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Do sujeito da Economia Política às condições da subjetividade capitalista

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INSTITUTO DE ECONOMIA

DANIEL PEREIRA DA SILVA

Do sujeito da Economia Política às condições da

subjetividade capitalista

CAMPINAS

2019

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INSTITUTO DE ECONOMIA

DANIEL PEREIRA DA SILVA

Do sujeito da Economia Política às condições da

subjetividade capitalista

Prof. Dr. Paulo Sérgio Fracalanza – orientador

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Ciências Econômicas na área de concentração: Teoria Econômica.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO DANIEL PEREIRA DA SILVA E ORIENTADA PELO PROF. DR. PAULO SÉRGIO FRACALANZA.

Campinas

2019

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Biblioteca do Instituto de Economia Luana Araujo de Lima - CRB 8/9706

Silva, Daniel Pereira da,

Si38d SilDo sujeito da Economia Política às condições da subjetividade capitalista / Daniel Pereira da Silva. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

SilOrientador: Paulo Sérgio Fracalanza. SilCoorientador: Daniel Omar Perez.

SilTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia.

Sil1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Lacan, Jacques, 1901-1981. 3. Sujeito (Psicanálise). 4. Capitalismo. 5. Psicanálise. I. Fracalanza, Paulo Sérgio, 1968-. II. Perez, Daniel Omar, 1968-. III. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia. IV. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: From the subject of Political Economy to the capitalist subjectivity

conditions Palavras-chave em inglês: Marx, Karl, 1818-1883 Lacan, Jacques, 1901-1981 Subject (Psychoanalysis) Capitalism Psychoanalysis

Área de concentração: Teoria Econômica Titulação: Doutor em Ciências Econômicas Banca examinadora:

Paulo Sérgio Fracalanza [Orientador] Cláudio Oliveira da Silva

Leda Maria Paulani

Gláucia Angélica Campregher Simone Silva de Deos

Data de defesa: 23-08-2019

Programa de Pós-Graduação: Ciências Econômicas

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-4496-1650 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/5094132238200816

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

DANIEL PEREIRA DA SILVA

Do sujeito da Economia Política às condições da

subjetividade capitalista

Prof. Dr. Paulo Sérgio Fracalanza – orientador

Defendida em 23/08/2019

COMISSÃO JULGADORA Prof. Dr. Paulo Sérgio Fracalanza

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Prof. Dr. Cláudio Oliveira da Silva Universidade Federal Fluminense (UFF)

Prof.ª Dr.ª Gláucia Angélica Campregher

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Prof.ª Dr.ª Leda Maria Paulani Universidade de São Paulo (USP)

Prof.ª Dr.ª Simone Silva de Deos

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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meu Primeiro de Maio, meu Quatorze de Setembro, e tudo mais o que ela significa. Tudo.

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A escrita dessa tese não escapou de ser um processo conturbado, difícil e, de alguma maneira, solitário. A sensação foi a de escrevê-la como quem tira a cabeça do mundo e segura a respiração embaixo da água. Todo o tempo. Mas, se pude concluir o trabalho que segue foi, sem dúvida, pelo apoio de pessoas incríveis e do privilégio de fazer parte de instituições importantíssimas.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Esses foi apenas um dos privilégios imensos dos quais tive acesso. Na conjuntura de desmonte das Universidades Públicas, de ataque a todas as ciências (sobretudo as humanas), meu agradecimento a esse apoio vem acompanhado de uma promessa de luta contracorrente, para fazer com que a exceção se transforme em o universal: o ensino superior de qualidade, público e gratuito.

Na trilha dos privilégios, quero agradecer imensamente ao Instituto de Economia da Unicamp. Foram quinze anos fazendo parte como aluno dessa instituição da qual eu tenho indisputável orgulho. O ensino de excelência é só uma das camadas do privilégio que o IE concede a seus alunos. A outra, muito mais profunda, é a possibilidade de experimentar uma formação diversa e intrinsecamente crítica em ciências econômicas. Nosso Instituto é uma preciosa resistência ao discurso do “there is no alternative” que tomou a Economia convencional.

A propósito, foi no IE que encontrei a pessoa mais importante da minha formação acadêmica, o Prof. Dr. Paulo Sérgio Fracalanza, a quem faço o agradecimento maior dessa tese. O Prof. Fracalanza foi a base e a possibilidade dessa pesquisa, que iniciamos juntos, desde o mestrado. Ele me apaixonou por uma abordagem muito sensível da economia, aquela que não fecha os olhos para os demais saberes, experiência e sofrimentos. Foram oito anos sendo não só orientado e motivado pelo Prof. Fracalanza, mas também apresentado a filmes, livros e ideias fascinantes. Em meio a tantas dificuldades do doutoramento, o apoio, as palavras e a amizade do meu orientador foram meu porto seguro e me proporcionaram os momentos mais encantadores dessa trajetória. Muito obrigado.

Dentre as tantas professoras e os tantos professores que me marcaram nesses anos de Unicamp, não posso deixar de agradecer especialmente aquelas e aqueles que participaram diretamente do doutorado. Em primeiro lugar, claro, o Prof. Daniel Omar Perez, meu

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foram uma fonte bibliográfica crucial e cujas aulas me marcaram permanentemente. Agradeço também às Professoras economistas Leda Paulani, Gláucia Campregher e Simone Deos, por terem me dado a honra de participar da minha banca de defesa e receber suas apreciações do meu trabalho. Muito obrigado também ao filósofo Prof. Cláudio Oliveira da Silva e ao linguista Prof. Lauro Baldini, ambos psicanalistas que comporam, respectivamente, minhas bancas de defesa e de qualificação, e que tiveram a grande generosidade de avaliar o exercício psicanalítico que minha tese propôs.

Tenho muito orgulho também dos dois professores que foram suplentes em minha defesa e a eles, novamente, muito agradeço. Tratam-se do Prof. Douglas Emiliano Batista e do Prof. Manuel Ramon Luz. Ambos fizeram parte da espinha dorsal da pesquisa desde o mestrado, sobretudo com as conversas - que funcionavam perfeitamente como reuniões de orientação - e com a inspiração intelectual que eles me foram. Tenho de agradecer também às Professoras Nina Leite e Carolina Baltar e aos Professores Fernando Nogueira da Costa, Mariano Laplane e Rinaldo Voltolini que ministraram disciplinas formidáveis durante o doutoramento. Um agradecimento especial ao Prof. Célio Hiratuka, pelo apoio institucional, e à Prof. Adriana Nunes, pelo apoio e carinho sempre que me dedicou. E, ainda no âmbito acadêmico, sou muito grato ao Prof. Nelson da Silva Júnior e ao grupo do LATESFIP, que me permitiram participar de suas discussões e produções sobre subjetividade e neoliberalismo, tendo contribuído de forma saliente nesse trabalho.

Agradeço também a Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, a FECAP, por ter me dado a oportunidade adentrar no processo infinito de aprender a ser professor. Nesse sentido, agradeço especialmente ao coordenador do curso de Ciências Econômicas, Allexandro Mori Coelho, por todas as oportunidades, toda a confiança e a compreensão, inclusive quando precisei me licenciar por um ano das minhas atribuições. Agradeço, da mesma forma, à coordenadora de Relações Internacionais, Marília Pimenta, por ter sido um grande suporte profissional e por ter dividido tanto da experiência da parentalidade comigo.

A FECAP, nessa trajetória, me presenteou com grandes amigas e amigos, a quem quero, mesmo, manifestar minha gratidão. André, o Ronca, meu amigo e companheiro em tantos enredos da vida; Joelson, de quem ouvi conselhos decisivos; Pedro, meu enorme parceiro em tantas afinidades; Juliana, Gabriela e Natasha, mulheres incríveis com quem pude dividir tantas vezes o peso e as alegrias da vida; e Augusto e César que, além de grandes amigos são também meus psicanalista não-lacanianos preferidos.

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doutoramento, quanto as que, há tanto, trago guardadas no peito. Em primeiro lugar, quero agradecer à Taciana, o melhor presente que o doutorado me deu. Sem dividir as experiências da vida, da parentalidade, do doutoramento e das frustrações políticas com a Taciana, tudo teria sido incalculavelmente mais difícil. Além dela, quero agradecer também à Jenifer, amiga de tanto tempo, de tantos desabafos, de tantos transformações e de um carinho tão incondicional. Obrigado a Rogério e Gabriela, por terem permitido tantos momentos de catarse em suas companhias, tendo sido, inclusive, o Rogério quem me apresentou a música que é epígrafe dessa tese.

