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O indivíduo como o eu aparente do sujeito: O indivíduo é a forma aparente que

O indivíduo: indiferença e anistoricidade

Condição 6 O indivíduo como o eu aparente do sujeito: O indivíduo é a forma aparente que

dá consistência narrativa ao sujeito no capitalismo. Se esse sujeito é efeito de um laço social cuja essência é repleta de tantas contradições, o indivíduo é, justamente, o objeto ideológico

que busca homeostasiar as contradições referentes ao eu capitalista.

Por força da crítica ontológica que nos propomos realizar, retornamos, aqui, ao indivíduo, nossa já tão discutida noção de pessoa moderna. A possibilidade de pensar o sujeito como indivíduo, desde o capitalismo, está diretamente relacionada com a conformação de uma estrutura subjetiva que contém e nega a qualidade do fruto do trabalho, dos atos de trabalho e dos trabalhadores. Tanta negligência organiza a materialidade da ordem simbólica na direção de fazer sem sentido a condição social da sujeição. Percebamos que, assim, o capitalismo produz a aparência de um sujeito integro, ou seja, que não é cindido por um processo histórico. Vemos aí o agente do discurso capitalista, esse eu que:

“faz semblante” de ser o mestre, [que] acredita não estar sujeitado a nada. Mesmo que, mais que um Aladim, seja o “aprendiz de bruxo” de Goethe: um impotente que desencadeia efeitos que não consegue dominar e que imagina que com as palavras e com suas invocações pode criar um mundo obediente a seus desígnios. É o sujeito, desconhecedor de sua incurável divisão, de sua servidão a essa “verdade” que o transcende [...]. (Braunstein, 2010, p. 152) Se somos divididos pela história e dependentes do lugar social que ocupamos, então o que o capitalismo faz, desmentindo tais condições, é negar essa divisão e nos fazer indivíduos independentes e anistóricos. Queremos dizer que o indivíduo é uma forma específica de abstração, de alienação do sujeito no capitalismo.

A abstração de que se trata aí não é evidentemente um produto ideal do cérebro pensante. O indivíduo concreto, ou seja, livre e senhor de si mesmo, mas desprovido de meios de vida, torna-se abstrato. Essa abstração é, pois, concreta, é resultado da realidade material objetiva. Despossuído de meio de vida, da propriedade e de dinheiro, o indivíduo é concretamente, e miseravelmente, abstrato. A autonomia e independência que ele aparenta revelam aí dolorosamente a ilusão em que se constituem. Ele não é dono e senhor de seu destino, não arbitra sobre a condução de sua vida, apenas sobrevive, e mal, quando consegue. (Paulani, 2005, p. 40)

O indivíduo, essa miserável abstração concreta, só pode ser entendido nesses termos se compreendermos que sua aparência é a realidade de sua essência. O que Paulani chama a atenção é exatamente o fato de que a consciência de si como um indivíduo no capitalismo não é uma abstração tresloucada, embora ela seja uma fantasia ideológica. Ela é uma alienação concreta, funcional, necessária para que a essência capitalista se reproduza.

Em O capital, quando da discussão sobre a distinção entre o valor da força de trabalho e o salário monetário pago a ela, Marx escreve algo que se enquadra perfeitamente no que essa tese intenta sustentar em relação ao sujeito no capitalismo e a manifestação do indivíduo. Diz-nos ele:

Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a verdadeira relação e mostra justamente o contrário dela, repousam todas as concepções jurídicas tanto do trabalhador como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as pequenas mentiras apologéticas da Economia vulgar195. (Marx, 1996, p. 169) Portanto, quando o sujeito capitalista diz “eu”, ele reproduz essa subjetivação ótima que sustenta essas também “todas mistificações do modo de produção capitalista”; porque, ao dizer “eu” - e remeter, daí, às cadeias de significantes organizadas no capitalismo -, o sujeito sintomatiza o apagamento das condições que o localizam como historicamente determinado, como efeito de uma sociedade de classes, como profundamente dependente do outro, como dividido subjetivamente pela ordem simbólica do laço social196.

