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As ciências econômicas: as guardiãs do indivíduo.

Em Porque a Economia não é uma Ciência Evolucionária: Uma hipótese

antropológica a respeito das origens cristãs do Homo Economicus, Manuel Ramon Luz49

mostra como o conceito lockeano de indivíduo está nas bases do que usualmente chamamos de

homo economicus, especialmente por sua influência no pensamento smithiano. De fato, a

Economia Política clássica, desde Adam Smith (1723-1790), conforma a institucionalização do indivíduo, carregando nele todos os significantes de átomo indivisível, subjetividade desengajada e consciência naturalmente autônoma.

Em Smith, contudo, também se faz mais exacerbada a parcela newtoniana daquela dualidade fundante do indivíduo moderno. Significa dizer que o pai da economia avança em fazer da natureza objetiva algo ainda mais significativo na concepção do que seria a noção de pessoa como um indivíduo. Esse avanço, contudo, não é trivial, pelo fato de que ele esbarra em um limite paradoxal. Afinal, como aumentar a influência da natureza objetiva sobre um indivíduo que se expressa por meio de uma razão subjetiva e livre?

Comecemos por localizar o sentido do avanço do indivíduo smithiano em direção a Newton.

Newton é o herói do Iluminismo. Sua realização foi a de ter explicado toda a gama de fenômenos naturais, terrestres e celestiais, usando apenas alguns princípios simples (leis do movimento mais gravidade). Tornou-se um desafio emular sua obra, de realizar nas ciências morais ou sociais aquilo ele tinha realizado para as ciências naturais. (Berry, 2006, p. 113, apud Luz, 2013, p. 70)

Para carregar mais o indivíduo com as cores do mundo newtoniano era necessário, 49 Luz (2013).

então, ir além na tarefa já iniciada por Locke de constituí-lo como parte da natureza. O cômputo da complexidade dos direitos naturais, da razão autorreflexiva, da liberdade privada e da mecânica de interesses deveria resultar, de alguma forma, em um indivíduo simples e bem- comportado, em uma consciência livre, mas tão previsível quanto os átomos da ordem natural. O caminho para tanto foi o de reduzir toda essa complexidade a apenas um interesse, o interesse econômico. Por esses meios, “[o] indivíduo monolítico interessado de Smith representaria uma ruptura com aquele governado por um sem número de paixões e interesses de seus antecessores” (Luz, 2013, p. 72). Surgia, assim, o homo economicus, um indivíduo bem-comportado e naturalmente previsível, uma vez que é governado por uma lei natural e interna: o interesse.

Munido desse interesse exclusivo, em meio à contribuição lockeana sobre as relações entre propriedade privada e o direito à autoconservação, Smith pode reduzir a ordem social a uma ordem natural e eminentemente mercadológica. Isso porque, a interação dos indivíduos levaria ao estabelecimento de relações mercadológicas de troca, relações essas que, de acordo com o interesse econômico das partes, majoraria os ganhos mútuos e, assim, ampliaria as condições de bem-estar de cada um. A propensão natural à troca, movida pelo interesse, é o que teria aberto caminho, graças expansão do mercado, para a divisão do trabalho e para a especialização50.

Nesse sentido, podemos dizer, qual Foucault, que o lugar de verdade do liberalismo não é a cabeça dos economista, mas o mercado. Esse mercado surge como uma coisa que obedece aos mecanismos naturais, mecanismos esses cuja espontaneidade e complexidade acarreta àquele que tenta alterá-los apenas o ônus da desnaturalização. Da naturalização do mercado surgem os preços naturais, como fruto dessas relações espontâneas e adequadas. Nesse sentido, a teoria econômica se permite indicar “o que deve ser revelador de algo que é como uma verdade” (Foucault, 2008, p. 44).

Essa é a primeira apropriação promovida pelas ciências econômicas da noção de indivíduo. É de se notar que se trata de uma abordagem que reduz, ainda mais, o que viria ser a pessoa no laço social. De fato, o que temos é que o indivíduo é, acima de tudo, um agente interessado que estabelece suas relações com o que quer que venha ser o outro e nos termos de um mercado de interesses.

A questão que se coloca agora é: de que maneira é possível formalizar a direção tomada pelos interesses individuais, mesmo que eles estejam restritos à esfera econômica? Queremos dizer que, se o indivíduo é uma entidade bem-comportada, como abordar a manifestação de seus interesses na efetivação das trocas? Pois bem, seguindo na narrativa da Economia, verificamos que a resposta para essas perguntas é um aprofundar reducionista. Ela aponta para os desenvolvimentos da economia utilitarista e marginalista da transição do século XIX para o século XX, desenvolvimentos esse que tem na teoria da escolha a marca de uma importante guinada ontológica na teoria econômica mainstream.