De Houston eu trouxe experiências de carinho e amizade que foram essenciais no doutorado e para além dele. Obrigado Ludmila e Rodrigo por terem ajudado a fazer da experiência nos EUA algo tão mais caseiro, familiar, aconchegante e seguro com sua amizade e companheirismo. Agradeço ao Santiago por todo os momentos em Houston e por manter acesa nossa parceria. Obrigado Scott, Leonora, Estela e Nina, que me ensinaram muito sobre família, sobre Lacan, sobre resistência e sobre fazer bebês dormirem. E meu agradecimento especial àquele que alcançou o status de irmão para a vida, a quem eu devo tanto divertimento, apoios acadêmicos, conversas, aprendizados, parcerias e cervejas: meu amigo Miller. Meu muito obrigado também à Kathryn por ter, em tão pouco tempo, nos ajudado tanto e se tornado tão querida.

Meus amores de Campinas, a quem posso chamar de família, deixo um enorme obrigado. Aliomar, Patrícia, Aldo, Larissa (as duas), Paula, Ana, Rafael e Thamires obrigado por serem sempre presentes e pacientes nessa fase tão maluca e por vezes, ausente, que tive. Obrigado pela força, pelas conversas, pelas risadas, pelas mensagens, pelos abraços, pela atenção e dedicação, inclusive acadêmica, que vocês tiveram comigo. Vocês me oferecem uma amizade que eu nunca imaginei que fosse possível. Obrigado.

Restam os agradecimentos familiares. Rafael, Anna e Julia, meus compadres e minha afilhada, agradeço por serem tão presentes sempre, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza (não sei qual) e na pobreza. Saber que eles estarão sempre junto comigo me deu (e continua dando) muita força para lutar nessa vida. Ao meu sogro e sogrinha, Maurício Amigão e Adriana, meu muito obrigado por segurar a barra tantas vezes, por me apoiar e cuidar tanto de mim, dando condições, inclusive, para que eu me desligasse do mundo um pouco e imergisse na escrita desse trabalho. Estendo esses agradecimentos também à Mariana, tão companheira e que tanto nos ajudou, seja com seu apoio, seja com sua alegria.

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nunca deixaram de se dedicar diariamente por mim, de fazer tanta diferença, de serem tão singela e enormemente presentes. Eu simplesmente não teria conseguido se a Vó Nita e o Vô José não estivessem comigo. Simplesmente.

Agradecer mãe, pai e irmão é tentar o impossível. Eu não saberia por onde começar, nem como terminar de dizer obrigado. Para agradecer minha mãe, Fátima, quero registrar minha gratidão à minha avó Terezinha que, por meio de tanta luta e tanta resistência, criou essa mulher que é o meu porto seguro, meu maior exemplo de força. Obrigado vó e obrigado mãe. Meu pai, José Cláudio, é o que significa para mim o amor pelo conhecimento e é por causa da minha profunda identificação com ele que eu concluo esse doutorado. Meu irmão, André, é uma das pessoas que eu mais admiro no mundo (de uma admiração transformadora mesmo), por toda a sua maturidade, generosidade, por sua correção e seu espirito de luta. Obrigado mãe, pai e Déda.

Mas, mais do que agradecer, é para Joice que eu dedico essa tese. Joice é minha conspiradora da vida, é cúmplice de todos os meus planos, a comparsa de todos os meus sonhos. Juntos atamos laços e livros, desbravamos mestrados, arquitetamos casas, festejamos casamentos, mudamos de país. Juntos, choramos muito, lutamos muito e construímos muito. E quando os doutorados pareciam ser a grande obra desses tempos, escrevemos a nossa mais linda coautoria, o Francisco. Como dizer somente obrigado a quem se deve tudo?

Por fim, a meu filho Chico, agradeço por ser tão companheiro. Obrigado por ter viajado por horas e horas para que eu e a Joice pudéssemos escrever e defender as teses. Obrigado por ter assistido minha defesa. Obrigado por ter me apresentado um novo mundo, uma nova razão. Dividido nele, eu posso ser um sujeito muito mais vivo e apaixonado. Muito obrigado, meu filho.

Que esses agradecimentos fiquem de registro da pessoa privilegiada que sou, graças a todos vocês.

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Sob a provocação de que a única noção de pessoa das ciências econômicas é “o indivíduo”, dirigimos nossos esforços para a proposição de uma formalização do sujeito concebido por condições histórico materialistas. Para tanto, dois são nossos eixos centrais. O primeiro é metodológico e busca formular uma noção de pessoa a partir da crítica ontológica à noção de indivíduo, concebendo-o com uma fantasia ideológica necessária ao capitalismo. O segundo eixo é epistemológico e consiste na exploração do campo de conhecimento que se abre a partir da homologia entre a mais-valia de Marx e o mais-de-gozar da psicanálise de Lacan. A investigação das condições de sujeição no capitalismo, por fim, não só mostrará como funciona nossa formalização esquemática de sujeito, mas também abordará elementos basilares da subjetivação a que esse laço social obriga.

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Under the provocation that the only notion of the person in economics is "the individual," we direct our efforts towards the proposition of a formalization of the subject conceived by materialistic historical conditions. We have, in this sense, two central axes. The first is a methodological axis and seeks to formulate a notion of the person from the ontological critique to the notion of the individual, conceiving of the individual as an ideological fantasy necessary to capitalism. The second axis is epistemological and consists of the exploration of the field of knowledge that opens from the homology between Marx’s surplus-value and the surplus-jouissance of Lacan’s psychoanalysis. Finally, the investigation of the conditions of subjection in capitalism will not only show how our schematic formalization of the subject works, but will also address the basic elements of the subjectivation forced by this social bond.

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E ele apressa a caminhada Pra acordar a namorada logo ali E vai sorrindo, vai aflito Pra mostrar, cheio de si Que hoje ele é senhor das suas mãos E das ferramentas

Quando a sirene não apita Ela acorda mais bonita Sua pele é sua chita, seu fustão E, bem ou mal, é seu veludo É o tafetá que Deus lhe deu E é bendito o fruto do suor Do trabalho que é só seu

Hoje eles hão de consagrar O dia inteiro pra se amar tanto Ele, o artesão Faz dentro dela a sua oficina E ela, a tecelã Vai fiar nas malhas do seu ventre O homem de amanhã

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Esquema 1.1...19 Esquema 3.1...80 Esquema 3.2...81 Esquema 3.3...85 Esquema 3.4...87 Esquema 3.5...91 Esquema 3.6...93 Esquema 3.7...94 Esquema 3.8...95 Esquema 3.9...97 Esquema 4.1...103 Esquema 4.2...105 Esquema 4.3...106 Esquema 4.4...114 Esquema 4.5...115 Esquema 4.6...115 Esquema 4.7...116 Esquema 4.8...117 Esquema 4.9...118 Esquema 4.10...123 Esquema 4.11...140 Esquema 4.12...144 Esquema 4.13...156 Esquema 4.14...160

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1 - Introdução...14

2 - Em nome de quem “penso, logo, sou”: um recorte crítico do indivíduo...24

O indivíduo: da etimologia à instituição...24

A consciência livre do cogito cartesiano...27

As ciências econômicas: as guardiãs do indivíduo...37

A objeção que não é a nossa: a crítica de Hayek...44

Uma solução frustrada: a Economia Institucional...50

A crítica ao indivíduo em Marx...56

3 - O sujeito de um cogito subversivo...62

As condições marxianas à sujeição...62

Um pedaço de Hegel entre Marx e Lacan...74

Eu pensando: “logo sou” - A subversão lacaniana do cogito...78

Nossa proposta de sujeito: o devir-a-ser da materialidade...91

4 – Os fundamentos do sujeito capitalista...102

Sobre o método: estrutura, dialética e negatividade...102

O sujeito do trabalho heterônomo...107

O sujeito calculista: a quantificação...113

O indivíduo: indiferença e anistoricidade...120

O estranhamento...131

O significante-mercadoria e a reificação do laço social...139

Dinheiro e sujeição: a solução de compromisso do desejo...143

Fetichismo: o modo de sujeição capitalista...150

O capital: a modalidade da falta no capitalismo...155

Conclusão...167

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1 - Introdução

Devido a seus vieses e suas intersecções políticas, filosóficas, metodológicas e epistêmicas, as ciências econômicas podem ser divididas em diversas abordagens. Para abrir os caminhos pelos quais esse trabalho se embrenha, propomos a seguinte distinção dos campos econômicos: há aquelas economias que possuem uma noção de pessoa formalizada em seus corpos teóricos; e há aquelas que não possuem tal formalização.

