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A objeção que não é a nossa: a crítica de Hayek

De fato, a radical objetivação do ser, representada pelo individualismo racionalista tão conformado na economia ortodoxa, não passa desapercebido sequer por economistas do próprio seio liberal. O maior exemplo disso é Friedrich Hayek, que acusa que a assunção dos indivíduos com entes racionais e maximizadores os transforma em seres perfeitamente antecipáveis e essencialmente idênticos, fazendo apagar neles a particularidade libertária de sua autonomia.

O interessante da posição de Hayek no corpo dessa nossa discussão é o fato de que o filósofo austríaco localiza a distinção entre o que ele chama de “verdadeiro individualismo” e “falso individualismo” exatamente nas diferenças que se desenvolvem entre a tradição cartesiana e a tradição lockeana de pensamento59. Para ele, apenas essa segunda tradição –

particularmente com Bernard Mandeville, David Hume, Josiah Turcker, Adam Ferguson, Adam Smith, Edmund Burke e Alexis de Tocqueville – conceberia as instituições da sociedade a partir do efeito combinado de livre ações individuais, instituições essas que prescindiriam de um desígnio ou de uma mentalidade diretora.

A tradição cartesiana, por sua vez – representada por Jean-Jacques Rousseau, pelos fisiocratas, pelo Marquês de Condorcet e por Auguste Comte -, seria de um “pseudo- individualismo racionalista” (Hayek, 1948, p. 6)60 que declinaria para um humano designado

ao que se entende por racional. Isso porque, essa tradição exageraria a crença nos poderes da razão individual, o que implica na concepção de algo como a Razão, como aquilo que “está sempre e completamente disponível para todos os humanos” (Hayek, 1948, p. 8)61 e que

conformaria o racional, portanto, como uma espécie de engenharia social transcendental. Segundo Hayek62, foi a tradição francesa, e não a inglesa, que influenciou o utilitarismo do

imperativo de se preferir sempre mais riqueza a menos riqueza de John Stuart Mill que, por sua vez, instituiu o caráter da racionalidade da ortodoxia econômica63.

Caminhemos, convenientemente, um pouco mais no pensamento hayekiano. O problema para Hayek de se conceber a razão como máxima da consciência livre individual é exatamente porque essa concepção atenta diretamente contra o conceito negativo de liberdade reclamado pelo austríaco. E o que seria esse conceito negativo de liberdade? Ora, para Hayek, a liberdade não se constitui como uma finalidade, ela não é positivada nos termos do exercício de um ser livre para (comprar, vender, escolher, produzir, etc.). Isso sim, a liberdade para Hayek é negativa, pois se constitui pelo princípio de uma ausência: a ausência de restrição individual. Sendo assim, a liberdade se instaura pelo primórdio de ser livre de: do Estado, da

59 Hayek (1948, p. 4)

60 “the rationalistic pseudo-individualism”

61 “is always fully and equally available to all humans” 62 Hayek (1948, p. 11)

coletividade, da religião, da moral, de uma razão absoluta, de qualque coisa64.

Sobre a influência explícita do pensamento lockeano, Hayek recusa, então, essa razão inata e absoluta – aquela conferida pela bondade de Deus – para, em seu lugar, propor sua versão de uma razão limitada, que seria constituída pela interação e acúmulo de ideias simples, como queria Locke. De fato, para Hayek, a consciência é formada a partir da retenção subjetiva e individual da realidade, de modo que não seria o mundo objetivo que determinaria a percepção dos indivíduos, “mas o mundo como ele se mostra para cada um em particular” (Paulani, 2005, p. 101).

Há que nos perguntarmos, todavia, qual o princípio da capacidade do indivíduo de conhecer o mundo de forma pessoal e intransferível? O que intermedeia essa consciência? A solução – quase dialética - de Hayek é a de conferir a três elementos sociais a possibilidade de surgimento de realidades subjetivas distintas. O primeiro elemento destacado por ele é a

linguagem65. A linguagem seria uma ordem espontânea na qual o indivíduo se insere involuntariamente. Por meio da linguagem, o indivíduo adquire a capacidade de apreender, classificar, ordenar e contextualizar as informações que recebe. “Para ele, a estrutura da linguagem implica, ela mesma, certas visões sobre a natureza do mundo. Por essa ótica, também os discursos particulares que dominamos influenciam nossa percepção” (Paulani, 2005, p. 102, grifos nossos).