Contudo, para não perdermos o fio da meada da nossa análise crítica, vamos sumarizar os já observados elementos constitutivos do indivíduo, antes de adentrarmos nos avanços propostos pela teoria da escolha.

Por um lado, o indivíduo é uma razão subjetiva e interior, localizada entre o princípio de “pensar e, logo, ser” e a mediação do “pensar para poder ser”. De qualquer forma, esse indivíduo é uma consciência potencialmente livre, independente e autônoma, capaz de submeter o que lhe é exterior como objeto a ser investigado, a ser domado de forma isenta e privada, de acordo com a mecânica de seus interesses e paixões.

E a paixão mais importante do indivíduo é sua vida. É por essa condição vital que ele, naturalmente, luta. E a luta aqui é, exatamente, o ato de submeter a natureza, de se apropriar dos objetos externos para que se façam meios particulares de autoconservação. Essa apropriação natural e inescapável é o que confere ao indivíduo o direito à propriedade, porque ele só pode ser dono de si, confirmando sua liberdade e integridade, se for proprietário exclusivo (e excludente) dos objetos que, para viver, ele esgota. Mais do que isso, essa propriedade é ainda mais legitimada na medida em que for fruto de seu trabalho, do esforço de transformação da natureza para saciar suas carências.

Por outro lado, o indivíduo também é aquele átomo indivisível, a maior integridade possível, a partícula objetiva e bem-comportada da natureza newtoniana. Enquanto tal, tanto ele quanto suas interações com outros indivíduos podem ser modeladas, previstas e reduzidas a leis simples e homeostáticas. E a forma como a Economia Política clássica concilia a consciência livre com a objetividade restrita do indivíduo é reivindicando que a mecânica de suas paixões pode ser reduzida a um único interesse, o interesse econômico. Então o indivíduo

é uma consciência livre que autonomamente busca a autoconservação de seu corpo pelo atendimento de seus interesses econômicos, tendo o trabalho e a troca mercadológica como os meios para tanto.

É intrigante como esse movimento de estabelecimento da noção de pessoa como indivíduo aponta para aquela origem quase inorgânica, o atomo grego, o indivisível. Ele é reduzido mais a mais a uma partícula. O fascínio da mecânica de Newton, nesse sentido, parece aumentar o imperativo de fazer do humano esse elemento íntegro regido pelas leis da natureza e que, portanto, pode ser expresso por equações e condições simples. Contudo, reduzir o comportamento desse indivíduo ao imperativo do interesse econômico não alcança encerrá-lo no mundo newtoniano. Pois, mesmo que as inclinações últimas sejam em direção aos bens que garantem o bem-estar, mesmo que tenhamos a propriedade, a divisão do trabalho e as trocas como formas de se ampliar as condições de usufruto material, como explicar os motivos de se trocar um bem específico A por outro também específico B? Não pode o indivíduo ter interesse em ambos? Não podem os dois bens terem influência positiva sobre o aumento do prazer individual?

Percebamos que essas questões não são relevantes apenas à abordagem econômica do indivíduo. Na verdade, a mecânica de interesses e a apropriação como meio para a autoconservação são condições presentes já na obra lockeana e estão diretamente ligadas as necessidades da sociedade burguesa de legitimar sua visão de mundo. Uma vez que a Economia Política clássica atua por reduzir esses interesses aos econômicos, o que se tem é a proposta de se conformar a consciência livre a uma racionalidade econômica, fincada na busca privada de bem-estar.

Nesse sentido, se a racionalidade implica em interesses cerceados pela alocação de recursos, como quer a economia, então esses interesses podem ser narrados como preferências. Essas preferências, por sua vez, acabam por se manifestar empiricamente nas escolhas individuais. Dessa forma, tenta-se alcançar uma lógica simples e objetiva que acomode toda a subjetividade desprendida do indivíduo, uma vez que as escolhas carregariam consigo a marca daquela consciência livre que busca a autoconservação.

Essa seria a razão das escolhas serem racionais e é nesses termos que se compreende por que os agentes das ciências econômicas convencionais acabam reduzidos a

essa racionalidade51. Conhecer o indivíduo, por esse marco, passa a ser conhecer suas preferências particulares, tomando-o como uma psicologia autônoma e privada52, uma

personalidade alocadora de recursos escassos. Se quisermos dobrar o cogito a essa lógica, o que teríamos é o indivíduo como o sujeito do enunciado “prefiro, logo, escolho”.

Tocamos aqui em outro ponto crucial para a compreensão e difusão da noção de indivíduo pela teoria econômica. É a partir do paradigma da escolha, no fim do século XIX, que a economia liberal passou não somente a se oferecer como suporte do que seriam as ações individuais, mas também, em movimento contínuo, concebeu a possibilidade de que se ultrapassasse a dualidade estabelecida por Descartes e Locke (e mantida por Smith) entre a subjetividade e o mundo.

