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A partir da identificação das críticas de Marx à noção de pessoa moderna – aquela representada pela instituição “indivíduo” -, podemos preparar nossa proposta de uma nova noção de pessoa. Dos passos que seguiremos nesse intento, cabe, aqui, reconhecer a caracterização de um sujeito a partir da Economia Política marxiana. Sobre essa tarefa, escreve Paulo Becker:

Tentaram usar Marx para postular um novo sujeito. É um sonho recorrente. O novo homem não é um novo sujeito. É o sujeito de sempre, avisado da dimensão real material que o sobredetermina. Matéria e não substância: Marx, magnífico leitor de Aristóteles esclareceu que não há outra substância senão o trabalho vivo, energia, o desejo pulsátil que emerge na dependência profunda do Outro quando no enfrentamento da necessidade. E é ele que nos diz: a essência do homem é poder tomar a sua própria essência como objeto. (Becker, P. 2008, p. 2 e 3)

O que Paulo Becker indica é que, para concebermos um sujeito a partir do pensamento marxiano, devemos retomar o primeiro pressuposto analítico de Marx: a existência humana e a história somente se realizam na medida em que as pessoas tenham condições de viver para, da vida, experimentar essa existência e fazer a história. Nesse sentido, o trabalho é um ato histórico fundamental, na medida em que é a atividade por meio da qual é possível satisfazer as necessidades vitais. Essa é uma condição basilar e incessante, tendo em vista que tais necessidades não se encerram e que, portanto, sua provisão precisa ser cumprida indefinidamente99. Marx, assim, retoma a noção hegeliana de “trabalho”, se bem que a redefine

em termos históricos e materiais100.

As formas de obtenção das condições materiais de vida são, para Marx, um pressuposto radical. A elas, Marx condiciona todo o espaço de possibilidade de manifestação da existência humana. Sendo assim, a “produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real” (Marx e Engels, 2007, p. 93).

Nenhuma ação ou representação humana pode ser criada senão a partir das condições históricas e, logo, das possibilidades geradas pelas formas de obtenção dos meios de vida. As representações que as pessoas produzem - seja sobre seu convívio com a natureza, seja sobre sua consociabilidade ou sobre sua própria condição enquanto pessoa - são expressões de suas relações e atividades de produção, são semblantes do intercâmbio e da organização social e política101. Quanto a isso, a citação que Tomšič faz do Grundrisse é

certeira:

Fome é fome, mas a fome saciada com uma carne comida com garfo e faca é uma fome diferente daquela que engole carne crua com a ajuda da mão, unha e dente. A produção, assim, produz não apenas o objeto, mas também a maneira de consumo, não apenas objetivamente, mas também subjetivamente. A produção, assim, cria o consumidor. A produção não apenas oferta um material para a necessidade, mas ela também oferta uma necessidade para o material. (Marx, 1993, p. 92 apud Tomšič, 2015, p. 124)102

Se as condições de obtenção dos meios de vida são pressupostos radicais, temos em Desdobramentos lógico-históricos da ontologia do trabalho em Marx103 a reivindicação 100 O conceito de trabalho em Hegel “permite rearticular a relação entre sujeito e objeto, mediante a versão de

que os homens produzem a realidade inconscientemente – “Eles fazem, mas não o sabem”, na fórmula sintética de Marx no prefácio O capital” (Sader, 2007, p. 10). A alienação, desde aí, aparece como um conceito que redefine radicalmente as relações entre o sujeito e o objeto, entre subjetividade e objetividade.

101 Ademais, defender a afirmação de que a razão é subordinada às condições materiais implica, na verdade,

conformar a própria subjetividade do humano a essas condições. Isso, por sua vez, obriga “reconhecer o facto de as ciências do indivíduo ou do psiquismo se articulam entre si numa posição secundária em relação com as ciências das relações sociais da história, na medida em que a individualidade e a vida psíquica, longe e serem dados independentes ou primordiais, produzem-se na história com base nas relações sociais”. (Sève, 1975, p. 246)

102 “Hunger is hunger, but the hunger gratified by cooked meat eaten with a knife and fork is a different hunger

from that which bolts down raw meat with the aid of hand, nail and tooth. Production thus produces not only the object but also the manner of consumption, not only objectively but also subjectively. Production thus creates the consumer, Production not only supplies a material for the need, but is also supplies a need for the material.”

dessa condição de anterioridade do trabalho nos termos, mesmo, de uma ontologia, como queria Lukács. Isso é:

Quando atribuímos uma prioridade ontológica de uma categoria em relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível. É algo semelhante à tese central de todo materialismo, segundo o qual o ser tem prioridade em relação à consciência (Lukács, 1979, p.11, apud Campregher, 1993, p. 4).

