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Fetichismo: o modo de sujeição capitalista

O primeiro capítulo de O Capital nos serviu de guia nessa nossa jornada de investigação das condições do sujeito do capitalismo. Nesse ponto da nossa abordagem, atingimos o último tema tratado por Marx em tal capítulo, um tema que, de fato, não poderia nos passar incólume, tendo em vista que trata de um aspecto central da subjetivação capitalista. Nos referimos ao fetichismo da mercadoria.

na dialética dos significantes capitalistas, a série de contenções e negações de um conteúdo a outro são moduladas por uma operação de sentido específica, o fetiche. Após termos analisado, parte a parte, o movimento de contenção e negação das formas anteriores, entendermos ter condições tanto para vislumbrar de forma ampla a dimensão dessa lógica fetichista, quanto para discutir seus aspectos mais centrais.

O fetiche é o tecido que une a essência e a aparência das relações sociais no capitalismo. Ele traduz “o modo de existência das relações de produção capitalistas, sua forma social objetiva” (Artous, 2006, p. 21, apud Fleck, 2012, p. 155, nota 9). E a manifestação mais imediata do fetiche é a de que as formas mercadoria e dinheiro aparecem como atores sociais, ao invés dos sujeitos, como se tivessem, elas mesmas, natureza e personalidade. Nesse sentido, é bastante representativo o excerto de Marx (1988, p. 70):

Como valor de uso, não há nada de misterioso nela [na mercadoria] (…). A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante a mesa continua sendo uma madeira, uma coisa ordinária física. Mas logo ela aparece como uma mercadoria, ela se transforma em uma coisa fisicamente metafísica. Além de se pôr com os pés no chão, ela se põe sobre a cabeça perante todas as outras mercadorias e desenvolve de sua cabeça de madeira cismas muito mais estranhas do que se ela começasse a dançar por sua própria iniciativa. (Marx, 1988, p. 70, grifo nosso).

De fato, a negação fetichista, como modo de operação dialética do sentido capitalista, proporciona que as mercadorias e o dinheiro apareçam como entes objetivos que estabelecem autonomamente seus termos de câmbio, não com um laço social, mas como um laço mercadológico. É que, levada à totalidade, a separação entre os detentores dos meios de produção daqueles da força de trabalho, o assalariamento e a intensa divisão das tarefas produtivas fazem com que a produção e a troca capitalistas desencadeiem condições que escapam aos trabalhadores, afigurando-os como simples ferramentas sistêmicas.

O fetichismo da mercadoria subordina todas as relações sociais ao contrato econômico, que parte da liberdade e da igualdade, cujo caráter e alcance abstratos é determinado pela propriedade (a venda e compra de força de trabalho) e a posse de interesse privado (lucro, meios de subsistência) (Tomšič, 2015, p. 194)206.

206 “Commodity fetishism subordinates all social relations to the economic contract, which departs from

freedom and equality, whose abstract range and character is determined by property (the buying and selling of labour-power) and the pursuit of private interest (profit, means of subsistence).”

Nesse processo o dinheiro joga um papel principal, pois é ele que, como signo, concretiza a denegação fetichista, promovendo uma solução de compromisso que elide as relações humanas por trás da mercadoria. Nesses termos que se justifica a afirmação de Žižek (1996, p. 308) de que “o aspecto essencial do fetichismo da mercadoria não consiste na famosa substituição dos homens por coisas [...], mas, antes, num certo desconhecimento da relação entre uma rede estruturada e um de seus elementos [o dinheiro]”. Žižek desloca o fundamento do fetiche da relação entre coisas para o desconhecimento estrutural. Nesses termos, o fetiche se constitui como uma negação que contorna e consolida uma posição incógnita do laço social. A terceira condição do fetiche (além da manifestar a substituição dos sujeitos por coisas e ter seu fundamento em um desconhecimento estruturante) é que ele não se produz na ordem da consciência, mas na da ação. De fato, a aparência do fetiche funciona pela construção “eu sei, mas finjo que não sei”: os sujeitos sabem que a forma mercadoria implica em uma troca de desiguais, mas contornam essa desigualdade, como se ela não gerasse estranheza; sabem que o mercado é uma criação humana, e mesmo assim tratam-no como uma entidade autônoma e caprichosa; os sujeitos também sabem que a forma dinheiro é um elemento abstrato que, em concreto, não tem valor algum, mas mesmo assim, organizam toda sua vida, inclusive enquanto sociedade, em torno dessa abstração.

Queremos dizer que a série de negações capitalistas não são incognoscíveis. De fato, as pessoas sabem – ou podem tomar a consciência dessas condições – mas contornam esse saber, agem desmentindo esse saber, como se não o soubessem. Seguindo Tomšič, no capitalismo, podemos reescrever aquela máxima fetichista como “eles sabem, mas mesmo assim fazem” (Tomšič, 2015, p. 58)207. A essência que sustenta a realidade dessa aparência é a

de que, fingindo não saber, os sujeitos reproduzem, em ato, o que efetivamente não sabem: o arcabouço significante que possibilita o capital. Como escreve Marx:

Em sua perplexidade, pensam os nossos possuidores de mercadorias como Fausto. No começo era ação. Eles já agiram, portanto, antes de terem

pensado” (Marx, 1988, p. 80, grifos nossos).

O outro lado da moeda do fetiche da mercadoria, vale dizer, é fazer parecer que, no pano de fundo das relações sociais, há a possibilidade de uma posição não alienada, uma posição a partir da qual “seria possível conhecer o erro que determina o fetiche da mercadoria 207 “they know it, nevertheless they do it”.

– precisamente uma posição de um ego, de uma consciência não dividida e livre de conflitos”(Tomšič, 2015, p. 92)208.