O segundo elemento deriva da especialização social, entendida de forma econômica como “o conjunto de circunstâncias específicas de espaço e tempo que torna o conhecimento uma exclusividade de quem ocupa aquela localização” (Paulani, 2005, p. 103). Sendo assim, cada indivíduo se constitui como um possuidor de informações específicas e, logo, formula de maneira também específica o sentido de sua realidade, auferindo, inclusive, possíveis vantagens em relação aos outros.

Por fim, o tempo seria também um elemento constitutivo da percepção individual, não só porque tal percepção tem lugar no tempo, mas também porque Hayek conceberia que, no que concerne a um único indivíduo, essas percepções e as ações decorrentes delas devem manter equilíbrio entre si, estando conectadas, inclusive, com as expectativas que os 64 Um agradecimento especial aos companheiros do Latesfip e suas discussões a respeito da condição negativa

da liberdade hayekiana.

indivíduos formam sobre o futuro66.

Sobre essa base elementar, Hayek constitui seu indivíduo de forma socialmente particular. De maneira deveras lockeana, a sociedade existe, para Hayek, como forma de sustentação do humano, dada a consciência limitada e a complexidade subjetiva de cada indivíduo. Daí a importância da concepção negativa de liberdade como fundamento do individualismo, uma vez que essa liberdade negativa seria uma forma de assegurar a experiência subjetiva de cada um, de garantir que as distintas realidades particulares e intransferíveis não se curvem a essa ou àquela visão de mundo específica.

Vale dizer, ainda, que a sociedade não aparece somente por meio desses três elementos constituintes do saber que o indivíduo subjetivamente retém. Ela também fornece uma série de instituições, como regras, tradições, costumes e convenções que - em conjunto com famílias e as formações voluntárias de pequenos grupos de apoio – constituem, se não forem mandatórias, uma sociedade estável e, portanto, previsível. Contudo, essas instituições só propiciarão que a sociedade evolua e se aperfeiçoe na medida que não forem frutos do planejamento de alguma razão específica. Antes, tais instituições devem surgir espontaneamente, através da livre adoção por parte de indivíduos que não necessariamente precisam compreender a razão delas, mas que tão somente não têm razões definidas para, a elas, se contrapor67.

Que a existência de convenções e tradições comuns entre um grupo de pessoas permitirá que trabalhem juntos de maneira harmoniosa e eficiente, com organização e compulsão muito menos formais do que um grupo sem esse histórico comum, é, naturalmente, um lugar comum. Mas o inverso disso, embora menos familiar, provavelmente não é menos verdadeiro: a coerção provavelmente só pode ser mantida ao mínimo em uma sociedade em que as convenções e a tradição tornaram o comportamento do homem em grande parte previsível. (Hayek, 1948, p. 23 e 24)68

O progresso social pela liberdade, sob tais condições, se daria no estabelecimento de instituições que induziriam as pessoas, a livremente e tanto quanto possível, contribuírem 66 Paulani (2005, p. 103 e 104)

67 Hayek (1948, p. 23)

68 “That the existence of common conventions and traditions among a group of people will enable them to work

together smoothly and efficiently with much less formal organization and compulsion than a group without such common background, is, of course, a commonplace. But the reverse of this, while less familiar, is probably not less true: that coercion can probably only be kept to a minimum in a society where conventions and tradition have made the behavior of man to a large extent predictable.”

com as necessidades coletivas, sem fazer com que as visões e interesses de uns prevaleçam sobre os outros69. Nesses termos, segundo Paulani, Hayek concebe o indivíduo muito mais

como um animal que segue regras do que como um que busca resultados70. De fato, os

indivíduos hayekianos seguiriam regras e adotariam convenções, não por um suposto contrato social, como em Rousseau, mas como uma alternativa a seu conhecimento limitado, para se protegerem da perda de rumo, para esquivar de situações nas quais eles não saberiam como agir.

Mais do que isso, tais regras e convenções não são completamente redutíveis a um saber racional, cujos resultados seriam antecipáveis. Elas são seguidas simplesmente porque

os indivíduos não são contrários a elas.

Efetivamente o que Hayek está sugerindo é que nem toda ação humana é "racional" e autônoma no sentido requerido pela teoria neoclássica e pelo conceito de equilíbrio: que boa parte dela é resultado da constituição da percepção humana por meio de um processo que social e, por isso, não inteligível. (Paulani, 2005, p. 37)

Notemos que a liberdade de Hayek não aponta na direção de um pretenso bem superior ou da constituição de uma sociedade prudente e benévola. A liberdade hayekiana está livre de ter quaisquer fins. Ela é um fim em si mesmo. E o resultado de seu exercício é um processo social espontâneo e descomprometido, seja ele qual for. Sobre o individualismo associado a Adam Smith e vinculado a essa liberdade, Hayek escreve:

Não seria demais alegar que o principal mérito do individualismo que ele [Smith] e seus contemporâneos defenderam é que ele é um sistema sob o qual os homens maus podem fazer menos mal. O individualismo é um sistema social cujo funcionamento não depende nem de que se encontre bons homens para administrá-lo, nem de que todos os homens se tornem melhores do que são, mas é um sistema que faz uso dos homens em toda a sua variedade e complexidade, às vezes bons e às vezes ruins, às vezes inteligentes e, mais frequentemente, estúpidos. Seu objetivo [o de Smith] era um sistema sob o qual deveria ser possível conceder liberdade a todos, em vez de restringi-la aos "bons e sensatos", como queriam seus contemporâneos franceses (Hayek, 1948, p. 11 e 12)71.

69 Hayek (1948, p. 12 e 13) 70 Paulani (2005, p. 101)

71 “It would scarcely be too much to claim that the main merit of the individualism which he and his

contemporaries advocated is that it is a system under which bad men can do least harm. It is a social system which does not depend for its functioning on our finding good men for running it, or on all men becoming better than they now are, but which makes use of men in all their given variety and complexity, sometimes good and sometimes bad, sometimes intelligent and more often stupid. Their aim was a system under which it

A complexa concepção hayekiana de indivíduo, então, estabelece essa noção de pessoa como livre, autônomo e independente. Mas, contraditoriamente, esses indivíduos também são consciências limitadas e seguidores de regras das quais eles normalmente não conhecem as razões e consequências, embora não se oponham a elas. De que maneira se pode ser livre, autônomo e independente se se está sujeito a atuar por causas e efeitos superiores e desconhecidos? Nesse sentido, Paulani confronta Hayek com suas próprias palavras. Segundo ele:

[Há] a necessidade, em qualquer sociedade complexa na qual os efeitos da ação de qualquer um vão além de seu espectro possível de visão, de uma submissão às anônimas e aparentemente irracionais forças da sociedade. (…) O homem, numa sociedade complexa, não pode ter nenhuma outra escolha a não ser se adaptar àquilo que para ele devem parecer as forças cegas do processo social, obedecendo ordens superiores. (Paulani, 2005, p. 105, apud Hayek, 1948, p. 24).

Com efeito, a provocação de Paulani é excelente:

Em que situação ficamos então? Hayek, o verdadeiro individualista, acaba por concluir que o indivíduo (exceção feita a seus propósitos particulares) desconhece a maior parte dos processos que frequentemente determinam sua ação, senão vejamos: o saber, que ele subjetivamente detém, depende fundamentalmente da linguagem, caracterizada, tanto quanto o mercado, como uma ordem espontânea e não como produto deliberado da intenção humana; as regras, que junto com tal saber fornecem os parâmetros da ação dos agentes, eles simplesmente as seguem sem se perguntarem o que significam ou por que existem. Em suma, para Hayek, o indivíduo é objeto de processos que se desenvolvem às suas costas, que dirigem da sombra o seu comportamento, e sobre os quais ele não pode ter nenhum controle individual. Onde fica então sua propalada autonomia, sua independência, sua soberania de ator-sujeito? Talvez, então, seja Hayek o equivocado. O verdadeiro individualismo deve ser o outro e não o dele. (Paulani, 2005, p. 106)

Há duas formas, para nós, de solucionar essa contradição hayekiana - ou apenas uma, se bem que dita de duas maneiras distintas. Ou pela dialética, de modo a se assumir que liberdade, autonomia e independência são a aparência de um processo social, cuja essência é uma sociedade impositoras de regras e condutas que, somente no absurdo da utopia, podem ser

should be possible to grant freedom to all, instead of restricting it, as their French contemporaries wished, to "the good and the wise.”

de fato regras anônimas e irracionais. Ou assumindo que o indivíduo é dividido por algo que lhe é consciente e algo que não lhe é consciente, de modo que essa liberdade, autonomia e independência só seriam realidade no imaginário de sua consciência, na narrativa que ele faz de si próprio.

Gostaríamos de poder dizer que temos uma terceira resposta, uma que escapasse da dialética materialista e da assunção de uma estrutura inconsciente, como as sugeridas nas resoluções acima. Mas, de fato, não temos tal condução para a contradição hayekiana. Contudo, vale mesmo apresentarmos um corso naufragoso, uma possibilidade resolutiva de potência considerável, se bem que impossível. Ora, se esse trabalho defende que o indivíduo deve ser tomado como uma instituição da sociedade capitalista, vejamos a que caminho nos leva a Economia Institucional.