Oferecida essa categorização inicial, queremos fazer, inadvertidamente, uma generalização – que não pretende recair no desaviso das generalizações, mas ser, isso sim, uma provocação – a saber: o indivíduo é a única noção de pessoa da teoria econômica. Entre tantas possíveis estranhezas que essa afirmação possa vir a provocar, arriscamos dizer que existem aquelas que nos acusarão de pôr em xeque um elemento de progresso da humanidade. Por que questionar o indivíduo, esse paradigma da modernidade, essa metonímia da nossa libertação das trevas teocêntricas da predestinação medieval?

De fato, pôr o indivíduo em questão aparece como se nós estivéssemos arriscando todo o ideal de liberdade, de independência e de autonomia que essa noção de pessoa sustenta. Pois bem, talvez essa seja a única passagem desse trabalho na qual a aparência coincide com a essência. Sim, queremos mesmo inquirir essa liberdade, desafiar essa independência e, inclusive, desacreditar essa autonomia.

Aliás, a possível rápida associação do indivíduo com tantas ideias centrais da modernidade confirma nossa suspeita: a de que tal noção de pessoa é um elemento ideológico, imaginário, narrativo. O indivíduo apresenta-se como um personagem da épica renascentista, do drama da modernidade ou, mais especificamente, da farsa capitalista. O grande problema é que ele conforma a nossa maneira de estar no mundo, ele predispõe como o eu e o outro se atam no laço social. É o que Louis Dumont chama de “sentido portador de valor” (Dumont, 1985, p. 28) da palavra indivíduo.

Se, por um lado, há a possibilidade dessa rápida associação do indivíduo com a narrativa que o compreende, por outro, é também muito significativo que o indivíduo simplesmente apareça como a pessoa em sua realidade empírica, como o representante linguístico da amostra individual da espécie humana. Nesse caso – que Dumont denomina de

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sentido “particular empírico” (Dumont, 1985, p. 28) do indivíduo -, temos uma gravidade adicional, pois, a partir dessa concepção, sequer somos capazes de enxergar as engrenagens históricas que posicionaram o indivíduo como uma noção de si fundamental. O que é isso, senão uma condição de alienação muito mais evidente?

Todo esse preâmbulo aponta para uma das finalidades específicas da nossa tese: perscrutar o indivíduo enquanto noção de pessoa da Economia Política liberal1 - aquela que

fundamenta, de forma mais ou menos subsumida, tanto a teoria econômica ortodoxa quanto o racionalismo neoliberal –, mostrando, a partir de um recorte etimológico, filosófico e econômico, que esse indivíduo é uma noção de pessoa socialmente determinada que veio a se tornar uma instituição da sociedade capitalista.

Contudo, inquirir o indivíduo não é o objetivo principal da tese, embora seja de extrema importância para a sustentação do que aqui se pretende. Antes, voltemos à nossa provocação: o indivíduo é a única noção de pessoa da teoria econômica. Ele é formalizado, difundido, defendido, conclamado. E se quisermos combater essa instituição e transformar toda a ideologia que a conforma, o que proporemos em seu lugar?

Pois bem, o objetivo principal desse trabalho é oferecer uma abordagem de pessoa alternativa, que chamaremos de sujeito2. Evidentemente, não se trata de uma empreita nominalista de simplesmente reivindicar a substituição de um termo pelo outro. Por isso, uma pergunta nos parece bastante legítima: o que esperar desse nosso sujeito? Comecemos por dizer o óbvio: nossa noção de pessoa não intenta dar conta da tarefa (necessária) de sub-rogar o indivíduo em toda a sua extensão. O em-nome-de que nos move, isso sim, é a Economia Política marxista3, de modo que o sujeito que aqui propomos formalizar é aquele que

entendermos ser capaz de sustentar, desde a sua própria constituição objetiva e subjetiva, as

1 Como Economia Política liberal nos referimos àquelas escolas que se desenvolveram a partir da Economia

Política Clássica e que concedem as leis que sustentam o neoclassicismo, o neoliberalismo e grande parte do

mainstream econômico. Como sinônimo a ela, usaremos também Economia Política de bases clássicas”.

2 Propomos usar os termos “indivíduo” e “sujeito” como diferentes noções de pessoas e que figuram,

sobretudo, nos eixos teóricos e das narrativas sociais. Quando quisermos nos remeter à amostra individual da espécie humana, descaracterizado de maiores significações, utilizaremos variações dos termos “pessoa” e “humano”.

3 Por sua vez, usaremos como sinônimo de Economia Política marxiana os termos “Economia Política de bases

marxianas” e “Escola Marxista”. Segundo o Dicionário de Economia (Dicionário Econômico, 1985, p. 131), a Escola Marxista é a vertente da Economia Política fundada por Marx e Engels centrada no estudo crítico da anatomia do modo de produção capitalista, seguindo a teoria marxiana do valor-trabalho e o conceito de mais-valia.

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condições do materialismo histórico em seus efeitos discursivos.

E o termo “constituição subjetiva”, vale notar, abre as portas para esclarecermos que, do ponto de vista de sua fundamentação teórica, esse é um trabalho bípede. Os textos marxianos – sobretudo os Manuscritos econômicos-filosóficos4, A Ideologia Alemã5 e O

capital6 – serão aqui acompanhados da abordagem de sujeito apreendida da psicanálise lacaniana – centralmente, dos seminários 167 e 178.

Não chamaríamos a aproximação de Marx e Lacan de “necessária”, todavia, defendemos que ela guarda, absolutamente, pertinência e potência. Isso porque, advogamos que qualquer abordagem do humano na Economia Política de bases marxianas deve romper com os pressupostos de (uma específica) racionalidade, da consciência e da autonomia que são fundamentos do indivíduo da teoria econômica ortodoxa e do liberalismo. Não só não é possível conciliar tais pressupostos ao materialismo histórico de Marx, como também fazer oposição ao indivíduo e suas marcas sociais nos parece ser um caminho importante de subversão da ordem do capital.

Desde Freud, a psicanálise se apresenta como um refúgio àqueles que buscam escapar desse tipo de ideologia individualista do primado do eu. Não foi exatamente essa a (terceira) ferida narcísica que Freud diz ter infringido no pensamento ocidental, insultando o ingênuo amor-próprio e a mania de grandeza humana, buscando provar que o eu não é “nem mesmo senhor da sua própria casa” (Freud, 2014, p. 381)?

Embora os trabalhos de Freud sejam importantes para problematizar o mal-estar da civilização, inclusive da capitalista, é em Lacan que encontramos a psicanálise que mais oferece espaço epistemológico de articulação com o marxismo. Em nossa pesquisa, três campos de vínculo entre Marx e Lacan se mostraram viáveis, sem se excluir os espaços de intersecção entre eles. O primeiro diz respeito ao pensamento hegeliano, referência comum de ambos os autores. O segundo gira em torno da relação entre sintoma e sociedade capitalista, relação essa condensada na afirmação de que teria sido Marx, e não Freud, o inventor do

4 Marx (2004)

5 Marx e Engels (2007) 6 Marx (1988)

7 Lacan (2008) 8 Lacan (1992)

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sintoma9. Por fim, é notável também o estabelecimento, pelo próprio Lacan, de uma

homologia entre o seu mais-de-gozar (a maior contribuição lacaniana para a psicanálise) e a mais-valia de Marx.

Seguimos pelo terceiro ponto de articulação, a homologia entre a mais-valia e o mais-de-gozar. Adentramos por esse caminho conduzidos, de forma mais ou menos errante, pelas indagações e desejos postos em nossa (e pela nossa) pesquisa. Trata-se, afinal, de um trabalho de Economia Política e é desse lugar que buscamos pensar economia e psicanálise. O que encontramos aí, e que queremos sustentar, é que a dita homologia possibilita que o vínculo entre Marx e Lacan escape de uma interdisciplinaridade conveniente e caminhe na direção de um campo epistêmico comum a ser explorado.

