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Até aqui buscamos convencer que o indivíduo não é simplesmente a constatação do que viria a ser uma amostra da espécie humana, mas que se trata, isso sim, de uma instituição, isso é, uma noção de pessoa socialmente determinada e compartilhada. O que nos compete, agora, é tentar responder uma pergunta que ficou latente nas nossas elucubrações: qual a relevância de fazer, do indivíduo, um fruto do processo histórico, ao invés de aceitá-lo como um ente dado pela ordem natural?

Pois bem, para avançarmos nessa problemática, é necessário mostrar de que maneira o indivíduo é funcional, instrumentalizado; como ele é um elemento discursivo fundamental que, ao ser assumido, configura uma determinada forma de estar no mundo. De fato, é preciso não só questionar o significado do eu e do outro serem indivíduos, senão que também vislumbrar aquilo que negamos (ou silenciamos) ao encarnarmos essa condição.

São inúmeras as abordagens teóricas que podemos lançar mão para descobrir o que está acortinado nas bases dessa instituição. Definamos, então, que nossa abordagem crítica será fundeada nos trabalhos de Karl Marx (1918 - 1983), tanto porque sua teoria oferece, de forma clara, uma acusação ao indivíduo capitalista, quando porque ela concebe um marco metodológico – a dialética do materialismo histórico - a partir do qual podemos fundamentar nossa proposta de sujeito.

Se nossa apresentação do indivíduo como instituição recorreu às suas origens etimológicas e filosóficas, permitamo-nos agora não ir aos seus rudimentos históricos, mas à sua caracterização contemporânea. Nesse sentido, nada mais icônico do que reproduzir uma declaração feita pela Primeira Ministra britânica Margaret Thatcher em 1987:

“Eu acho que nós temos passado por um período no qual muitas pessoas estão propensas a entender que, se elas têm um problema, é função do governo lidar com isso. “Se eu tenho um problema, eu receberei uma ajuda”. “Se eu sou um desabrigado, o governo deve me propiciar moradia”. Elas estão lançando seus problemas à sociedade. E, você sabe, não existe isso de sociedade. Existem indivíduos homens e mulheres, e existem famílias.”91

A história não nos permite dizer que Marx escreve uma resposta à declaração de 91 Margaret Thatcher em entrevista para a revista Woman’s Own, em 23 de setembro de 1987, nossa tradução.

Thatcher. Mas, de fato, o filósofo alemão estabelece, desde os Manuscritos Econômicos e

Filosóficos (Marx, 2004), uma crítica ao aos fundamentos desse discurso que carrega a noção

de pessoa como um indivíduo autônomo, como unidade última, íntegra e irredutível daquilo que compõe o conjunto humano. Escreve Marx que:

Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a “sociedade” como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social (Marx, 2004, p. 107, grifos do original).

Percebamos que pensar o indivíduo como um ser social, cuja manifestação de vida é realizada simultaneamente com a alteridade, é romper o atomismo que o concebe, é cindi-lo desde a sua gênese. De fato, Marx busca a “essência humana” não naquilo que nos faz inteiros e incorruptos; mas entende que nossa singularidade só pode se estabelecer a partir do outro, no sentido de que somos conformados no conjunto de nossas relações sociais92.

Significa que, assim, Marx diferencia a “essência humana” do que quer que seja a “amostra individual da espécie humana”. A essência humana é aquela que toma o sujeito como dividido por sua condição de excentração social93. Como escreve Campregher (1993, p. 26,

grifo do original): “Em Marx, a pessoa não tem ainda uma história sua, são sujeitos apenas através de outros que não eles mesmos, mas de seus predicados”.

A inversão em relação ao indivíduo do capitalismo é patente. Marx se contrapõe não só à indivisibilidade do indivíduo, mas também confere a essa noção de pessoa - esse ser isolado e autossuficiente – o status de ser uma abstração; enquanto a sociedade, ela sim se faz uma condição concreta e irredutível.

Ora, nesses termos, podemos defender que não somos capazes de saber quem será o eu performatizado pelo sujeito, mas é possível afirmar que é a sociedade, em suas relações materiais, que confere o espaço de possibilidade do sentido de quando, em atos ou pensamentos, manifestamos esse eu. Esse movimento marxiano fica mais claro em A

ideologia alemã (Marx e Engels, 2007), obra na qual Marx e Engels propõem, justamente,

deslocar o debate do plano das ideias puras para o da realidade concreta a partir da qual essas 92 Marx e Engels (2007, p. 534).

ideias são geradas94.

