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A indiferença como igualdade: A igualdade capitalista é a narrativa que

O indivíduo: indiferença e anistoricidade

Condição 4 A indiferença como igualdade: A igualdade capitalista é a narrativa que

aparece para acomodar a indiferença necessária à troca. É uma ideologia calcada na negligência da diferença histórica. Assim, indivíduos iguais são indivíduos que desmentem

as condições materiais que privilegiam, excluem e subordinam. A indiferença é o devir

necessário da igualdade capitalista.

A condição mais direta da negação do trabalho individual pelo trabalho abstrato é a de que só se pode sustentar subjetivamente uma sociedade que se organiza em torno dessa gelatina de trabalho humano indiferenciado, se se estender tal indiferença aos trabalhadores. Afinal, o que caracteriza os sujeitos enquanto trabalhadores, senão as qualidades de sua atividade? Na medida em que o capitalismo, então, tem como pressuposto lógico a indiferenciação do tempo de trabalho para a transformação de valores de uso em valores de troca, ele acaba por implicar que simbolicamente se construa um espaço de sentido de indiferença aos trabalhadores. Esse efeito, inclusive, é bem captado por Marx (1988, p. 47):

Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto o produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se abstrairmos o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou cadeira ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as quantidades sensoriais se apagaram. Também já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato.

Forçosamente, então, no capitalismo, a possibilidade de se trocar bens desiguais só pode se dar pela negligência dessa desigualdade e assunção de uma medida sistêmica e abstrata: o tempo de trabalho socialmente necessário à produção. Mas fazer indiferença ao trabalho também é fazer indiferença ao trabalhador. Esse movimento de indiferença tem de ser sustentado por uma articulação subjetiva que contenha, mas negue o fato de que a troca acontece entre bens desiguais produzidos por trabalhadores desiguais.

entre os sujeitos que produziram as mercadorias devem ter seu sentido elididos, subvertidos à lógica de uma indiferença que se difunde pela subjetividade social (Silveira, 1989, p.57). Por esse arranjo simbólico, a possibilidade de identificação de si e do outro como sujeitos fundamentalmente díspares, historicamente determinados e socialmente dependentes ocupa um lugar iminentemente crísico. Ora, na mesma medida em que a sociedade capitalista expande sua lógica ela alastra consigo o devir da indiferença dos seus sujeitos.

Uma das figuras mais sintomáticas e que mais atualiza os efeitos subjetivos da indiferença capitalista é a construção em torno do que viria a ser a ideia de “igualdade” nesse laço social. A igualdade que se observa, inclusive na Economia Política liberal, perverte a indiferença (a negligência da diferença) em uma aparente “não” diferença (como ausência de diferença).

Essa implicação lógica fica bem localizada no Esquema 3.7, do capítulo anterior, no que concerne à identificação que o sujeito A estabelece com outro, B.

Esquema 3.7

Queremos dizer que uma das condições fundamentais no discurso capitalista da maneira que o eu, A, se fazer ideologicamente igual ao outro, B, é desmentindo suas diferenças sociais, para, a partir dessa fantasia de igualdade, poder reproduzir a indiferença estruturante do laço social. Ora, no capitalismo, a identificação entre sujeitos tem como base a renegação das diferenças históricas e materiais que produzem suas distinções. Sem contornar tais diferença, não somos capazes de realizar a troca de mercadorias, pois sob a lógica do capital não haveria possibilidade de equiparação dos frutos do trabalho.

Por certo, se a troca capitalista implica na concepção de um trabalho social, abstrato e anônimo, que outro fim pode ter o sujeito desse trabalho, senão que aquele

reservado exclusivamente pelos termos quantitativos de seus valores de troca? É assim que os sujeitos são narrados socialmente como indivíduos iguais. Essa é a forma pela qual o laço social capitalista suscita que experimentemos a “igualdade”: a partir de uma posição que, por princípios, desmente a diferença.

Esse desmentido não se furta de retornar como sintoma social. É perante essa indiferença que somos capazes, no Brasil, de encarcerar milhares de corpos negros; é ela que permite um certo conforto frente a desigualdade, o desemprego e a fome; ela é a base, inclusive, da aceitação do discurso econômico de austeridade. E o sintoma não é o encarceramento negro, a desigualdade, o desemprego, a fome, a austeridade. O sintoma somos nós, efeitos desse laço social; são os sujeitos que, de alto de sua indiferença, fazem sentido a tantas mazelas. “O sintoma é um modo de enlace. O sintoma é um modo de laço social” (Góes 2008, p.118)

Por esses meios, parece que podemos, inclusive, desdobrar a afirmação de Marcuse de que “na produção capitalista, a igualdade abstrata dos indivíduos se realiza como desigualdade concreta” (Marcuse, 2001, p. 20). Podemos acrescentar aí que a igualdade abstrata dos indivíduos se realiza como desigualdade concreta a partir da conformação de

sujeitos indiferentes uns aos outros. O capitalismo, assim, impõe uma

indiferença que torna homogêneos os indivíduos e atravessa todas as classes sociais; indiferença diante da morte tornada corriqueira e banal; morte despojada de rituais fúnebres, uma vez que não há nenhuma Antígona que a pranteie. (Góes, 2008, p. 16)

Percebam que, nesses termos, aliás, a identificação dos sujeitos por sua condição de classe fica iminentemente fragilizada, exatamente porque essa identificação exigiria que a igualdade se estabelecesse em torno de um outro significante mestre, que não a mercadoria. Mas no capitalismo isso não faz sentido, pois o que faz sentido à igualdade é o oposto: a renegação das condições materiais necessária para que a troca se efetive. Se é próprio da materialidade do laço social capitalista que essa condição de igualdade pela indiferença seja uma forma pensamento anterior ao pensamento, o “em-razão-de” que condiciona a razão, então não há como reclamar uma consciência de classe, sem recair na nossa advertida armadilha racionalista.

essência da igualdade capitalista - agora em um lugar no qual o capitalismo se sente completamente confortável, isso é, a teoria econômica convencional. Como mais podemos entender o reducionismo em torno do que se instituiu como o agente econômico – o chamado

homo economicus. Essa entidade individual sintetiza o que quer que seja humano nessa teoria,

negligenciando todas as diferenças relativas entre os sujeitos - sejam essas diferenças de classe, de gênero, de raça, de etnia, etc. - tudo isso sobre a mácula de um pretenso princípio de igualdade190.