Não podemos, evidentemente, reclamar originalidade nessa empreita. Na verdade, os trabalhos que articulam os pensamentos marxiano e lacaniano são relativamente numerosos na Filosofia Política, na Linguística e na Psicologia Social. Em alguma medida, essa tese busca desenvolver, desde a Economia Política marxista, algumas das questões e desdobramentos que as autoras e os autores dessas outras áreas foram capazes de produzir e que entendemos ser relevantes à crítica da sociedade capitalista. Nesse debate teórico, a denúncia do indivíduo e a proposição de uma formalização de sujeito é o lugar no qual nossa contribuição se instala.

É preciso, todavia, fazer um alerta em relação ao nosso objetivo principal. Se por um lado a formalização de uma abordagem de sujeito que queremos propor à Escola Marxista tem como base e possibilidade a dita articulação dos pensamentos de Marx e Lacan, por outro, não pretendemos que essa nossa formalização alcance esgotar o que ambos os autores concebem pela categoria “sujeito”.

Na obra de Marx, aliás, é inequívoco que o sujeito mais notável é o capital. É o capital a força vital que enseja a sociedade moderna. É ele que se reproduz, que acumula e que põe as determinações que o constituem10. A não humanidade desse sujeito, em parte, justifica

nosso retorno a textos anteriores a O capital, para ali buscar as condições objetivas e subjetivas a partir das quais Marx, direta ou indiretamente, concebe o humano. Tomamos essas condições como base na formulação de nossa proposta de sujeito, fazendo-o ser e não ser o 9 Ver, Alberti (2011) e Cardoso e Darriba (2016).

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sujeito marxiano.

E o nosso sujeito também é e não é o sujeito de Lacan, embora, nesse caso, nos encontremos numa região menos bem definida de apropriação e separação conceitual. Qual o lacaniano, nosso sujeito também é tomado como aquilo que um significante representa para outro significante. Contudo, sabemos que Lacan vai muito além. Ali, o sujeito tem sua marca de Real, ele resiste ao significante, o fura; ele insiste em não se inscrever na linguagem, em não ser compreendido pelas narrativas.

Nesses termos, o sujeito lacaniano é nosso ideal. É aquele sujeito que é capaz de criar novos significantes, que é capaz de transgredir e de desejar incessantemente. Em alguma medida, precisamos assumir que nosso sujeito não alcança o sujeito de Lacan pelo fôlego e recorte próprios desse trabalho, mas ele também não encerra a possibilidade de avanços nessa direção, embora não a tenhamos formalizado, aqui, tais condições.

Esse prólogo se justifica também para esclarecer às leitoras e leitores sobre os limites da articulação que estabelecemos com Lacan. De fato, apesar de oferecermos uma formalização de sujeito que pode ser útil a psicanálise, por ajudar a localizar sintomas e demais expressões subjetivas na estrutura material do laço social, por outro, é importante dizer, que de maneira nenhuma queremos homogeneizar ou generalizar as experiências de vida, os sofrimentos e as formas de gozo pessoais. Como escreve Maria Rita Kehl, em O tempo e o cão - livro que, aliás, toma a depressão como uma forma de sintoma da vida social – “[a] via do entendimento psicanalítico parte sempre da investigação clínica, na qual as formações do inconsciente se expressam na singularidade de cada sujeito” (Kehl, 2009, p. 32).

Essas advertências assumem tons mais nítidos quando declaramos outro objetivo específico desse trabalho: levantar as considerações sobre o sujeito que surge como efeito do modo de produção capitalista. Não se trata - e esse é outro ponto de alerta - de formular um manual sobre o ser no capitalismo, de desenhar um arquétipo daqueles que vivem sobre o julgo dessa ordem material, tampouco de encerrar a sujeição em uma mecânica dura e irremediável.

Trata-se, isso sim, de investigar o devir subjetivo da sociedade capitalista. Devir que nos constitui e que, portanto, estrutura nossa alienação enquanto seres falantes dessa sociedade. Nesses termos, no que respeita à teoria lacaniana, podemos dizer que nosso sujeito

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é um sujeito do discurso, discurso esse entendido como laço social. É nosso objetivo, então,

levantar as condições subjetivas inerentes ao discurso capitalista, condições essas que são apreendidas de sua própria estrutura, das contradições constituem esse laço.

Portanto, o que temos são três objetivos: o objetivo geral de formalizar uma abordagem de sujeito para a Economia Política de base marxiana; e os objetivos específicos de tanto promover uma análise crítica do indivíduo quanto de realizar uma investigação sobre a subjetivação11 capitalista. Representamos a ordenação e associação desses objetivos no

esquema abaixo:

Esquema 1.1

Buscamos, em tal esquema, mais do que mostrar os objetivos dessa tese. Temos nele um apoio representativo do recurso metodológico mais amplo que liga tais objetivos. Nosso método foi inspirado no que no que Roy Bhaskar12 denominou de crítica explanatória,

11 O termo “subjetividade” nesse trabalho aparecerá, sobretudo, em contraposição à “objetividade”,

especialmente quando estivermos promovendo a análise crítica do indivíduo. Todavia, quando nos referirmos ao nosso sujeito, convidamos a pensar a subjetividade não como “uma singularidade infinitamente particular” como denunciava Hegel (Paulani, 2005, p. 26), tampouco nos termos cartesianos de uma interioridade desprendida. Nosso sujeito é efeito da subjetividade como processo de subjetivação, de modo que tem sentido mais próximo ao da “discursividade”. A subjetividade, quando então, não se refere a uma condição particular, fixa, íntima e independente do nosso sujeito, mas antes ao produto efêmero, ao devir que o (con)forma como efeito da materialidade do discurso social.

12 Ver Bashkar (1998). Monfardini defende ainda que a crítica explanatória de Bashkar é um procedimental

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método esse apresentado por Rodrigo Monfardini13 e João Leonardo Medeiros14. Segundo

esses autores, a crítica explanatória consiste em um tríplice procedimento crítico: 1. a demonstração da falsidade das crenças ou teorias criticadas;

2. a simultânea apresentação de uma explicação alternativa e mais abrangente da causalidade de fenômenos anteriormente significados através das crenças ou teorias em questão;

3. a indicação dos motivos reais que levam à produção e sustentação das concepções equivocadas, mistificadas e/ou ilusórias e, ainda, das condições sociais que facultam a própria crítica. (Medeiros, 2013, p. 78) De acordo com Bashkar15, esse modelo representaria o que Marx entende - e que

realiza - como “crítica” em O capital, desde o subtítulo dessa obra. Por esses meandros, teríamos a possibilidade de uma crítica que extravasa a análise das condições de validade de uma ideia, indo mesmo na direção de uma crítica ontológica – como queria Lukács16 -, ou seja,

da investigação das estruturas reais que produzem a dita ideia como uma necessidade, como um elemento funcional de uma determinada narrativa social (Monfardini, 2016, p. 137). Em outras palavras,

formas falsas de consciência jamais poderiam adquirir um tipo qualquer de objetividade social - isto é, jamais poderiam realmente existir e se reproduzir como concepções correntes - caso fossem inúteis, caso não servissem a um propósito determinado no interior do ser social. Sejam resultantes da opacidade do próprio objeto, sejam resultantes da opacidade do pensamento, o fato é que as mistificações têm de ser, e não faltam exemplos de que sejam, convenientes a determinados interesses práticos individuais ou coletivos. (Medeiros, 2013, p. 73-74)

Notemos que esse método de formular crítica é deveras carregado de potência. Vejamos:

Primeiro que ele é voltado para abordagens materialistas exatamente porque articula dois elementos imprescindíveis dos processos históricos e sociais, a saber, a relação dialética entre a aparência e a essência desses processos.

Segundo que o pensamento criticado não é simplesmente reduzido a qualquer coisa como um erro de interpretação da realidade, um arrazoado absurdo ou uma anomalia 13 Monfardini (2011 e 2016).