Enquanto as pessoas se fazem livres e iguais em seu imaginário mercadológico, o que se apresentam no enredo que se desenvolve na outra cena são sujeitos que se constituem como efeito de significantes logicamente referenciados pela indiferença, condição sine qua

non dessa organização social. O discurso capitalista, assim, se faz um espaço excelente para a

fantasia de si como um indivíduo, qual a noção de pessoa da Economia Política liberal. Afinal, as diferenças sociais e as condições históricas que constituem os sujeitos são renegadas no 195 E continua: “Ainda que a história mundial precise de muito tempo para descobrir o segredo do salário, em

compensação nada é mais fácil de compreender do que a necessidade, as raisons d’être, dessa forma de manifestação” (Marx, 1996, p. 170).

196 É por essa via que Birman pode afirmar que “na conjunção entre o percurso inicial de Lacan e a filosofia do

jovem Marx, é que o eu, como instância psíquica de desconhecimento, seria a condição de possibilidade para a construção das ideologias” (Birman, 2011, p. 435). Todavia, não nos parece possível restringir essa condição nem ao percurso inicial de Lacan, tampouco à filosofia do jovem Marx. A bem da verdade, esse tema retorna, como aqui podemos constatar, tanto nos textos marxianos quando do primeiro capítulo de O

espaço significante do capital. O imaginário do indivíduo autônomo, independente, livre e anistórico, de fato, proporciona consistência ideológica à série de contenções e negações simbólicas do capitalismo.

O estranhamento

Se fossemos narrar um pequeno recorte do processo de produção individual no capitalismo diríamos, cronologicamente, que um trabalhador põe em prática sua atividade e

produz uma mercadoria para a troca. Assim, aparentemente, só há trabalho se houver

trabalhador, só há mercadoria se houver trabalho e, finalmente, só há troca se houver mercadorias para tanto. Esse sentido é, inclusive, aquele que talvez seja o mais comum e, certamente, é o mais notório nas ciências econômicas convencionais. Temos de nos perguntar, todavia, o que acontece quando atravessamos esse recorte com a seguinte questão: Quem se realiza antes, o trabalhador, o trabalho, ou a mercadoria?

Ora, se aceitarmos que a realização do trabalhador é obter os bens que necessita para sua reprodução, que a realização do trabalho é fornecer os tais bens, e que a realização da mercadoria é a de ser trocada, o que observamos é que, socialmente, a mercadoria precisa cumprir sua sina, para que, disto, o trabalho e o trabalhador tenham seu devir cumprido. Significa dizer que o capitalismo inverte socialmente a ordem das realizações. A realização da mercadoria aparece como anterior e como condição do trabalho e do trabalhador.

A análise dessa inversão revela mais um movimento da dialética da forma mercadoria. No capitalismo, a mercadoria contém trabalho (social abstrato), uma vez que é essa forma de trabalho que a produz. Mas ela também nega o trabalho enquanto sua condição,

uma vez que se realiza antes dele. O mesmo quanto ao trabalhador: é somente depois das

mercadorias cumprirem o seu devir que os sujeitos terão sua reprodução garantida.

Os efeitos sobre a forma de subjetivação da posição significante do valor de troca das mercadorias, nesses termos, são ao menos dois: a inversão do sentido de determinação entre mercadoria e trabalhador, isso é, a mercadoria aparece como que anterior ao trabalhador

e aquela que é capaz de proporcionar a existência dele; e a possibilidade de que se desminta o tempo de trabalho socialmente necessário como unidade social que objetiva o valor de troca.

O primeiro efeito, a inversão de conteúdos presentes na mercadoria, é aquele que concebem o espaço específico no qual se instalará a forma de estranhamento do capitalismo. Esse tema, aliás, é bastante explorado por Marx, nos Manuscritos econômicos e filosóficos. Ali, nós destacamos quatro momentos desse estranhamento, momentos esses que têm de se fazer presentes como condições dos sujeitos desse laço social.