver uma escrita musical

que fosse capaz de retratar no aspecto melódico do canto a fala de um Tipo teatral (tal como o vilão, o sábio, a rainha, o servo, etc.). Trata-se, portanto, de um aspecto importante para o desenvolvimento de uma história encenada e cantada, como a Ópera, por exemplo124.

Interessante notar que a preocupação com a construção de um Tipo teatral, porta-voz do que canta e conta o texto musicado, também pode ser encontrada na canção popular brasileira. Conforme oferece Tatit no seguinte excerto:

... a entoação atrela a letra ao próprio corpo físico do intérprete por intermédio da voz. Ela acusa a presença de um “eu” pleno (sensível e cognitivo) conduzindo o conteúdo dos versos e inflete seus sentimentos como se pudesse traduzi-los em matéria sonora. De posse dessa força entoativa, e valendo-se do poder de difusão das ondas radiofônicas, os cancionistas se esmeraram em fazer dos intérpretes personagens definidos pela própria entoação. Ouvia-se então a voz do malandro, a voz do romântico, a voz do traído, a voz do embevecido, a voz do folião, todas revelando a intimidade, as conquistas ou o modo de ser do enunciador.” (TATIT, 2004, p. 75-76).

Nota-se também neste caso que a investigação da dicção peculiar à fala de certo tipo de personagem, e a consequente aproximação do canto a esta fala, é essencial para que o compositor e/ou o intérprete da canção consigam revelar no canto a voz de um certo tipo, como a do folião ou do traído, como bem exemplificou Luiz Tatit no excerto anterior. Por conseguinte, a inscrição desses elementos na canção é o que configura a Figurativização como regime de integração entre melodia e letra.

Ao avaliarmos as ideias do compositor Jacopo Peri, presentes nos prefácios de suas óperas “Euridice” (1600) e “Dafne” (1594), (mencionados na página 66), nota- se que Peri expõe sua percepção de que sob a fala é possível construir um acompanhamento harmônico, ideia que, por si só, é o atestar da percepção de que a fala

124 Monica Lucas oferece um aprofundamento deste aspecto no seguinte excerto: “Para os teóricos da

Camerata, toda fala tem um soggetto, um afeto formalmente determinado, que é também imitado pela música. A relação entre música e linguagem apoia-se na ideia de imitação: ambas copiam os afetos humanos. Essa imitação, no entanto, não é livremente ditada pelos sentidos e pela individualidade do compositor: ela é objetivamente determinada. Autores como Galilei entendem que o modelo da composição é a observação do comportamento dramático do ator trágico ou cômico. Esse comportamento não tem caráter subjetivo. Imitam-se tipos do teatro como o Irado, a Matrona, o Amante, o Lamentoso, o Alegre, etc. A música deve imitar a fala codificada desses modelos dramáticos; a declamação carregada de afeto constitui a matéria musical” (LUCAS, 2010, p. 33).

pode ser ouvida como uma melodia125

. Esta percepção nos remete diretamente às canções cantadas por João Gilberto, haja vista a definição do pesquisador Walter Garcia, que afirma: “... a obra fonográfica de João Gilberto é uma canção cuja estrutura se define, fundamentalmente, pela voz superposta à sua batida.” 126

, e neste caso, a voz que, através do canto, esforça-se (sem esforço) para ser ouvida e emitida como uma fala, sem nenhum tipo de demonstração vocal virtuosística que pudesse comprometer a fruição estética da composição.

Tanto no canto-falado da Seconda Pratica quanto no da Bossa Nova é possível encontrar menções de que a aproximação do canto à fala está vinculada à busca pela persuasão do ouvinte. Para Monica Lucas, por exemplo, “a palavra musicada [para os integrantes da Camerata] é considerada como um modo de dizer aperfeiçoado, por ser acompanhada de melodia e ritmo, elementos acidentais que, no entanto, tornam o dizer mais persuasivo” 127

. Já para Luiz Tatit, conforme mencionado na página 119, a aproximação do canto à fala pelo cancionista trata-se de uma “estratégia persuasiva de estabelecer equivalências entre os dois sistemas [do sistema da canção para o sistema da língua natural]” 128. Com isso é possível encontrar mais uma semelhança na abordagem do canto entre os dois estilos musicais ao associarmos a utilização do canto falado nestes estilos a um recurso retórico129.

É importante ressaltar, entretanto, que os compositores da Seconda Pratica, apesar da frequente preocupação com o aspecto persuasivo do canto, não eram guiados pelo embasamento teórico da retórica. Orientados pela abordagem humanista, sobretudo pelas ideias de Platão, que considerava a retórica “uma arte enganadora que não leva à verdade” 130, construíam suas estratégias de persuasão sem se vincular a essa fundamentação.

125 Lembramos aqui da forte semelhança da percepção de Jacopo Peri com a de Hermeto Pascoal ao

propor a sua Música da Aura, descrita por nós na página 32, de que a fala pode ser ouvida sob uma perspectiva melódica.

126 GARCIA, 1999, p. 122. 127 LUCAS, 2010, p. 32. 128 TATIT, 2007, p. 158

129 A retórica pode ser definida sucintamente como a arte de bem argumentar; a arte da eloquência. Sua

origem está ligada à Grécia Antiga e sua finalidade busca, acima de tudo, o convencimento ou a persuasão do ouvinte (https://www.dicio.com.br/retorica/).