14 Medeiros (2013). 15 Bashkar (1979) 16 Lukács (1979).

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intelectual, mas é, exatamente, tomado como um registro da aparência desse objeto e que, enquanto tal, é um pensamento coerente, orgânico, funcional e necessário para que tal objeto exista no que lhe é mais essencial. Caso contrário, essa ideia não teria aderência social e a crítica a ela, no limite, estaria esvaziada de potencial de revolução.

Em terceiro lugar, a crítica ontológica encaminha uma proposição do que viria a ser a essência do objeto, essência essa que deve estar de acordo tanto com a estrutura que o concebe, quanto com as aparências que produz, inclusive aquela que motivou o exercício crítico.

Por fim, ao localizar a funcionalidade da aparência e demonstrar lógica de sua essência o que se alcança é estender toda a crítica para a estrutura social em questão, proporcionando assim espaço não só para a compreensão da realidade mas também para sua transformação.

Em suma, a crítica ontológica consiste em (1) confrontar um pensamento estabelecido; (2) oferecer uma alternativa a esse pensamento; e (3) mostrar como aquela ideia estabelecida é parte funcionante de um elemento essencial da estrutura social. Nosso trabalho, então, propõe esse exercício nos seguintes termos: (1) criticar a noção de indivíduo; (2) propor a formalização de sujeito compatível com o materialismo histórico; e (3) investigar a subjetivação capitalista mostrando que dentre as várias condições levantadas encontra-se, exatamente, a de que o indivíduo exista como aparência dos sujeitos desse laço social.

É sob essas condições metodológicas que nossos capítulos estão aqui organizados. Primeiro, no capítulo 2, faremos uma análise crítica do indivíduo enquanto noção de pessoa da Economia Política de bases clássicas. Dos diversos caminhos que essa crítica pode traçar, escolhemos caminhar por quatro recortes: um etimológico, um filosófico, um recorte das ciências econômicas e um recorte marxiano.

No recorte etimológico, identificamos significantes centrais da noção de pessoa da economia. Em seguida, o recorte filosófico, baseado sobretudo em Descartes e Locke, nos proporciona vislumbrar as ideias que sustentam a institucionalização do indivíduo moderno. Depois, no recorte das ciências econômicas, observamos a maneira como a economia propõe guarida e propagação dessa instituição, fazendo-a figurar de maneira ainda mais reduzida e objetiva. Por fim, a crítica marxiana encerrará nossa análise, mostrando a necessidade de se

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conceber a formalização de um sujeito nos quadros do materialismo histórico.

É de se notar que no esquema metodológico acima fizemos uma intersecção entre a análise crítica do indivíduo e a formalização de uma noção de sujeito. Essa intersecção contém dois elementos que ligam um objetivo ao outro. O primeiro deles decorre da crítica de Marx ao indivíduo e se constitui da investigação sobre quais seriam as condições marxianas à

sujeição. O segundo elemento de intersecção é o retorno subversivo ao cogito cartesiano, para

a partir desse “penso, logo sou”, ou seja, da própria (e)vocação do indivíduo moderno, fazer surgir um sujeito dividido pela materialidade da linguagem, entre aquele que enuncia e aquele que é enunciado ser.

Vale dizer que o autor dessa sublevação do cogito é, na verdade, Lacan. É em torno do pensamento lacaniano que, no capítulo 3, buscamos dar conta do nosso objetivo de alcançar uma formalização de sujeito que atenda as ditas condições marxianas da sujeição e que seja condizente com o materialismo histórico.

Nossa hipótese é a de que essa tarefa pode ser cumprida pela proposição de um sujeito da linguagem, do discurso. Um sujeito que, nesses termos, aparece como efeito da estrutura social. Trata-se, portanto, de propor um sujeito de um devir simbólico, um devir de reproduzir e acumular, repetidamente, um resto que se perde e que, portanto, impede a saciedade, implicando em uma modalidade materialmente determinada da falta, uma forma semanticamente condicionada de carência.

Em seguida, no capítulo 4, munidos dessa nossa formalização esquemática do sujeito, buscaremos dar conta do nosso terceiro objetivo: investigar as condições da subjetivação capitalista. Mas notemos que, no esquema metodológico, esse objetivo também se sobrepõe ao anterior. Isso porque, é no exercício de desvelar as exigências subjetivas do capitalismo que mostraremos como funciona nossa formalização.

Para tanto, a análise do capitalismo executada por Marx, sobretudo nos primeiros capítulos de O capital, nos oferecerá a dialética que produz, num só movimento, tanto o sujeito como efeito quanto a mais-valia como resto; um resto que, em sua homologia com o mais-de-gozar de Lacan, pode ser lido como aquele motivo de insaciedade, do movimento incessante e negativo de acumulação e subjetivação a que o capitalismo obriga.

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análise crítica do indivíduo – e esse último de investigar as condições fundamentais do sujeito do discurso capitalista. No nosso esquema, as setas que fazem esses dois objetivos circularem representam o fato de que identificamos na subjetivação capitalista o imperativo de que as pessoas apareçam como indivíduos. Temos aí o terceiro procedimento da crítica explanatória de Bashkar – que consiste exatamente no fator ontológico da crítica de Lukács. Progredimos, assim, para mostrar de que forma o indivíduo é uma noção de pessoa funcional para as condições reais do laço social capitalista.

No fim desse percurso, o conjunto de condições da subjetivação capitalista que descrevemos aponta para uma realidade (ou fantasia) ideológica que busca ser uma solução de compromisso às contradições do capitalismo, uma realidade fetichista na qual aparecemos, mesmo, como indivíduos autônomos, livres, independentes, anistóricos e calculistas, como tão bem propagado pelo mainstream econômico. A crítica a essa realidade ideológica, à semântica dessa narrativa subjetiva, só pode ser, como de fato acreditamos, uma crítica direta às bases da estrutura social do capital.

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2 - Em nome de quem “penso, logo, sou”: um recorte crítico do indivíduo

O ponto a destacar é que o modo pelo qual nós nos vemos, como seres autônomos e autodeterminados, livres e donos de nossas decisões, construtores racionais e conscientes de nossos destinos e auto-referenciados em relação ao todo social, é uma conseqüência do período histórico em que vivemos. O “indivíduo”, modo pelo qual nós nos vemos, é uma construção e um valor da nossa sociedade, com um desenvolvimento privilegiado a partir do final da Idade Média (Pacheco Filho, 2009, p 147 e 148).

O indivíduo: da etimologia à instituição

O indivíduo é um fundamento da realidade ocidental contemporânea. Sem o conceito de indivíduo não seria possível apreendermos as dimensões mais básicas de nossas construções sociais, políticas e econômicas. Nossas concepções de democracia, liberdade e direitos, o desenvolvimento da ciência e do conhecimento; praticamente nenhuma esfera de saber e ação sobre a humanidade resistiu a pôr o indivíduo como um de seus elementos centrais, ao menos desde o início da sociedade capitalista.

Nas ciências econômicas, especialmente, nos é impossível tratar do que viria a ser propriedade, propensão à troca, bem-estar, escassez, preferências, preços de equilíbrio, crises, racionalidade ou, mesmo, mercados, sem nos associarmos, inadvertidamente ou não, ao pressuposto de que esse ente, o indivíduo, é uma peça visceral e fundante dessas e de tantas outras categorias, hipóteses e conceitos econômicos17.

Entretanto, e antes de mais nada, o que esse trabalho intenta salientar é que o

indivíduo é uma noção de pessoa. Ao afirmar isso, fazemos questão sobre uma forma de

pensamento fundamental das sociedades capitalistas, tão fundamental que questioná-la frequentemente provoca desalinho. Dizer “eu não sou um indivíduo” parece tão confuso quanto proferir, simplesmente, “eu não sou o que sou”. Com efeito, o indivíduo, no capitalismo, não aparece como um predicado do ser, senão que como uma sentença simultânea a ele. Nesses termos, declarar “eu sou um indivíduo” acaba por soar tautológico e completamente redundante.

17 Paulani (2005) apresenta uma excelente discussão sobre as transformações e apropriações da noção de

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Não obstante, tanto a concepção do humano como um indivíduo, quanto a lógica que daí deriva, são construções históricas. Isso porque o sentido do que viria a ser “o indivíduo” não é simplesmente o de representar a amostra individual da espécie humana. Antes, esse sentido carrega consigo um posicionamento específico do que viria a ser o “eu” e o “outro” no laço social. Significa dizer que a caracterização das pessoas como indivíduos é uma concepção política atravessada de valores morais e ideológicos.