Quando dizemos que essa economia se ofereceu como suporte das ações individuais nos referimos ao fato de que, sob a forte guarida do discurso econômico, a escolha se tornou “uma lógica geral que pode, para todos os fins, ser aplicada a qualquer tipo de agente” (Davis, 2003, p. 26)53. Para tanto, essa economia estabelece as seguintes condições:

1. Os indivíduos são os únicos entre todas as possíveis unidades de análise na vida econômica porque seu comportamento sozinho pode ser explicado em termos de escolha.

2. As escolhas somente podem ser explicadas por referências às condições internas do indivíduo, isso é, seus gostos e desejos privados, porque essa é a base por meio da qual os indivíduos discriminam entre suas opções.

3. Os indivíduos têm a capacidade de discriminar entre suas opções porque eles aplicam princípios marginalistas.

4. Os princípios marginalistas explicam os mercados porque eles são considerados na determinação dos preços. (Davis, 2003, p. 25 e 26)54.

51 No limite, observa-se nas interpretações correntes, sobretudo na economia, a existência de um indivíduo

isolado “e que estaria constituído por necessidades biológicas e interpretações mentais” (Perez, 2016, p. 176). Segundo essa interpretação, as ações desses indivíduos - que, em termos econômicos, poderiam ser pensadas como escolhas individuais - seriam uma função dessas necessidades e representações.

52 Segundo Tomšič (2015, p. 85): “A ego-psicologia e as várias outras formas de psicoterapia permanecem no

quadro ideológico capitalista e adotam abertamente a subjetividade centralizada do liberalismo econômico – a saber, uma subjetividade que é consolidada em torno da posse egoísta de interesse privado, exatamente como no contexto da cognição, em que o sujeito se consolida em torno de consciência ou intencionalidade auto-transparentes”. Sobre isso, Lacan reclama: “se ouvirem falar da função de um eu autônomo, não se deixem enganar: trata-se apenas do eu do tipo de psicanalista que o espera na Quinta Avenida. Ele os adaptará à realidade do seu consultório” (Lacan, 2003, p. 352).

53 No original: “all-purpose logic that could be applied to any sort of agent”

54 1. Individuals are unique among all the possible units of analysis in economic life because their behavior

alone can be understood in terms of choice. 2. Choice can only be explained by reference to individuals’ inner states, that is, their private tastes and desires, because this is the basis on which individuals discriminate among their options. 3. Individuals are able to discriminate among their options because they apply marginalist principles. 4. Marginalist principles explain markets because they account for the

Sob tais condições, a visão padrão do indivíduo econômico passa a ser a de um escolhedor soberano. O ato empírico de escolher passa a ser perfeitamente justaposto ao ser, ele é a manifestação objetiva da subjetividade do indivíduo. Essa conformação do humano, aliás, se extremamente formalizada pela economia, supera muito as fronteiras desse campo, se tornando, mesmo, parte integrante da institucionalização da noção de pessoa capitalista. Não espanta que slogans como “nós somos as escolhas que fazemos” ou “nossas escolhas nos definem” sejam tão bem aceitos nos tempos contemporâneos.

E, nessas condições, a dita ultrapassagem da dualidade de Descartes e Locke se dá porque a teoria da escolha, após estabelecida, acaba por progressivamente esvaziar a teoria econômica de toda e qualquer referência aos fins subjetivos do indivíduo, ao ponto de reduzi- lo completamente a funções objetivas:

A concepção de indivíduo de Locke, embora seja problemática, não deixa dúvidas de que estamos lidando com indivíduos humanos. Não apenas Locke define a individualidade como interioridade subjetiva em contraste com o mundo da natureza - não ocupado por indivíduos e governado por leis naturais -, mas ele vai além, identificando a interioridade subjetiva à psicologia humana. A evolução do neoclassicismo no mainstream econômico, todavia, elimina essa brecha para a psicologia humana e, dessa forma, inadvertidamente elimina a base lockeana para tratar dos seres humanos como indivíduos. (Davis, 2003, p. 42)55

Um dos maiores representantes da formalização econômica da escolha é, certamente, Paul Samuelson (1915 - 2009)56. Em sua missão de livrar a ortodoxia econômica

da necessidade de compreender as intempéries por de trás das ações individuais, da caixa-preta que se tornou aquela subjetividade desprendida, Samuelson, pelo conceito das preferências

reveladas, acabou por conter e negar essa subjetividade, encerrando-a nos quadros daquilo que

a contrapunha, ou seja, a objetividade da natureza.