Nesses termos, é por sua prioridade ontológica que o trabalho não deve ser pensado como simples conduta humana ou exercício da vontade das pessoas. O sentido de determinação, na verdade, é o inverso. Não existem sujeitos anteriores à lida, mas, sim, sujeitos efeitos da lida. O trabalho – entendido como “processo de trabalho, dentro e ao longo de vários modos de produção” (Campregher, 1993, p 20) – é anterior ao sujeito, se estabelecendo como fundação primeira da sociabilidade humana em geral. A história, assim,

se constitui como um preenchimento progressivo do conceito de trabalho enquanto conceito ontológico104.

A condição limite dessas proposições é a de que, para a humanidade, não há uma metaposição à materialidade, ou seja, não há um campo de sentido que engloba a materialidade como subconjunto e, dessa forma, forneça elementos independentes que possam interpretar a ordem material. A suposição contrária somente seria possível se, além do humano, pressupusermos uma entidade à parte, independente das condições materiais105. O sujeito, no

que respeita a essa ontologia, é vazio de qualquer significado instantâneo; não podendo ser, de maneira nenhuma, um elemento originário106.

Percebamos que tais imperativos permitem a Marx não assumir aquela – já mencionada - distinção imediata entre a consciência de si da consciência do objeto. De fato, se consciência faz parte da contextura material, então não há nada que nos obrigue distinguir essencialmente seus objetos - sejam eles o eu, o outro ou quaisquer terceiros.

A não existência de um espírito autônomo e independente faz com que a pessoa em Marx seja um sujeito efeito do laço social e, logo, devemos pensar esse sujeitos como um 104 Campregher (1993, p. 21).

105 Marx e Engels (2007, p. 93, nota c).

devir-a-ser, no sentido que são condicionados pela forma de reprodução da sociedade. O

sujeito tomado como um devir-a-ser é um sujeito que conforma as condições de reprodução do laço social. Mas se a reprodução é um processo que se estende ao futuro, então esse sujeito do devir é um devir sendo, é um sujeito dividido inclusive no tempo, já que a realização da sua existência é modulada pela reiteração da materialidade que o constitui107.

Esse rumo nos levará à nossa proposta de sujeito. Maz vamos dar um passo atrás, propondo, três recortes para pensar as condições de sujeição para Marx. São elas: (1) o sujeito

é um objeto social; (2) o sujeito é um objeto para si mesmo; e (3) o sujeito é uma atividade sensível. É nesses termos que entendemos que Marx fundamenta - mesmo que implicitamente

- sua abordagem do sujeito. Ele, vale dizer, o faz propondo uma abolição total de duas ilusões centrais e basilares da visão de mundo tanto capitalista quanto da Economia Política clássica, a saber, a existência de uma essência humana e de uma homeostasia social. Vejamos:

1 - O sujeito é um objeto social.

O sujeito ser um objeto social significa evidenciar sua não integralidade, colocá-lo fora de si, no corpo social. Desde os Manuscritos é possível vislumbrar uma noção de pessoa como cindida em Marx. Temos de admitir, nesse sentido, o rompimento flagrantemente, dele, com o indivíduo.

Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum ser natural, não toma parte da essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. Um ser que não seja ele mesmo objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser para seu objeto, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é nenhum [ser] objetivo.

Um ser não-objetivo é um não-ser. (Marx, 2004, p. 127, grifos do original).

