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A responsabilidade civil das agências de notação de risco : agências rating

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Academic year: 2021

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação de mestrado traduz o resultado da investigação e estudo que fizemos sobre o tema em análise mas é, sobretudo, fruto dos mais diversos contributos daqueles com os quais nos fomos cruzando ao longo desta odisseia académica e aos quais estamos profundamente agradecidos.

Gostaríamos de agradecer ao Senhor Professor António Menezes Cordeiro, na qualidade de Professor Orientador, pela honra que nos concedeu em orientar-nos esta dissertação e pela sua constante disponibilidade, empenho e colaboração que se revelaram imprescindíveis para atingir os objetivos a que nos propusemos, não esquecendo a inestimável partilha de conhecimentos, através das muitas aulas a que assistimos e da vasta e notável obra publicada.

Não podemos deixar de manifestar, igualmente, o nosso reconhecimento à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, à qual dirigimos a nossa mais profunda admiração, em especial aos Senhores Professores Luís Menezes Leitão, Luís de Lima Pinheiro, Rui de Mascarenhas Ataíde, Maria Raquel Rei e à incontornável memória do Senhor Professor Eduardo Santos Júnior, dos quais tivemos o privilégio de ser aluno e com os quais tivemos a oportunidade de, humildemente, muito aprender.

Impõe-se, ainda, uma palavra de agradecimento para com a PLMJ – Advogados, S.P., R.L., pela disponibilidade, apoio e incentivo sempre demonstrados no âmbito desta dissertação e pela possibilidade que nos concederam em concluir esta importante etapa do nosso percurso académico.

Resta-nos agradecer à nossa família, aos nossos pais e irmão, por serem modelos de inspiração, coragem, apoio incondicional e de valores que tentamos sempre ter presentes em todas as nossas condutas e que fazem de nós tudo quanto hoje somos; à minha namorada, pela constante partilha de amor, compreensão e apoio demonstrados, decisivos na superação de todos os obstáculos que ao longo desta nossa caminhada foram surgindo; e a todos os nossos amigos, pelo incontornável companheirismo partilhado ao longo desta viagem académica.

Trilhar este caminho e, sobretudo, a tentativa de caminhar rumo a uma formação jurídica completa e transversal, só́ foi possível com o apoio, energia e exemplo de todos estes protagonistas, a quem dedico especialmente este humilde contributo académico.

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NOTA PRELIMINAR,MODO DE CITAR E OUTRAS INDICAÇÕES

O presente estudo constitui a dissertação de mestrado elaborada no âmbito do Mestrado científico em Direito e Ciência Jurídica, com especialidade em Direito Civil, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cuja amabilidade da imprescindível orientação ficou a cargo do Senhor Professor Doutor António Menezes Cordeiro.

As obras citam-se pelo autor, título, número de edição, volume e / ou tomo, local da publicação, data e página; nas referências subsequentes omite-se o número de edição, o local e a data.

Os estudos inseridos em publicações periódicas citam-se, pela primeira vez, pelo autor, título, nome da publicação, ano, número e página; nas indicações posteriores, omite-se a referência ao nome da publicação, sendo substituída por uma sigla identificadora.

As decisões judiciais citam-se pelo tribunal, data, número de processo, relator e local da publicação.

As disposições legais sem indicação de fonte correspondem a artigos do Código Civil português em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 334, de 25 de novembro de 1966, com alterações subsequentes, exceto se, da sequência, resultar outra pertença.

As transcrições serão feitas, consoante o contexto, ou em língua portuguesa ou na sua língua oficial, com exceção das latinas, citadas sempre no original; as traduções, quando não se identifique outra fonte, são da responsabilidade do autor.

Na falta de um sistema normalizado e universal, as abreviaturas utilizadas são as de uso corrente, nas diversas literaturas jurídicas da atualidade; no entanto, na sua primeira utilização, será sempre utilizada a forma extensa seguida, entre parêntesis, da abreviatura em questão.

Da relação bibliográfica inserida no final constam os títulos citados e outros elementos relevantes que nos tenham orientado ou de alguma forma inspirado ao longo desta dissertação.