De fato, o indivíduo não é somente uma simples palavra ou um conceito, se bem que as raízes etimológicas do termo nos sejam deveras elucidativas. Tais raízes datam do século VI e apontam para o adjetivo “individuuos”, que, em latim, significa “indivisível”. Esse, aliás, era o termo latino utilizado para traduzir o grego “atomos”: algo não cindível; o que de forma alguma pode ser dividido18. Até o século XVII, tal adjetivo foi teologicamente

usado para demarcar partes indissociáveis, como a Trindade e o laço matrimonial. E quando se referia à pessoa, demarcava suas qualidades idiossincráticas e, quase sempre, pejorativas: o “individual” caracterizava a parcela vã ou excêntrica do que seria a natureza humana19.

Até então, reparemos, o individuuos figurava como uma qualidade. As questões que nos propomos fazer desde esse ponto original são: Qual a lógica da substantivação do indivíduo? Em nome de que ela ocorre?

O primeiro movimento da transformação do adjetivo (indivisível) em nome (indivíduo) foi comandado pelo contraste entre “no geral” e “no individual”. Segundo Williams20, o desenvolvimento decisivo desse movimento não se deu primeiro no campo social

ou político, mas nos campos da lógica e da biologia. Foi o enciclopedista Ephraim Chambers que estabeleceria, no século XVIII, uma divisão lógica entre os gêneros, que se distinguiam em espécies e que, por sua vez, se subdividiriam em indivíduos. Formalizava-se, assim, a subjetivação do termo “indivíduo” como “um indivíduo”. Desse modo, um indivíduo era pensado como sendo o que não pode ser dividido em algo com o mesmo nome ou natureza, o elemento resultante da última divisão possível.

O sentido moderno do que viria a ser “o indivíduo” não parece ter surgido antes de

An Essay Concerning Human Understanding21, de John Locke (1632–1704), escrito em 1694,

18 Williams (1976, p. 133) e Hoad (1986, p. 233). 19 Williams (1976, p. 134)

20 Williams (1976, p. 135) 21 Locke (1975)

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quando então o adjetivo aparece para significar “our Idea of any individual Man”22. E não antes do século XVIII o termo passa a figurar correntemente como noção de pessoa, qual escreve, em 1776, Adam Smith (1723-1790) na introdução de A Riqueza das Nações:

Entre as nações selvagens, de caçadores e pescadores, cada indivíduo capacitado para o trabalho ocupa-se mais ou menos com um trabalho útil, procurando obter, da melhor maneira que pode, os bens necessários e os confortos materiais para si mesmo ou para os membros de sua família ou tribo que são muito velhos ou muito jovens, ou doentes demais para ir à caça e à pesca. (Smith, 1988, p. 11, grifo nosso).

Para, contudo, entender o movimento pelo qual “um indivíduo” (um exemplar particular de um grupo) se torna “o indivíduo” (a noção de pessoa) é necessário observarmos a emergência da concepção de individualidade. Em seu sentido moderno, a individualidade está relacionada com processo histórico de passagem do feudalismo para o capitalismo, como uma condição de si que nega a ordem social, econômica e religiosa medieval. No protestantismo, por exemplo, essa concepção tornava a relação do humano com Deus uma relação suficientemente direta e particular, em oposição àquela mediada pela igreja. Na filosofia, por sua vez, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) propunha, à lógica e à matemática, um novo modelo de análise, a mônada: “o indivíduo como a entidade substancial a partir da qual outras categorias, especialmente categorias coletivas, eram derivadas” (Williams, 1976, p. 135)23.

Com efeito, o pensamento político do Iluminismo seguiu esse modelo, tomando o indivíduo como existência primária, a partir do qual as leis e as formas de sociedade eram derivadas -seja por submissão, como em Thomas Hobbes; -seja por contrato, consentimento ou pela lei natural, como no liberalismo.

Em suma, etimologicamente o surgimento de “o indivíduo” é marcado por um longo processo que, em doze séculos (VI–XVIII), transforma um adjetivo, o “indivisível”, em uma elaborada concepção de pessoa, ordem fundamental do ser na modernidade. Demarquemos aqui, um tanto adiantadamente, nossa proposta de tomar esse processo não como apagamento das formas anteriores, mas, antes, como um processo dialético de

contenção dessas formas pretéritas. Nesse sentido, é necessário observarmos que “o

indivíduo”, como forma de conceber o humano, conterá significantes que representam a 22 Williams (1976, p. 134 e 135).

23 “the individual as the substantial entity, from which other categories and especially collective categories

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indivisibilidade do atomos grego e da Trindade cristã; a partícula última da divisão de um grupo; o ente da relação particular e suficiente com Deus; e a mônada de cuja substância deriva a socialização.

Com essas condições em mente, avancemos mais nas referências históricas e filosóficas do indivíduo, referências essas que serão decisivas para a noção de pessoa observada desde a origem da Economia Política e da sociedade capitalista. O caminho que traçamos na próxima seção é mais regular. Trata de um recorte da matriz filosófica que sustenta a Economia Política clássica e, logo, as ciências econômicas convencionais24. Vale

dizer que esse caminho não somente situa o indivíduo na história do pensamento ocidental, mas também bem localiza nosso trabalho na esfera de debates de interlocução entre filosofia política e ciências econômicas.

A consciência livre do cogito cartesiano

Até o advento do que seria a Modernidade, por volta do final do século XV, o Homem, tal como o humanismo da Renascença constituiu, não existia como subjetividade delineada e, portanto, separada, irremediavelmente, do resto do Cosmos. No período que vai do Renascimento, final do século XV, até o século XVII, quando se consolida a ciência moderna, dá-se um corte extraordinário na cultura do Ocidente, corte esse que o Iluminismo, no século XVIII, vai arrematar. E um corte de fundação.

Produz-se um corte radical, efeito da separação que começa a acontecer entre o Pai e seus filhos, entre a criatura e o Criador. Trata-se do silêncio de Deus, "le Dieu cache", de Pascal, ou o Deus-garantia, de Descartes. O século XVI ouvira os últimos estertores de Deus nos místicos, os últimos a suportar a presença desse Deus sôfrego de amor. (Góes, 2008, p. 36).

Em The theory of the individual in economics, John Davis25 examina os

requerimentos lógicos e teóricos da concepção de indivíduo nas ciências econômicas convencionais. Para tanto, o autor empreende uma investigação das bases filosóficas do 24 Movimentos de alguma forma semelhantes, e mais profundos em diversos pontos, podem ser verificados nos

trabalhos de Crawford Macpherson (Macpherson, 1962), Albert Hirschman (Hirschman, 1977), Peter Minowitz (Minowitz 1993) e John Davis (Davis 2003 e 2011). Esses autores constam no importante estudo sobre o Homo Economicus realizado por Manuel Ramon Luz (Luz, 2013).

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conceito de indivíduo na modernidade. As origens do indivíduo moderno, enquanto noção de pessoa, apontam, segundo o autor, para os pensamentos cartesiano e newtoniano, que resultam em uma visão do humano conformada no dualismo entre subjetividade e objetividade, associados com as concepções iluministas sobre a ciência e a sociedade26.

Significa dizer que René Descartes (1596–1650) e Isaac Newton (1643–1727) teriam fornecido os elementos principais para a origem da moderna noção de pessoa em sua relação com a natureza. Por um lado, Newton propunha que a natureza era um mecanismo bem-comportado e regido por leis passíveis de serem discernidas. Por outro lado, o pensamento cartesiano conferiria à razão humana o caráter de uma interioridade subjetiva e depreendida do mundo material. Nesses termos, Descartes constrói a imagem de um pensamento capaz de autonomizar-se do que lhe é externo para, dessa posição, submeter a natureza ao escrutínio desapaixonado da razão27. O indivíduo moderno, assim, é fruto desse

dito dualismo, ele surge da oposição entre sua interioridade desprendida subjetiva e a natureza externa objetiva.

Vejamos isso mais a fundo. É Descartes o autor da frase “cogito ergo sum”, o famoso “penso, logo sou”, uma das máximas centrais do racionalismo e que estabelece a noção de pessoa como uma consciência livre, concebendo as bases para uma razão científica independente. Descartes escreve, assim, no capítulo histórico do Renascimento, o excerto científico mais importante: aquele que faz da razão uma potência emancipada e que, por esses meios, avança na superação dos ditames teocêntricos do ocidente feudal.