Marx, assim, entende que conceber um sujeito que não é ele próprio um objeto, seria pensá-lo como único, solitário, isolado, monadário. Esse é justamente, o ser do ente individual, aquele que nos deparamos quando da representação, muito explorada pelos 107 Nosso sujeito como devir-a-ser funciona, mesmo, como um sintoma da reprodução material, ele é o que a

materialidade possibilita enquanto um “deverá ter sido”. Os sujeitos são pegadas de uma lógica de acumulação, da reprodução incessante que retroalimenta a sociedade em suas contradições de classe. O sujeito, esse sintoma material, é o retorno do recalcado de Freud, se bem que em sua versão lacaniana, dado que a resposta de Lacan sobre desde onde retorna o recalcado é “desde o futuro” (ver Žižek, 2003, p. 87 e 88).

economistas, de um Robinson Crusoé, ilhado, independente e pronto para alocar recursos inócuos e escassos. Quando conferimos inocuidade a esses recursos, aos bens externos a esse indivíduo, queremos dizer que esses bens não têm efeito sobre o próprio ser individual, não o dividem, não o objetificam. Mas, se o material é a condição de vida do humano, então a vida humana é um objeto efetivo da materialidade social.

Pois, tão logo existam objetos fora de mim, tão logo eu não esteja só, sou um outro, uma outra efetividade que não o objeto fora de mim. Para esse terceiro objeto eu sou, portanto, uma outra efetividade que não ele, isto é [sou] seu objeto. Um ser que não é objeto de outro ser, supõe, pois, que não existe nenhum ser objetivo. Tão logo eu tenha um objeto, este objeto tem a mim como objeto. Mas um ser não objetivo é um ser não efetivo, não sensível, apenas pensado, isto é, apenas imaginado, um ser da abstração. (Marx, 2004, p. 127 e 128, grifos do original)

A complexidade instalada no sujeito quando o tomamos como um objeto inescapável do outro é, de fato, bastante ampla. Mas talvez a forma mais simples de abordarmos essa questão seja pela condição de que esse outro é todo um sistema (econômico, político, linguístico) que é anterior à expressão dos sujeitos. A língua que falamos, os gostos que temos, os ritos e as rotinas, a forma de experimentar o tempo, a dor e o prazer, todas essas expressões são oferecidas para nós pelo laço social, laço esse que, de fato, é o verdadeiro agente da nossa sujeição. Ou, como na famosa nota de rodapé de O capital:

Pois ele [o “homem”] vem ao mundo nem com um espelho, nem como um filósofo fichtiano: eu sou eu, o homem se espelha primeiro em outro homem. Só por meio da relação com o homem Paulo, como seu semelhante, reconhece-se o homem Pedro a si mesmo como homem. Com isso vale para ele também Paulo, com pele e cabelos, em sua corporalidade paulínica, como forma de manifestação do gênero humano (Marx, 1988, p. 57, nota 18)108. Com efeito, se não existir esse outro que nos assujeita, que nos faz objetos de sua lógica, de seus valores, de seus sentidos, não há de onde retirarmos o substrato material para dar significado à vida. É necessário que esse outro nos tome objetivamente para que sejamos efetivos, como queria Marx.

108 “Essa breve nota antecipa, de certa maneira, a teoria lacaniana do estádio do espelho: somente ao se refletir

num outro ser humano — isto é, na medida em que esse outro ser humano lhe oferece uma imagem de sua unidade — é que o eu [moi] pode chegar à sua auto-identidade; a identidade e a alienação, por conseguinte, são estritamente correlatas” (Žižek, 1996, P. 309).

2 - O sujeito é um objeto para si mesmo: o Estranhamento.

Mais do que ser um objeto social, a discussão de ser o sujeito um objeto para si mesmo retorna aqui. Introduzimos essa questão quando defendemos que, a partir da Ideologia

Alemã, podemos sustentar que Marx e Engels não fazem distinção entre os objetos da

consciência, sejam eles objetos externos ao sujeito ou o próprio eu do sujeito. De fato, como a noção de pessoa em Marx rompe com o indivíduo, o que temos é um ser cuja consciência-de- si109 é sempre um objeto em elaboração que não coincide com o próprio sujeito e está sempre

alienada dele. Daí, partimos para a afirmação de que, em Marx, a condição do sujeito como objeto de si mesmo não tem o caráter de uma identidade, mas de um o estranhamento110.