A presente exposição foi redigida ao abrigo do novo acordo ortográfico.

Pretendemos, neste estudo, relatar as investigações que fizemos sobre o tema em análise e, de alguma forma, contribuir para o desenvolvimento das questões jurídicas que de seguida apresentaremos.

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PLANO DA EXPOSIÇÃO

INTRODUÇÃO

1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

1.1 NOTA DE ABERTURA E RAZÃO DE ESCOLHA DO TEMA

1.2 DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO E FIXAÇÃO DOS TIPOS DE CASOS MAIS RELEVANTES

1.3 RAZÃO DE ORDEM

PARTE I

AS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO NO ÂMBITO DO MERCADO DE CAPITAIS

2 AATIVIDADE DE NOTAÇÃO DE RISCO E A IMPORTÂNCIA DAS AGÊNCIAS DE RATING NA

ATUALIDADE

2.1 A NOÇÃO DE “NOTAÇÃO DE RISCO”: COORDENAS GERAIS PARA A CONSTRUÇÃO DOGMÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE RATING

2.2 ORIGEM DA NOTAÇÃO DE RISCO

2.3 AATIVIDADE DE NOTAÇÃO DE RISCO NA ATUALIDADE E O PAPEL DOS RATINGS NO

ÂMBITO DO MERCADO DE CAPITAIS

2.4 AS CONSEQUÊNCIAS DE NOTAÇÕES DE RISCO INEXATAS,A SUA RELEVÂNCIA PARA O DIREITO E A TUTELA DOS DIFERENTES SUJEITOS DO MERCADO DE CAPITAIS PERANTE OS PERIGOS DE NOTAÇÕES DE RISCO INEXATAS

3 O ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA ATIVIDADE DE NOTAÇÃO DE RISCO NO QUADRO COMUNITÁRIO E NACIONAL

3.1 QUADRO INTERNACIONAL

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PARTE II

ARESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO

4 COORDENADAS DOGMÁTICO-JURÍDICAS PARA A CONSTRUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO, EM ESPECIAL A INSUFICIÊNCIA DE CERTOS INSTITUTOS E REGIMES PARTICULARES

CAPÍTULO I

ARESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO PERANTE AS ENTIDADES NOTADAS

5 A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO PERANTE AS ENTIDADES NOTADAS

5.1 OS RATINGS SOLICITADOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL, EM ESPECIAL OS ELEMENTOS DIFERENCIADORES DESTA RESPONSABILIDADE

5.2 OS RATINGS NÃO SOLICITADOS E O NECESSÁRIO RECURSO À TUTELA DELITUAL

5.2.1 A PROBLEMÁTICA DOS DANOS PURAMENTE PATRIMONIAIS E O (SUPOSTO) DIREITO À EMPRESA

5.2.2 OALCANCE CIRCUNSCRITO DA TUTELA DELITUAL

5.2.3 A RESSARCIBILIDADE DOS PREJUÍZOS CAUSADOS POR ATOS EMULATIVOS OU MEDIANTE UM ATENTADO DOLOSO AO MÍNIMO ÉTICO JURIDICAMENTE EXIGÍVEL

5.3 A QUESTÃO PARTICULAR DA DÍVIDA SOBERANA

CAPÍTULO II

ARESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO PERANTE OS INVESTIDORES

6 A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE NOTAÇÃO DE RISCO PERANTE OS INVESTIDORES

6.1 A POSIÇÃO DOS INVESTIDORES

6.2 ARESPONSABILIDADE OBRIGACIONAL E OS SEUS LIMITES

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6.4 O RECURSO AO CÓDIGO DOS VALORES MOBILIÁRIOS E O ALCANCE DA RESPONSABILIDADE LEGAL PELO PROSPECTO

6.5 OPARADIGMA DA TUTELA DELITUAL: A INADEQUAÇÃO DA TUTELA DELITUAL FACE ÀS LIMITAÇÕES DAS DUAS SITUAÇÕES BÁSICAS DE RESPONSABILIDADE REFERIDAS NO ARTIGO 483.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL

6.6 O CARÁCTER RESTRITIVO DA SEMPRE POSSÍVEL RESPONSABILIDADE PELA OFENSA DO MÍNIMO ÉTICO-JURÍDICO EXIGÍVEL AO ABRIGO DO ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL

6.7 OS CONTRIBUTOS DA PROMISSORA TERCEIRA VIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL, NOMEADAMENTE OS CONTRIBUTOS DA CULPA IN CONTRAHENDO DE TERCEIRO E A TEORIA PURA DA CONFIANÇA NO ÂMBITO DO DIREITO DA IMPUTAÇÃO DE DANOS

6.8 A IMPORTÂNCIA DO ALCANCE DE UM JUSTO EQUILÍBRIO DE INTERESSES NO ÂMBITO DA IMPUTAÇÃO DE DANOS CAUSADOS NO MERCADO DE CAPITAIS, EM CONCRETO A QUESTÃO DA DISTRIBUIÇÃO DO RISCO

CONCLUSÃO

7 SÍNTESE CONCLUSIVA

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RESUMO (E PALAVRAS-CHAVE)

Este estudo dedica-se ao enquadramento dogmático da responsabilidade civil das agências de notação de risco, quer perante as entidades emitentes, quer perante os investidores. Assim, divide-se, fundamentalmente, em duas partes: a primeira destina-se ao enquadramento jurídico da atividade de notação de risco e a segunda dedica-se ao direito da imputação de danos no ordenamento jurídico português.

O papel e o desempenho das agências de notação de risco, em especial depois de fenómenos financeiros como o Enron Scandal ou a crise financeira de 2008, tem estado sob um escrutínio crescente que reclama, hoje, uma atitude energética do Direito para responder à reclamação de uma maior responsabilização destes agentes financeiros, no mundo globalizado de hoje, perante quantos podem ser afetados por ratings indevidamente emitidos.

Trata-se de um tema juridicamente bastante complexo que deve ser perspetivado, certamente, a partir do direito nacional, em buca de estruturas fundamentais do instituto da responsabilidade civil, mas que deverá estar preparado para enfrentar os desafios de contingências espácio-temporais, que exigem a descoberta de quadrantes dogmáticos comuns e suscetíveis de proporcionar respostas equilibradas num contexto transnacional. A relação de tensão inerente ao objeto de estudo em análise é evidente e prende-se com a necessidade de procurarmos um justo equilíbrio entre a necessidade de conciliar, por um lado, a responsabilização de agentes financeiros cuja atividade assume uma relevância central no âmbito dos mercados financeiros e é suscetível de gerar prejuízos tremendos para uma diversidade alargada de potenciais lesados e, por outro lado, o reconhecimento de que as notações de risco, mesmo se incorretas, só em parte justificam decisões de investimento prejudiciais, porquanto nestas influem ordinariamente diversos outros fatores decorrente do típico risco de mercado.

Assim sendo, a responsabilidade das agências de rating não pode senão estender-se àquela parcela do prejuízo que estender-seja viável reputar efetivamente ocasionada pelo rating inexato, isto é, à medida em que a conduta destes agentes contribuiu realmente para o prejuízo do potencial lesado, seja ele uma entidade, um investidor ou um Estado Soberano.

Por isso, na procura deste justo equilíbrio, o tema exige uma conciliação de diversas estruturas do Direito Civil e do Direito Comercial, em busca de um cenário de

causalidade que permita, além da moderação do quantum respondeatur, conter a

responsabilidade dentro de limites proporcionais e justos.

Palavras-Chave: Agências de Notação de Risco; Responsabilidade Civil; Direito

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ABSTRACT (AND KEY-WORDS)

This paper aims to determine the civil liability of the Credit Rating Agencies (CRA) with respect to damage cause to issuers or investors. Thus, this study is divided in two main parts: the first one is aimed at the legal framework of the credit rating activity and the second one is dedicated to the civil liability Portuguese system.

The role and performance of credit rating agencies, in particular following financial scandals such as the Enron Scandal or the 2008 financial crisis, has been under a deep and increasing analysis and judgment that today calls for an energetic attitude of law to respond to the complaint of greater accountability of these financial agents in today's globalized world, to compensate those who may be affected by inappropriately issued ratings.