Embora Descartes estivesse debruçado sobre as condições da razão e do conhecimento, notemos que está implícito em seu cogito a existência de alguém que o profere. Queremos dizer que alguém deve tomar a palavra para dizer “(eu) penso, logo sou”, fazendo desse “eu” o lugar de coincidência entre o pensar e o ser. E não se trata, de fato, de uma simples coincidência. “Penso, logo sou” exprime que o pensar é o que implica o ser. Trata-se, por conseguinte, de uma ontologia do pensar, uma vez que, no cogito, o pensamento assume o lugar de uma anterioridade absoluta, daquilo que mais diz respeito ao ser28.

26 Davis (2003, p. 2)

27 O mundo externo, para Descartes – vale dizer, anterior a Newton - já aparece caracterizado como extensível e

operante de acordo com axiomas matemáticos e geométricos e, logo, passível de ser escrutinado pelo humano.

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Nesses termos, o pensar que funda o eu cartesiano só pode ser uma consciência livre. Livre, quer dizer, livre de qualquer predicado. Ora, por força de o pensamento se constituir como o ato que inaugura o ser, então não há o que explique a consciência, não há o que a condicione ou a cerceie. Por isso o “eu penso” cartesiano é uma interioridade desprendida, íntegra e suficiente em si própria; uma razão que pode tomar a natureza como aquilo que lhe é radicalmente externo e que está disponível para ser objeto de apropriação.

O que se faz sobressalente na filosofia cartesiana é que, na relação entre a razão e a natureza exterior, o que permite que a primeira seja capaz de assumir autonomia da segunda é, ainda, uma condição divina. De fato, para Descartes, o desprendimento do pensamento em relação à natureza, ou seja, a possibilidade de que ele se individualize é propiciada pela existência de um terceiro elemento que comanda tanto natureza quanto pensamento: Deus. Nesse sentido, o ser do pensamento, não se constitui a partir de si mesmo, mas de sua relação particular e suficiente com a bondade silenciosa de Deus29. Segundo Perez (2016, p. 166,

grifos do original):

A fala do eu que pensa e diz o que eu penso se inscreve no vazio do silêncio de Deus. Isso nos mostra a impossibilidade de um ponto de partida para nossa pergunta a não ser o próprio lugar da enunciação. Com Descartes o enunciado eu penso indica um lugar de enunciação como ponto de partida.

Por esses meios, Descartes ainda preserva um lugar para Deus. Deus seria aquele que criou o mundo de acordo com a geometria analítica e com axiomas matemáticos. E, de maneira ainda mais importante, somente Deus pode garantir que o humano tivesse a capacidade inata de formar ideias claras e precisas, a fim poder decifrar os mecanismos desse mundo30. Nesses termos, Deus, é aquele que nos possibilita a autonomia, que nos confere a

possibilidade de seguir a despeito dele. Assim, Descartes ofereceria uma base independente para a razão ao mesmo tempo que reconciliaria ciência e teologia. Mas, mais do que isso, dessa conciliação, implicada no contexto da transição de sociedades feudais teocêntricas para a modernidade antropocêntrica, temos as caracterizações primigênias do que veio a se tornar a noção de pessoa como um indivíduo.

Essa divisão fundamental do mundo entre uma subjetividade interna e uma 29 Ver Davis (2003) e Perez (2016)

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exterioridade objetiva foi uma das maiores contribuições cartesianas para o pensamento moderno. E quando as formulações de Newton sobre a mecânica da natureza passam a se difundir, Descartes já tinha fornecido uma ontologia da razão que professava um eu capaz de sustentar e promover tanta ciência. Segundo Davis (2003 p. 4):

Atingir a verdade científica exige, assim, que nos "desprendamos" de nossos sentidos e confiemos em nossa capacidade dada por Deus de formar ideias claras e distintas da maneira como o mundo é em si, ou em termos de suas qualidades primárias. A razão, que repousa subjetivamente no interior do indivíduo, possui a capacidade de ver a natureza interior do mundo. O famoso cogito cartesiano, consequentemente, deu ao Iluminismo uma epistemologia para a ciência, uma nova ontologia da natureza sem a participação de Deus e uma nova visão do indivíduo - que se retirou do mundo para entender e controlar as leis mecânicas do mundo31.

Em meio a essa constituição basilar da noção de pessoa enquanto indivíduo na modernidade, aparece “o” indivíduo. E, como vimos, o lugar que abriga essa aparição é An

Essay Concerning Human Understanding de John Locke32. O caminho que liga a consciência

livre cartesiana ao indivíduo lockeano é o de que, “enquanto Descartes comandou as fundações individualistas para a ciência e para o conhecimento, Locke estendeu essas fundações para o que concernia aos indivíduos e suas relações com a sociedade” (Davis, 2003, p. 5)33.

Nesses termos, se Descartes propõem uma abordagem da razão e de seus objetos que alcança, de alguma forma, associar elementos caros à teologia medieval aos avanços científicos da visão de mundo renascentista, Locke, por sua vez – no contexto de “uma Inglaterra do século XVII que combinava o regicídio puritano, o ódio ao catolicismo e a 31 “Attaining scientific truth thus requires that we “disengage” ourselves from our senses and rely upon our

God-given ability to form clear and distinct ideas of the way the world is in itself, or in terms of its primary qualities. Reason, reposited in the subjectively inward individual, possesses the capacity to see the inner nature of the world. Descartes’ famous cogito argument consequently gave the Enlightenment an epistemology for science, a new ontology of nature without God’s participation, and a new view of the individual— one that withdrew from the world to understand and control the world’s mechanical laws”.

32 Vale dizer que não queremos fazer de Locke um herdeiro ou interlocutor de Descartes, tão pouco localizar

esses pensadores em alguma corrente filosófica comum. Isso sim, queremos mostrar que o pensamento cartesiano e lockeano são constituídos por um mesmo processo histórico e social, isso é, do advento da sociedade burguesa. Nesses termos é que nos parece possível seguir Davis (2003), de modo a fazer evidente que Locke não simplesmente coaduna com a concepção de humano do dualismo newtoniano-cartesiano, se não que ele teria concebido o indivíduo da radicalização dessa concepção.

33 “whereas Descartes laid individualist foundations for science and knowledge, Locke extended these

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ciência de Newton e Boyle” (Davis, 2003, p. 4)34 -, abdica tanto da “bondade de Deus” quanto

da consequente condição inata da razão, concebendo o indivíduo como elemento da natureza e reclamando que a razão se constitui através de sua experiência sensorial. A proposta de Locke é que a interação de ideias simples - como átomos de conhecimento verdadeiro – se traduz em uma acumulação de conhecimento mais e mais complexo, “de modo que uma organização quase-mecânica e associacionista da mente seria paralela à organização mecânica da natureza” (Davis, 2003, p. 5)35.

Percebamos que se o avanço proposto por Locke não retira da razão a possibilidade de ser fazer autônoma e independente das condições externas. O indivíduo, é concebido, qual em Descartes, como um ente capaz de suspeição e de examinar os objetos de forma livre de influências a partir de um exercício independente de razão. Duas distinções, contudo, parecem ser evidentes entre os pensadores.

A primeira delas diz respeito à potência da consciência. Enquanto em Descartes a razão que funda o ser é inata e potencialmente plena, em Locke, a razão individual é restrita, o que inclusive justificaria que esse indivíduo estabelecesse relações sociais. Segundo Hayek, o indivíduo lockeano tem consciência de que a sua razão é limitada e é isso “que induz uma atitude de humildade em direção ao impessoal e anônimo processo social pelo qual indivíduos ajudam a criar coisas maiores do que eles mesmos conhecem” (Hayek, 1948, p. 8)36.

A segunda das distinções entre Descartes e Locke que queremos salientar é a de que a razão deixa de ser, do primeiro para o segundo, um princípio, passando a se consagrar como um elemento mediador. Isso porque, segundo Luz37, em Locke o exercício da razão

advém do imperativo da natureza humana de buscar sua própria conservação, tendo o progresso do conhecimento como meio para tanto. No limite, o indivíduo lockeano não é aquele que “pensa e, logo, é”, mas é aquele que “pensa para poder ser”.