Para mostrar e elaborar essa condição, propomos abordar o tema do estranhamento, em Marx, a partir de sua crítica à ilusão da especulação, advinda de algo como a assunção do primado da consciência. Como vimos, para Marx, a consciência, tomada como objetividade enquanto tal - e não como uma objetividade estranhada –, resulta em um pensar que “enquanto pensar finge ser imediatamente o outro de si mesmo, [finge ser] sensibilidade, efetividade, vida, o pensar que se sobrepuja no pensar” (Marx, 2004, p. 128, grifos do original). Diferentemente, para não incorrermos, justamente, nesses fingimentos, é preciso aceitarmos tanto que o estranhamento tem seu lugar na diferença entre o sujeito e a consciência-de-si quanto que o indivíduo, o ser da consciência livre, desmente tal estranhamento.

Com efeito, se nos permitirmos pensar o estranhamento como fruto da

109 Escrita assim, unida por hífen, para destacá-la como um objeto, uma coisa.

110 Aqui, não faremos diferenças entre os termos estranhamento e alienação, mesmo que tratemos muito mais do

primeiro. Não que de fato esses termos sejam perfeitamente justapostos, mas o espaço de intersecção desses fenômenos nos parece melhor acomodar nossa investigação. Sobre isso, segue a seguinte nota dos tradutores, constante em A ideologia alemã: “A palavra Entfremdung deriva de fremd (“alheio”), passando pelo verbo

entfremden (“alhear”). Guarda, também, os sentidos de “estranhar”, “deparar-se com algo ou alguém

estranho”, “não reconhecer algo ou alguém”. Em Hegel, o conceito designa dois fenômenos distintos: 1) o fato de que a substância é estranha ao indivíduo; 2) a alienação ou abandono de si mesmo pelo indivíduo e sua identificação com a substância universal pela aquisição de cultura. [...] Para o Marx dos Manuscritos

econômico-filosóficos de 1844, a Entfremdung (Marx também usa Entäusserung com o mesmo sentido)

assume a forma da alienação do indivíduo no trabalho, o que se dá em quatro momentos: alienação/estranhamento do 1) trabalho, 2) do produto do trabalho, 3) do indivíduo em relação ao gênero e 4) do indivíduo em relação ao seu próprio ser social. É somente n’A ideologia alemã, porém, que Marx chega à ideia da Aufhebung da alienação/estranhamento não mais como “re-identificação” do indivíduo com a universalidade do “ser genérico” perdido, mas como liberação das forças produtivas que, sob a forma alienada da propriedade privada, desenvolveram-se como forças humanas universais”. (Marx e Engels, 2007, p. 548 e 549, nota 16, nota dos tradutores)

manifestação histórica que cinde inescapavelmente os sujeitos111, poderemos ler esse fenômeno

no texto marxiano de duas formas: primeiro o estranhamento estrutural, fruto daquela incapacidade de sobreposição entre a consciência do sujeito e a sua essência; segundo, o estranhamento secundário, que aliena o sujeito em uma consciência de si historicamente determinada.

No que respeita a esse trabalho, o estranhamento que chamamos de secundário é, mesmo, um tema transversal. No capítulo 3, buscaremos, inclusive, mostrar que “o indivíduo” se caracteriza, justamente, como a forma de consciência de si que aliena o sujeito no discurso capitalista.

Mas tentemos captar, agora, a forma primária de estranhamento, isso é, aquela estrutural. Ela parece se sustentar pelo seguinte: “O mundo é criado pelos homens, embora não de forma consciente, o que permite explicar tanto a relação intrínseca entre eles quanto o estranhamento do homem em relação ao mundo e a distância deste em relação ao homem” (Sader, 2007, p. 10). Ora, quando Sader afirma, da leitura de A ideologia alemã, que o mundo é “criado” por humanos, ele localiza no próprio ato de trabalhar a origem do estranhamento. Mais especificamente, o estranhamento estrutural é resultado de o trabalho, a atividade prática humana, ser um produtor de objetos que são estranhos ao trabalhador e que exercem poder sobre ele. “Essa relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que lhe defronta hostilmente” (Marx, 2004, p. 83). É a partir da compreensão do trabalho como aquele que cinde o humano - e que, logo, gera o espaço de diferença no qual se instalará o estranhamento - que Marx estabelece uma distinção entre o que seria a sua concepção de sujeito e a concepção de sujeito de Hegel. Se Hegel, qual Marx, assume a consciência-de-si como um objeto, ele o faz atribuindo esse objeto a um ente pensado como um ser abstrato. Marx parece acusar, exatamente, essa anterioridade da abstração em relação às condições reais. Em Hegel, o si idealizado e fixado resulta em um “egoísta abstrato, em sua pura abstração [é] o egoísmo elevado ao pensar” (Marx, 2004, p. 125, grifos do original), ele resulta em uma “consciência-de-si absoluta” 111 No que concerne à primeira concepção – a de que o estranhamento tem lugar na diferença entre o sujeito e a