Ao acusar o fetichismo da mercadoria, o que propomos aqui, é reafirmar a posição lacaniana de suspeição do cogito cartesiano. O sujeito não se realiza a partir do pensamento, mas as condições do modo de produção, dessa atividade, é que conformam o espaço do pensável no laço social. O pensamento, na verdade, é aquele que é condicionado pelo ato histórico e, por força disso, não é possível concebermos uma consciência que não seja alienada, nem no capitalismo, nem fora dele.

O fetiche, então, é a modalidade da denegação capitalista, é a solução de compromisso das contradições do capital, solução essa que aparece como um fingir-não-saber para daí agir no modo “como-se-fosse”. Dessa forma, se oculta e reproduz a essência capitalista. E é por meio desse ato, que se estabelece o arranjo significante material que, por sua vez, determina as condições do pensável:

[…] a ilusão não está do lado do saber, mas já está do lado da própria realidade, daquilo que as pessoas fazem. O que elas não sabem é que a sua própria realidade social, sua atividade, é guiada por uma ilusão, por uma inversão fetichista. O que desconsideram, o que desconhecem, não é a realidade, mas a ilusão que estrutura sua realidade, sua atividade social. Eles sabem muito bem como as coisas realmente são, mas continuam a agir como se não soubessem. (Žižek, 1996, p. 316)

Por isso o fetiche capitalista é uma forma de perversão, pois consiste, exatamente, em perverter algo, o dinheiro, para pôr no lugar dos significantes contidos e negados no inconsciente dos sujeitos, não como uma distorção da consciência, mas como resultado de um ato que conforma um espaço possível de expressão do devir consciente.

No entanto, na perversão fetichista, se todo o processo de ocultação de um determinado significante é omitido ao sujeito, não lhe é omitida uma certa estranheza da posição que o objeto substituto assume209 , de modo que é por isso a sua máxima: eu sei... mas

finjo eu não sei. O dinheiro, nesse sentido, é exatamente isso, um saber-e-fingir-não-saber, se 208 “it would be possible to cognise the mistake that determines commodity fetishism - precisely the position of

an unsplit and conflict-free ego or consciousness”. Essa é, precisamente, a posição da Economia Política, dos

psicanalistas pós-freudianos denunciados por Lacan, e do marxismo científico. “Homo oeconomicus, ego forte, e consciência de classe são conceitos e variações ideológicas da mesma tentativa de mistificar a divisão subjetiva produzida pelo discurso de autonomia” (Tomšič, 2015, p. 92, nossa tradução).

bem que expandido largamente na sociedade. Por isso Lacan afirma que a moeda é o fetiche por excelência210 .

Na dialética marxiana do primeiro capítulo de O capital, o fetiche é a síntese, a forma de existência do capitalismo e no capitalismo. Ele modela as relações econômicas e sociais das pessoas. É a partir de sua lógica que se articula, para os sujeitos, a possibilidade do pensável e sensível nesse laço social.

Aliás, esse condicionamento material das possibilidades de experimentar a existência aparece em Marx, mesmo antes de O Capital. Na Ideologia alemã, Marx já propunha que algo como a paixão reside no ser, na vida, no desenvolvimento empírico e na manifestação vital do sujeito. Dessa forma, a paixão depende das condições materiais do mundo. Se essas condições do mundo permitem ao sujeito somente um desenvolvimento unilateral, a suprassunção de uma única qualidade às custas de todas as demais, então o desenvolvimento desse sujeito se encontra, nesses termos, encerrado, condicionado211:

Não há pregação moral que ajude. E o modo como se desenvolve essa qualidade preferencialmente favorecida depende, por sua vez, de um lado, do material de formação que lhe é oferecido, de outro lado do grau e do modo como as demais qualidades permanecem reprimidas. Justamente pelo fato de que, por exemplo, o pensar é o pensar deste indivíduo bem determinado, permanece ele como o seu pensar determinado por sua individualidade e pelas condições em que vive [...] (Marx e Engels, 2007, p. 257).

O que capitalismo faz é, justamente, promover esse desenvolvimento unilateral e oferecer essa única qualidade às custas de todas as demais. E os meios pelos quais isso se processa é pela conformação dessa ordem simbólica na qual a organização material dos significantes constrói uma narrativa que dá sentido aos sujeitos, objetos e terceiros. Trata-se de um processo de desenvolvimento e deformação do poder da capacidade de significar que os próprios homens foram criando no desenvolvimento histórico e que, no final, implica uma transformação, uma metamorfose, uma formação de subjetividade (Rozitchner, 1989 p. 124).

O fetichismo da mercadoria, assim, é sustentado por uma transformação específica do desejo na implementação da visão de mundo capitalista que conforma a realidade social e subjetiva. Mais do que isso, o que Marx evidenciou na formulação do fetiche capitalista é que 210 Lacan (2008, p.277).

a negação das condições lógicas da existência do capital - ou seja, de um determinado arranjo simbólico inconsciente - é fundamental para que a organização desse laço social se mantenha e se reproduza. Trata-se de uma negação da negação, uma vez que o fetiche é a forma de o capital desmentir a série de negações que o possibilita.

A gravidade dessa situação, vale dizer, é bem representada pela vacuidade do sentido do dinheiro. É pela negação da negação que, como vimos, o dinheiro introduz a condição aparente de um exercício de poder infinito. Ora, como o dinheiro é um eterno meio de poder, o sujeito efeito da significação capitalista sempre tem sua potência iminentemente inacabada, seu devir é o de estar sempre na metade do caminho. Essa objetivação, logo, é uma positivação, é a renegação da negatividade. Assim, “[o] capital se torna uma descrição privilegiada para uma vida espectral sem negatividade” (Tomšič, 2015, p. 36)212.