Nesse ponto, encontramos um espaço - que entendermos ser privilegiado – para retornar a Descartes. Queremos dizer que, se fizermos referência ao cogito cartesiano, o que Marx e Engels nos oferecem é a proposta de não tomar a consciência como ponto de partida, mas localizá-la como um produto conformado pelas condições materiais.

Com efeito, nos termos levantados por esse trabalho, o que esses autores estabelecem se configuraria como uma dobra lógica no cogito cartesiano. Isso porque, Marx e Engels não pressupõem a diferença entre a consciência que o sujeito toma de seus objetos e a consciência que o sujeito faz de si próprio. Inescapavelmente, quando o sujeito diz “eu sou”, o que ele faz é mobilizar o “eu” como objeto. Nesse sentido, o materialismo proposto por Marx se estende à problematização da noção de pessoa como “autoconsciência”, como passível do exercício da crítica pura, fazendo questão sobre a condição histórica e material que determina a realidade do que viria a ser o eu, qual apreendido pelas pessoas.

É essa posição que nos permite acarear Marx e Thatcher, isso é, por identificar em Marx a denúncia inversa à da primeira ministra britânica. De fato, Marx denuncia que o indivíduo moderno é uma construção da história e não da natureza. Segundo ele, essa noção de pessoa “é um “Eu” gerado intelectualmente por duas categorias, idealismo e realismo, uma mera existência ideal” (Marx e Engels, 2007, p. 235). No que respeita a leitura aqui proposta do cogito cartesiano, em Marx, não será o ato de pensamento que iniciará o sujeito, pois há algo anterior a ele, uma anterioridade que comanda a forma de sua sujeição:

Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua consciência (Marx e Engels, 2007, p. 94, grifo do original).

Daí se deriva que se o pensamento idealista sobre o indivíduo - que aqui localizamos desde Descartes - alcançou “transformar a história inteira num processo de desenvolvimento da consciência” (Marx e Engels, 2007, p. 74) foi exatamente pelo fato de que essa noção de pessoa abstraiu as condições reais de seu estabelecimento. Nesse sentido, de forma frontal ao indivíduo socialmente incorporado de Davis, o que Marx e Engels tratam em 94 Sader (2007, p. 13).

A ideologia alemã é:

“de explicar as formações ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da consciência não podem ser dissolvidos por obra da crítica espiritual, por sua dissolução na “autoconsciência” [...], mas apenas pela demolição prática das relações sociais reais [realen] de onde provêm essas enganações idealistas” (Marx e Engels, 2007, p. 43, colchetes do original).

Localizar o indivíduo como uma dessas “enganações idealistas”, vale dizer, não significa configurá-lo como um engodo da mente ou um erro na compreensão do que viriam ser as pessoas. Antes, essa concepção de si e do outro é funcional, no sentido de que ela é necessária à organização social. Ela compõe uma caracterização do humano, uma abstração que, por conter e negar sua essência social, reproduz a lógica material e histórica na qual está inserida95.

Nesse sentido, a concepção de si e do outro enquanto indivíduos tanto só pode partir da universalização de uma ideia historicamente determinada - que nasce no seio de determinadas condições materiais – quanto é uma abstração essencial para a reprodução do laço social96. O indivíduo é, sim, uma das formulações nebulosas na cabeça dos sujeitos, mas é

uma das formulações às quais Marx se refere como “sublimações necessárias de seu processo de vida material” (Marx e Engels, 2007, p. 94).

O que queremos fazer saliente é que a noção de pessoa dos idealistas e liberais representa a aparência97 do humano na organização social capitalista. Ela é um elemento que

95 Em seus termos, escreve Lucien Sève: “Em que consiste, então, a armadilha da abstração? Em que a

utilização de um conceito geral (por exemplo “o homem”) para designar um conjunto de objectos particulares (nesse caso, os “indivíduos humanos”), utilização tão eventual que parece evidenciar e realçar a lógica menos contestável, arrasta sub-repticiamente – caso não se esteja atento – as consequências teóricas capitais e perfeitamente infundadas. Com efeito, ao abstrair o conceito (o homem) a partir de objetos particulares tais como são captados pelos sentidos (os indivíduos), estamos já na via que conduz, salvo sobressalto crítico, às atribuições das propriedades gerais que o conceito designa (as “próprias” do homem) aos próprios objectos que são o ponto de partida da abstração (nesse caso, os indivíduos considerados separadamente)” (Sève, 1975, p. 241, grifos subtraídos).