O conceito de preferências reveladas é, exatamente, o que estabelece que os

determination of prices.

55 “Locke’s conception of the individual, problematic though it is, leaves no doubt in our minds that we are

dealing with human individuals. Not only does Locke define individuality as subjective inwardness and contrast it with a non-individual-occupied, law-governed world of nature, but he goes on to identify subjective inwardness with human psychology. The evolution of neoclassicism into mainstream economics, however, eliminated this role for human psychology and thereby inadvertently eliminated Locke’s basis for talking about human beings as individuals.”

indivíduos devem ser compreendidos a partir de suas escolhas – o que no capitalismo significa o exercício mercadológico da troca. Assim, por exemplo, dado sua restrição orçamentária e os preços relativo entre celulares e violões, se o agente optou por comprar um celular, nada mais pode ser dito sobre ele a não ser que, nessas condições, ele prefere celulares a violões. Não é necessário inquirir os em-nome-de de sua preferência. Esse questionamento significaria cindir o indivisível, atentar contra sua integridade. Sobre esse ente livre e autônomo, só nos resta tomar nota de suas opções, conjecturando que elas, no limite, traduzem a racionalidade dos interesses econômicos. É como se a relação entre mercadorias fosse o espaço de revelação de

quem os indivíduos são.

Alcança-se, nesses termos, desmentir o dualismo implicado na interioridade subjetiva de Descartes e Locke, de modo a se estabelecer uma visão de mundo em puros termos newtonianos57. Isso explica por que, em geral, na teoria econômica muito pouca

atenção seja dada tanto à teoria do indivíduo quanto às proposições mais básicas que explicariam a individualidade. Esse homo economicus acaba metodologicamente ultrapassado e humanamente apagado, reduzido, mesmo, à teoria padrão de racionalidade e, quando muito, a desvios bem-comportados desta, qual o caso da economia comportamental58.

Paulani acrescenta, ainda, um fator importante ao reducionismo negligente da racionalidade econômica, um avanço no método e no discurso econômico proposto por John Stuart Mill (1803-1873), a saber, a de que só considerando os indivíduos como seres que, por condição de sua própria natureza, preferem, em todos os casos, uma riqueza maior a uma riqueza menor é que a economia pode reivindicar sua completa autonomia em relação às demais ciências sociais.

“Se assim não for, se esses fatores (culturais, institucionais, históricos) são determinantes de cada um dos fenômenos sociais em particular, então implica em erro partir de uma suposta natureza humana e, erro talvez ainda maior, partir de uma única “lei da mente” para constituir o homem econômico que embasa a ciência da economia política” (Paulani, 2005, p. 51)

57 Fortemente matematizada, o conceito de indivíduo tem se alterado também na medida em que as tecnologias

matemáticas são cada vez mais utilizadas na teoria econômica. Conforme a matemática deixa de ser uma ferramenta para resolução dos problemas econômicos e passa a fundamentar o ponto de partida de qualquer investigação em economia, os indivíduos acabam por somente poderem ser tratados como objetos matemáticos e a racionalidade humana pode somente ser um maquinário de escolha comandado por um cálculo de custo-benefício.

Com efeito, a economia liberal reivindica para si a função de ser a promotora de uma racionalidade absoluta. Ela aponta para uma verdade para qual toda a razão, em seu exercício livre, deve tender. Na medida em que o discurso econômico – vale dizer, o discurso capitalista - perverte ou elimina os demais discursos sociais, o racional passa a ser, cada vez mais, que os indivíduos mercadologicamente maximizem seu bem-estar e minimizem seu sofrimento; que esses indivíduos, em todo casos, prefiram mais riqueza a menos riqueza.

Esses imperativos, aliás, já figuram em tal narrativa de objetividade e são largamente entendidos como pertencentes à natureza humana, propagados como um direito natural básico e individual – o da autoconservação -, de modo que não nos cabe fazer maiores juízos de valor, não convém conferirmos ideologismo, moralidade ou historicidade ao que simplesmente é o racional. Cabe-nos conformarmos e nos realizarmos por meio deles.

Na próxima seção, resgatamos uma crítica a esse indivíduo reduzido e subsumido na objetividade da natureza. A crítica em questão é a de Friedrich Hayek (1899 – 1992), integrante da Escola Austríaca e um dos pensadores (neo)liberais mais importantes do século XX. É importante destacarmos que a crítica hayekiana é substancialmente diferente daquela com a qual esse trabalho se fia. Pudera, o pensamento de Hayek é um dos que mais influencia a extrema direita ultraliberal hodierna. Entretanto, não deixa de ser provocante tanto a forma de sua objeção ao individualismo da teoria ortodoxa quanto o fato de que, mesmo com a importante influência política, a Escola Austríaca não componha o mainstream econômico.