Our mission represents a legally complex issue which, on the one hand, should certainly be pursued under Portuguese national law, together with the inputs of its civil liability system, but, on the other hand, which must be prepared to face the challenges of spatio-temporal contingencies, which require the discovery of a common legal framework capable of providing balanced responses in a transnational context.

The tension inherent in the legal issue under analysis is clear and concerns the need to achieve a fair balance between two different main points: on the one hand, the accountability of financial agents whose activity is one of the central pieces in the financial markets and is able to cause tremendous losses for a wide diversity of injured parties; and, on the other hand, the recognition that the rating activity, even if incorrect, only justify in part the damage caused in harmful investments, since investments are ordinarily influenced by several other factors arising from the typical market risk.

Thus, the liability of the credit rating agencies can only extend to that part of the damage that is likely to be effectively caused by the inaccurate rating, that is, to the extent that the conduct of these agents actually contributed to the damage cause to an issuer or an investor.

Therefore, in the search for this balance, this study requires the call of several structures of Civil and Commercial Law, in search of an adequate causal connection that allows, besides the moderation of the quantum respondeatur, to contain the responsibility within proportional and fair limits.

Key-Words: Credit Rating Agencies; Civil Liability; Civil Law; Financial Law;

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INTRODUÇÃO

1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

1.1 NOTA DE ABERTURA E RAZÃO DE ESCOLHA DO TEMA

“Every time there is a crash, everyone looks for someone at whom they can point the finger. I think it was our turn this time, but I wouldn't say justifiably”. Pela sua transversalidade, esta poderia ser a frase de abertura de um qualquer estudo dedicado a um dos vários temas do âmbito da responsabilidade civil, por colocar a tónica no momento da imputação do dano a uma esfera jurídica diferente daquela que o suportou, com vista à sua reparação1.

No entanto, a verdade é que se trata de uma afirmação proferida por uma colaboradora (chief credit officer) da agência de notação de risco2 Standard & Poor’s (abreviadamente, “S&P”), numa reportagem do jornal britânico The Telegraph, em dezembro de 2002, a propósito da surpreendente falência de uma das maiores empresas

1 A responsabilidade civil surge, no Direito, como um instituto cujo conteúdo se destina à imposição de

obrigações de reparar ou de indenizar os danos sofridos por outrem: trata-se, portanto, de uma restrição ao princípio geral de que a suportação do dano é feita por quem o sofre (casum sentit dominus), imputando os danos a pessoa diferente daquela que originariamente os suportou. A razão de ser e a função do instituto da responsabilidade civil fundam-se, portanto, na necessidade de deslocar um dano ocorrido da esfera jurídica de quem o sofreu (o lesado) para a esfera jurídica daquele que o causou (o lesante), de acordo com determinados critérios legais de imputação. Cfr., a este respeito, Sinde Monteiro, Responsabilidade por

conselhos, recomendações ou informações, Almedina, 1989, pp. 189-190, referindo que o casum sensit dominus é o princípio clássico em matéria de responsabilidade civil, ainda que o Estado de Direito social

lhe tenha introduzido numerosas limitações.

2 É comum estes agentes financeiros serem designados de agências de notação de risco ou de agências de

rating, por referência à designação anglo-saxónica credit rating agencies (CRA) e, aliás, em conformidade

com a opção do legislador comunitário e com a maioria da literatura jurídica sobre o tema. No entanto, esta nem sempre foi a opção do legislador nacional: com efeito, até à última alteração do Código dos Valores Mobiliários (doravante, também abreviadamente designado por “CVM”), optou-se pela designação de

sociedades de notação de risco, nomeadamente nos antigos n.º 6 e n.º 7 do artigo 306.º-C. Porém, após as

alterações ao CVM introduzidas pela Lei n.º 35/2018, de 20 de julho, o legislador nacional acolheu, também, a designação comunitária de agências de notação de risco, designadamente no atual n.º 10, do artigo 306.º-C. Neste estudo, iremos utilizar, indiscriminadamente, a expressão agências de notação de

risco ou agências de rating. Vide, a propósito da designação a atribuir a estes agentes financeiros,