96 Marx e Engels (2007, p. 49).

97 O termo “aparecer” é constante na obra de Marx (Manuscritos). Influência do pensamento hegeliano, ao

clamar pela aparência, Marx denota a diferença desta para a essência. A diferença entre aparência e essência estabelece que a percepção e a consciência são atravessadas por um processo de subjetivação dos sujeitos, processo esse modulado e preenchido pela história. Ainda, segundo Zizek (2003, p. 249): “A aparência implica que há algo por de trás dela que aparece através dela; encobre uma verdade e, mediante ao mesmo gesto, dá um presságio dela; oculta e revela simultaneamente a essência atrás de sua cortina. Mas o que há escondido atrás da aparência dos fenômenos? Precisamente o fato de que não há nada que ocultar. O que se oculta é que o ato mesmo de encobrimento não encobre nada”.

resulta do saber – e que reproduz o saber – desse laço social98. É justamente por essa

conformação que o indivíduo não é entendido como construção histórica, mas como um princípio indelével, empírico e universal. Dessa forma, o que chamamos de institucionalização do indivíduo atua por se configurar como uma regra de pensamento anterior ao pensamento, ou seja, uma determinação idealista que antecede, condiciona e reproduz a razão de ser capitalista.

Não obstante, - e Marx e Engels nos parecem claros, nesse sentido - não nos cabe lutar contra essa forma de consciência de si, o indivíduo, como se ela constituísse uma “ilusão da consciência”, de modo a nos livrarmos de fantasias e elevarmos a consciência de si ao posto de uma “consciência humana” (Marx e Engels, 2007, p. 84). Esse movimento, novamente, retorna à concepção de autossuficiência da consciência, o que atuaria por conservar a essência histórica e material da organização social capitalista. Nisso Marx e Engels embasam a acusação que fazem aos “jovens hegelianos”, a acusação de que esses “são os maiores conservadores” (Marx e Engels, 2007, p. 84) por pensarem nos termos da mudança em direção à consciência humana elevada e livre de ilusões.

Essa crítica marxiana está no bojo de uma crítica mais ampla à filosofia alemã que pensa a possibilidade de um raciocínio puro, ideal, de uma consciência capaz de se desfazer de pressupostos. Em resposta a isso, Marx e Engels defendem o contrário, isso é, que se deve observar que a razão é subordinada e, nesse sentido, carrega pressuposições anteriores a ela. O materialismo, assim, se configuraria pela assunção epistemológica das condições mais elementares da vida humana: os pressupostos históricos e materiais aos quais estamos, de antemão, sujeitados.

Esse modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos. Ele parte de pressupostos reais e não os abandona em nenhum instante. Seus pressupostos são os homens, não em quaisquer isolamentos ou fixação fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob determinadas condições. Tão logo seja apresentado esse processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas (Marx e Engels, 2007, p. 94 e 95). É nesses termos que podemos encerrar nosso resgate crítico do indivíduo enquanto noção de pessoa. Em suma, o que temos como resultado é que ele se trata de uma instituição 98 O saber, aqui, se estabelece como uma forma específica de saber, a partir de uma lógica material particular.

histórica, formada filosoficamente (e sintomaticamente) na transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista. Enquanto instituição, o indivíduo é um ponto de partida do pensamento de si e do outro na modernidade, ele se configura como um elemento de inércia psicológica conservantista crucial, uma vez que condiciona nossa forma de estar no mundo e, dela, o mundo no qual estamos. Romper com essa narrativa de naturalidade do indivíduo, com essa concepção ideológica de seu empirismo é, portanto, uma forma de transformar a sociedade.

As tarefas que doravante nos surgem são as de formular uma abordagem de sujeito que seja compatível com o materialismo histórico marxiano e a de avançar sobre a sujeição capitalista a fim de localizar, dentre suas várias condições, aquela que ideologicamente nos institui como indivíduos.

O que propomos, no próximo, capítulo é, portanto, a formalização dessa abordagem de sujeito. Nosso passo inicial, vale dizer, consiste em permanecer em Marx, a fim de levantar os elementos necessários para dar conta da seguinte interrogação: Se os sujeitos não devem ser pensados como indivíduos na Economia Política marxiana, como esses sujeitos têm de ser, então, caracterizados? Munidos dessas considerações, iniciaremos a formulação de nosso sujeito. Mais adiante, então, no capítulo 4, retornaremos ao indivíduo, não mais para colocá-lo no lugar de questão, mas para afirmar, justamente, sua importância como um elemento de consistência interna do laço social capitalista. Com esse horizonte, sigamos.