Com efeito, é possível falar de uma radicalização da noção de indivíduo em Locke a partir de sua suplantação de Deus como aquele que assegura, ex ante, a expressão do 34 “In a seventeenth century England that combined the Puritan regicide, hatred of Catholicism, and the

science of Newton and Boyle”

35 “so that a quasi-mechanical, associational organization of the mind would parallel the mechanical

organization of nature.”

36 “which induces an attitude of humility toward the impersonal and anonymous social processes by which

individuals help to create things greater than they know”

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indivíduo como consciência livre. Sob tais condições, Locke pode estender a caracterização de subjetividade desprendida do indivíduo para além da epistemologia, levando-a, mesmo, para as relações que esse indivíduo estabelece com a sociedade. Daí, três concepções são excelentes para pensarmos a noção de pessoa a partir do pensamento lockeano: a liberdade, a igualdade e a propriedade.

No que concerne à liberdade, o que temos em Locke é que, se a razão não é inata, mas exercida, se ela não é um princípio, mas um meio para a autoconservação, então o indivíduo livre é aquele que tem a capacidade de suspender julgamentos e examinar as coisas desapaixonadamente e, desse arrazoado, buscar o que for melhor para a sua própria vida. Em contraposição, o escravo é aquele que não tem direito sobre sua consciência, que a tem comandada por outrem, que obedece aos interesses que não são propriamente os seus e que tem cerceada sua natureza38.

Já a igualdade, por sua vez, é uma condição diretamente ligada à liberdade, na medida em que somente indivíduos livres podem ser iguais. Isso porque o denominador comum que iguala os indivíduos é o direito de lutarem autonomamente por sua autoconservação. Nesse sentido, a igualdade em Locke é uma igualdade de direito, do direito natural à manutenção daquilo que é a propriedade fundamental do humano, a vida39.

Mas a vida não é a única propriedade que o indivíduo lockeano pode, por sua natureza, reivindicar. Há ainda que se assegurar todo um domínio privado. Ora, de que outra forma pode-se garantir a própria vida, senão que pela apropriação, no limite, individual? O que é o sustento senão que o consumo privado e excludente de nutrientes? Ademais, de quem deve ser o fruto do trabalho daqueles que lutam, livremente, pela manutenção de sua vida?

A apropriação privada seria, portanto, uma decorrência do direito de autoconservação e seria extensível não só aos alimentos, mas sim a toda a natureza, que teria sido fornecida por Deus para que o homem se aproprie. Nesse aspecto, [...] para estar de acordo com o direito natural, esta apropriação deveria ser realizada através do trabalho do homem. Todo homem seria proprietário, de sua própria pessoa e também do trabalho de seu corpo (Luz, 2013, p. 62).

Por esses meios, Locke justifica que os indivíduos devem ter o direito de 38 Davis (2003, p. 5).

(34)

constituírem propriedade. A apropriação é a condição necessária ao exercício do direito natural à vida e ao próprio corpo. Ela é resultado do trabalho privado, trabalho que, inclusive, “não necessitaria de nenhuma condição social para existir” (Luz, 2013, p. 63). A propriedade, assim, se faz um princípio exclusivamente individual, que diz respeito somente a relação que o indivíduo estabelece com seus objetos.

Nesses termos, aliás, Foucault identifica que o que Locke concebe por interesse é justamente esse “princípio de uma opção individual, irredutível, intransmissível, esse princípio de uma opção atomística e incondicionalmente referida ao próprio sujeito” (Foucault, 2008, p. 372). Segundo Foucault, esse interesse é o que, por excelência, não existia em absoluto antes da filosofia empírica inglesa. Essa ideia do indivíduo como ponto de partida do interesse, como o lugar de uma mecânica de interesses (e paixões) particulares, é inaugurada quando então40.

O que o empirismo inglês – digamos aquele que aparece grosso modo com Locke -, o que o empirismo inglês traz, sem dúvida pela primeira vez na filosofia ocidental, é um sujeito que não é definido nem pela sua liberdade, nem pela oposição entre alma e corpo, nem pela presença de um foco ou um núcleo de concupiscência mais ou menos marcado pela queda e pelo pecado, mas um sujeito que aparece como sujeito das opções individuais ao mesmo tempo irredutíveis e intransmissíveis (Foucault, 2008, p. 370-371, grifos do original).

Com efeito, a partir do pensamento lockeano, a noção de pessoa enquanto indivíduo toma um grau maior de independência e de autonomia: ao supor que o indivíduo tem uma habilidade natural de reconhecer as verdades simples e inalteráveis da experiência sensorial, Locke efetivamente tornou esses indivíduos responsáveis por sua própria existência, constituindo-os não mais no espaço da bondade de Deus, mas como seres auto-idênticos, autossuficientes e interessados. Para Locke “a autorreflexividade [da consciência] constitui a si mesma, porque nada além da consciência pode ser um ‘eu para si mesmo’ a qualquer ponto do tempo” (Davis, 2003, p. 05)41. Sendo um “eu para si mesmo” o indivíduo performa não só uma

autonomia radical, mas também o imperativo de ser um ser privado:

40 Aliás, Foucault localiza, desde Locke, que a opção ao prazer vis-à-vis o desprazer é um irredutível da análise

do indivíduo (Foucault, 2008, p. 371).

41 “The self reflexively constitutes itself, because as nothing but consciousness it must always be a “self to

(35)

Um ser entendido simplesmente como consciência precisa ser um ser privado, tanto porque o eu como pura consciência somente pode ser concebido em primeira pessoa, quanto porque a consciência, em virtude de seu caráter intencional, deve sempre estar separada daquilo que é consciência

de que. Para Locke, os indivíduos estão confinados em um mundo de

primeira pessoa, com o mundo das coisas reais apenas disponível a eles como objetos intencionais. Isso é, essa concepção de indivíduo é solipsista e idealista. (Davis, 2003, p. 6, grifos do original)42.

O indivíduo, enquanto noção de pessoa, se institui assim, dessa consciência livre que constitui um eu no ato mesmo de pensar. E o pensar, por sua vez, se torna sempre um pensar a partir do eu, de um eu que, do lugar da sua autonomia e independência, só pode se relacionar com as coisas submetendo-as, assenhorando-se delas em benefício da sua própria existência.

Para fazer essa condição mais clara, façamos duas questões. Em que medida o

indivíduo pode se apropriar das coisas? Ora, a resposta para essa pergunta está pronta na

própria concepção de indivíduo: o indivíduo sempre pode se apropriar das coisas, pois seu caráter atômico, indivisível e autorreferente o coloca em uma posição na qual as coisas só podem estar para ele como objetos de apropriação, como objetos que podem ser apreendidos por sua razão. Daí, duas condições da noção de pessoa como indivíduos se desenham: a de que o indivíduo é um alienígena no mundo e a de que nada é impróprio ao seu interesse.

De fato, para o indivíduo o mundo é sempre algo a ser descoberto, domado por ele, como se ele mesmo não fosse parte do mundo. É que se “penso, logo sou”, então o locus do eu, esse indivíduo, é a mente. O mundo das coisas se torna uma dimensão a ser colonizada pelo indivíduo, esse ente alienígena, essa consciência livre. “Livre”, nesse sentido, significa, no limite, livre do mundo. Depois, se o indivíduo é aquele que “pensa e, logo, é”, então nada pode lhe ser impróprio, uma vez que o pensar é a forma primeira pela qual ele se apropria das coisas43.

A segunda questão que propomos é a inversa dessa primeira: Em que medida as 42 “the self as pure consciousness can only be conceived in first-person terms, and because consciousness, by

virtue of its intentional character, must always be separate from that which consciousness is of. For Locke, individuals are confined within a first-person world, with the world of real things only available to them as intentional objects. That is, his conception of the individual is solipsistic and idealist”.

43 A própria noção de propriedade privada adviria da apropriação necessária para a autoconservação. Ao

apoderar-se das coisas necessárias para a subsistência, os indivíduos naturalmente impediriam o domínio delas pelo resto da humanidade. O direito à autoconservação de desdobraria, assim, em direito à propriedade privada. Para uma maior discussão sobre o assunto, ver Luz (2012, p. 62).

Referências

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