LAWRENCE J. WHITE, The Credit Rating Industry: An Industrial Organization Analysis, in RICHARD M. LEVICH / GIOVANNI MAJNONI / CARMEN M. REINHART, Ratings, Rating Agencies and the

Global Financial System, Boston, Kluwer Academic Publishers, 2002, pp. 41-64, também disponível na Electronic Library of the Social Science Research Network (doravante, “SSRN eLibrary”), em

http://ssrn.com/abstract=267083, p. 4, criticando a terminologia agências de notação de risco por poder sugerir uma natureza diversa em face das restantes sociedades comerciais. No mesmo sentido, ainda que aderindo à terminologia de agências de rating por ser a mais comum no seio da literatura jurídica sobre o tema e por ser a utilizada no âmbito regulatório, MARC KRUITHOF / EDDY WYMEERSCH, Regulation

and Liability of Credit Rating Agencies Under Belgian Law, in Financial Law Institute Working Paper

Series – Working Paper no. 2006-05, março 2006, p. 1, disponível na SSRN eLibrary, em https://ssrn.com/abstract=894820.

(10)

norte-americanas do setor energético: a Enron Corporation, dando origem a um fenómeno que haveria de ficar para sempre recordado na história dos EUA como Enron

Scandal.

Mas este não deixa, contudo, de ser um estudo dedicado a um dos vários temas do âmbito da responsabilidade civil: ao longo das próximas páginas, debruçar-nos-emos sobre a temática da responsabilidade civil das agências de rating pelas notações de risco inexatas que emitam e que provoquem danos aos investidores3 ou às entidades alvo da notação (entidades notadas).

A complexidade da matéria que nos propomos tratar reside no facto de a invocada responsabilidade civil refletir a tensão existente entre, por um lado, a necessidade de se responsabilizar as agências de notação de risco pelos ratings inexatos que emitam, convocando-se, para o efeito, o impacto que os ratings assumem no âmbito do mercado de capitais (v.g., condicionando as taxas de juro soberanas, com um impacto decisivo no dia-a-dia de populações inteiras), e, por outro lado, a constatação de que os mecanismos de imputação de danos, numa zona com um leque de potenciais lesados tão abrangente, deve respeitar limites de proporcionalidade e razoabilidade, sob pena de se tornar impraticável a atividade financeira de notação de risco, que, de forma abreviada, mais não faz do que emitir opiniões sobre o risco de crédito associado a determinado produto ou entidade, recordando-se, para o efeito, a importância decisiva desta atividade na promoção da eficiência dos mercados. Por isto, o caminho rumo à imputação dos danos aqui em causa deve ser dogmaticamente bem fundamentado.

Nesta fase preliminar, diremos que a atividade de notação de risco consiste na prestação de informações padronizadas, emitidas por uma entidade independente (agência de rating), através da avaliação do risco de crédito – isto é, da capacidade de cumprimento das obrigações futuras na respetiva data de vencimento – associado a entidades (públicas ou privadas) ou subjacente a operações, instrumentos financeiros ou contratos, traduzindo-se o resultado dessa avaliação numa classificação espelhada num relatório de notação de risco4.

3 Para efeitos do presente estudo, investidor é aquela pessoa que negoceia sobre instrumentos financeiros. 4 Cfr. PAULO CÂMARA, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 3.ª edição, Almedina, 2016, p. 309;

HUGO MOREDO SANTOS, A Notação de Risco e os Conflitos de Interesses, in AAVV, Conflito de

Interesses no Direito Societário e Financeiro – Um Balanço a partir da Crise Financeira, Almedina, 2010,

pp. 471-563 (p. 474); ou MARGARIDA AZEVEDO DE ALMEIDA, A Responsabilidade Civil perante os

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Esta avaliação feita pelas das agências de notação de risco consubstancia-se, portanto, numa simples opinião sobre determinados aspetos que podem ser relevantes no processo da tomada de decisão dos investidores, não constituindo, contudo, conforme se analisará atempadamente, uma recomendação de investimento que seja dirigida à orientação das condutas dos investidores ou um aconselhamento financeiro.