consciência de si - a questão patente é que Marx, nos Manuscritos Econômicos e Filosófico, assume o estranhamento não como um resultado da materialidade (do trabalho e da linguagem), de modo a fazer, dele, base da sociabilidade. Antes, um “ser genérico” aparece como resultante de uma posição não estranhada, não alienada. Aqui, no entanto, propomos o relaxamento dessa condição.

(Marx, 2004, p. 133), em uma autoprodução formal112.

Para Marx, ao contrário, as condições materiais condicionariam um estranhamento específico e efetivo, isso é, uma forma particular de objetividade do sujeito e, portanto, de subjugação da consciência-de-si. Nesses termos, o estranhamento não pode ser tomado como um momento irrefletido, um engodo da consciência capaz de ser, de alguma forma, abolido. O estranhamento conforma uma alienação positiva, não abstrata. Ele é uma dimensão objetiva da apropriação dos produtos do trabalho humano113.

Podemos atentar, a partir de Marx, que não importa o quão livre, autônomos e independentes pensamos ser, na verdade, a forma de manifestar esse eu é de antemão modulada pelas condições históricas e materiais. São essas condições que determinam o devir da autonomia, liberdade e independência do ser que pensamos. O pensamento é comandado pela estrutura material gerada historicamente por uma determinada forma de trabalho. Se é essa estrutura que comanda a consciência-de-si, então essa consciência, por mais íntima que seja, será sempre estranhamente externa.

Com efeito, Marx, dialeticamente, contém e nega Hegel: ele denuncia a fenomenologia que parte de um ser abstratamente egoísta - propondo um estranhamento inerente entre o sujeito e a consciência-de-si –, ao mesmo tempo que mantém a consciência- de-si como um objeto privilegiado do sujeito, mas não de um sujeito abstrato, senão que de um sujeito histórico, materialmente condicionado.

3 - O sujeito é uma atividade sensível

A concepção de pessoa, em Marx, fica, contudo, incompleta, sem considerarmos que, além de ser um objeto do laço social e um objeto de si próprio, o sujeito é ainda uma

atividade sensível. Significa dizer que o sujeito é a manifestação, em ato, das condições

históricas de sentido; ele é concebido em sua conexão social e em suas condições existentes de vida. Com efeito, em diálogo com o pensamento hegeliano e se posicionando criticamente em 112 “De fato, a superação dialética de Hegel, por Marx, se dá no sentido mesmo de sua radical aplicação à

história concreta dos homens (…). A existência pretérita de fatores determinantes de um conceito, seja ela mais ou menos conhecida pela sociedade em questão (mais ou menos concreta portanto), não significa que

haja oportunidade para uma existência supra-histórica, onde o “absoluto” tivesse lugar”” (Campregher,

1993, p. 29, grifo do original).

relação a Feuerbach, Marx defende que o mundo sensível não é um objeto dado diretamente e sempre igual a si mesmo, se não que é o produto da história e do estado de coisas da sociedade114:

O principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível como prática; não subjetivamente (Marx e Engels, 2007, p. 533, grifos e colchetes do original).

Nesses termos, Marx constrói o que viria a ser a subjetividade constituinte do sujeito de forma bastante complexa. Primeiro, a subjetividade é um produto do laço social que comanda a forma a partir da qual o sujeito assume a si próprio como objeto. De fato, para Marx, as condições históricas e materiais carregam em si aquele devir-a-ser. Se interrompida aí, essa construção encerraria o humano na impotência da ação, como um produto socialmente