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a heteronomia: O sujeito capitalista tem como condição primordial de sua

O sujeito do trabalho heterônomo

Condição 1- a heteronomia: O sujeito capitalista tem como condição primordial de sua

existência a submissão a uma lógica que é radicalmente de um outro. Com efeito, a essência desses sujeitos é existir em nome do outro, de modo que toda sua expressão de vida está alicerçada no seguinte devir: o sujeito capitalista é aquele que tem inelutavelmente vendida

sua força de trabalho.

Antes de mais nada, a subjetivação que é efeito do capital implica que o trabalho heterônomo assuma posição privilegiada em relação ao ser no capitalismo. Nos moldes históricos em que o trabalho é extremamente dividido, que os trabalhadores estão separados dos meios de produção e que se sujeitam ao trabalho assalariado, a condição de existir dos sujeitos está atrelada à conjuntura do trabalho heterônomo.

Esse imperativo, vale dizer, é também simbólico. Antes de qualquer coisa, o sujeito somente se concebe quando se sujeita a transformar sua lida em mercadoria, em força de trabalho. No capitalismo: “o trabalhador se torna, portanto, um servo do seu objeto [...] para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como sujeito físico” (Marx, 2004, p. 81 e 82, grifo do original).

Nos nossos termos, o trabalho em nome do outro ocupa posição excelente para o sujeito na cadeia de significação de si. Na estrutura desse laço social, “humano trabalhador” se arranja como “empregado, e aí, então, humano”, de modo que se reproduz inconsciente um devir heterônomo do ser.

Com efeito, pela necessidade de vender sua força de trabalho, o sujeito tem sua posição subjetiva subordinada à realização de si enquanto mercadoria. Antes de mais nada, queremos dizer, o sujeito precisa ser consumido. No capitalismo, “[o] trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral” (Marx, 2004, p. 80, grifo do original). Esse é o ato que funda o assujeitamento capitalista181. “A mercadorização do trabalho significa,

181 Nos Manuscritos, quando da discussão sobre os salários nos termos da luta de classes (ou do conflito

distributivo) entre capitalistas e trabalhadores, Marx argumenta que a separação entre capital, propriedade da terra e trabalho introduz uma questão mortal ao trabalhador. Isso porque, na medida em que está desprovido de meios de produção, o possível sofrimento pela incerteza e fragilidade de sua renda faz com que o trabalhador sofra em sua existência, enquanto o capitalista, quando sofre igual fragilidade, sofre por sua obsessão: o lucro. “O trabalhador não tem apenas de lutar pelos seus meios de vida físicos, ele tem de lutar

tanto quanto impõe, uma posição perversa ao sujeito, demanda que o sujeito assuma a posição de objeto de gozo do Outro [a ordem simbólica].” (Tomšič, 2015, p. 104)182. Assim, trabalhar

em nome de terceiros, vendendo força de trabalho, determina um arranjo simbólico que suporta o espaço de possibilidade da concepção de si e do outro na reprodução do laço social capitalista.

Como deve parecer claro, essa heteronomia radical do sujeito contrapõe o princípio da autonomia do indivíduo, enquanto noção de pessoa institucionalizada na sociedade capitalista. O que já podemos afirmar é que, seja qual for a modalidade de autonomia posta no indivíduo, ela só pode existir a partir da condição essencial de esse sujeito vender sua força de trabalho, ou seja, da necessidade primária de se colocar em nome do outro. A pergunta que nos cabe fazer é: a partir dessa heteronomia essencial, como poderia aparecer um indivíduo autônomo?

Essa pergunta é importante por dois motivos. Primeiro, porque ela aponta para a relação entre essência e aparência, nos obrigando a pensar que a autonomia do indivíduo é funcional na ocultação e reprodução da heteronomia capitalista. Caso contrário, cairíamos na armadilha – aqui já prevista – de pensar o indivíduo como simples engodo da mente, como em erro da razão. Isso, contraditoriamente, nos conduziria de volta ao racionalismo, de onde não poderíamos sair, senão que pela assunção de uma consciência desprendida (qual aquela da tradição cartesiana e lockeana). Antes, por força do materialismo dialético, temos de assumir que autonomia do indivíduo contém e nega seu contrário, a heteronomia do sujeito capitalista. Implica dizer que é necessário que apareça algo como um indivíduo autônomo para que a heteronomia essencial desse laço social se mantenha e se reproduza.

Do ponto de vista histórico, percebamos, a função da autonomia é a de fazer obscena a condição de resignação. Antes, nas sociedades feudais a resignação à exploração de classes é evidente e modulada pelo discurso religioso. Agora, no capitalismo, que tem de deslocar a narrativa do poder de Deus para o poder humano, a resignação da classe explorada deve se dar por uma narrativa que desmente essa condição, que faz o sujeito aparecer como se fosse um indivíduo autônomo.

pela aquisição de trabalho, isto é, pela possibilidade, pelos meios de poder efetivar sua atividade” (Marx, 2004, p 25).

182 “Commodification of labour [sic] means as much as imposing a perverse position on the subject, demanding

Em segundo lugar, perguntar como o sujeito do trabalho de antemão vendido se torna um indivíduo autônomo nos faz questionar qual o caráter da contenção e negação deste por aquele. E não se trata, aqui, de um preciosismo analítico. Como dizemos, a lógica pela qual o capitalismo estabelece a contenção e negação entre essência e aparência é crucial para a compreensão da lógica, inclusive discursiva, desse laço social. Ela é o modo pelo qual o capital opera.

Essa forma de contenção e negação, anunciamos desde já, é o fetiche. Significa dizer que a dialética capitalista é uma dialética do fetiche, que toda negação capitalista é fetichista. Essa afirmação, aliás, é uma das constatações principais dessa tese. Localizar assim a dialética do capital é mostrar sua dinâmica subjetiva essencial: o desmentido, o

contorno da contradição, um engajamento de ordem cínica183, a denegação da negatividade.

Se a caracterização mais ampla desse fetiche será trabalhada no decorrer de todo esse capítulo, o que desde já nos fica notório é que, quando a autonomia do indivíduo nega a heteronomia do sujeito, ela não o faz de forma insuspeita. Pelo contrário, a sujeição fundamental ao outro capitalista é, ao menoos em parte, facilmente perceptível. Contudo, essa sujeição exige ser constantemente renegada para que a realidade desse laço social possa se estabelecer.

Assim, a ordem simbólica do discurso capitalista produz sujeitos que tomam seus objetos - seja o “eu”, o “tu”, o “isso”, o “eles e elas” - pela forma como estão relacionados a essa heteronomia, mesmo que seja para, depois, chamar esses objetos de autônomos. Por meio dessa construção ideológica, fantasiamos uma narrativa na qual agimos em nome próprio, como típicos egoístas smithianos, fazendo nossas escolhas pessoais e nos movendo de acordo com as nossas preferências mais íntimas. Essa construção ideológica, contudo, somente é possível, se renegarmos a heteronomia da nossa atividade vital, desmentindo que essa heteronomia condiciona todo o espaço de sentido da nossa pretensa experiência autônoma.