E aqui encontra-se, precisamente, um dos pontos mais nevrálgicos do tema da responsabilidade civil das agências de rating: recorde-se, na necessidade de se encontrar um equilibrado enquadramento dogmático entre, por um lado, a tutela daqueles que, devido a notações de risco inexatas, sofreram danos evitando-se, por outro, um alargamento excessivo dos fatores responsabilizantes, tendo em conta o correto enquadramento da atividade de notação de risco.

Com efeito, estas entidades desempenham, nos mercados financeiros5, e mais concretamente no seu segmento de mercado de capitais, uma função crucial. Através da notação de risco que atribuem (ou seja, através do rating atribuído a um emitente, a determinados valores mobiliários ou produtos financeiros, ou mesmo aos títulos da dívida soberana de países), reduzem, enquanto intermediárias de informação relevante, assimetrias do conhecimento que importariam custos de transação acrescidos, em especial para os investidores6.

Relatórios de Notação de Risco, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 36, 2010, p. 22.

Note-se, ainda a título meramente introdutório, que o Código de Conduta das Agências de Rating de 2008, aprovado pela International Organization of Securities Commissions (IOSCO), definia a notação de risco como “an opinion regarding the creditworthiness of an entity, a credit commitment, a debt or debt-like security or an issuer of such obligations, expressed using an established and defined ranking system”, explicando depois que “credit ratings are not recommendations to purchase, sell, or hold any security”. Depois da revisão de 2015, o novo Código de Conduta define a notação de risco, de forma mais simples, como “an assessment regarding the creditworthiness of an entity or obligation, expressed using an established and defined ranking system”. Estas alterações ao Código de Conduta das Agências de Rating, que pode ser consultado em https://www.iosco.org, serão posteriormente analisadas.

5 Nesta aceção, mercado deve ser entendido como um “espaço” ou “organização” que se destina a facilitar

o encontro entre a oferta e a procura de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros (cfr. CMVM, Guia do Investidor, p. 37, artigo consultado online em http://www.cmvm.pt).

Assim, recorrendo a LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Aplicável às Operações Sobre Instrumentos

Financeiros, in “Centenário do Nascimento do Professor Doutor Paulo Cunha – Estudos em Homenagem”,

Coimbra, Almedina, 2012, p. 665, são operações nos mercados de instrumentos financeiros os negócios que são realizados em sistemas que permitem o encontro entre a oferta e a procura de instrumentos financeiros.

6 Cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação do Risco

(12)

Num brevíssimo resumo quanto ao Enron Scandal7 – que pecará pela excessiva simplicidade –, e para os propósitos aqui relevantes, valerá a pena destacar que até ao dia 28 de novembro de 2001, as maiores agências de notação de risco à escala mundial – S&P, Moody’s e Fitch – qualificaram a dívida de longo prazo da Enron dentro da escala de ratings denominada investment grade (que representa um relativo low risk of default). Nesse dia, estas mesmas agências de notação de risco procederam a um downgrading – ou seja, a uma variação negativa – do rating da Enron para o chamado junk status

(low-investment-grade)8. Quatro dias depois, no dia 2 de dezembro de 2002, a Enron declarou a sua falência9.

“Why? Why? Ask why!”. O anúncio publicitário da Enron10 fazia os consumidores pararem para refletir. Quem acabou por parar, afinal, foi a Enron, para deceção e prejuízo dos investidores. Mas a pergunta mantinha-se: porquê? Onde teriam falhado as agências de notação de risco? Deveriam as mesmas serem responsabilizadas? Almejando uma resposta, o senador norte-americano Joseph Lieberman, democrata e

Chairman of the Senate Governmental Affairs Committee, afirmou o seguinte: “The credit

7 A bibliografia relativa ao fenómeno financeiro em torno da falência Enron Corporation e acerca do

desempenho das agências de notação de risco no âmbito de diversos escândalos financeiros é muito extensa, mas, a este propósito e com mais referências, vide CLAIRE A. HILL, Rating Agencies Behaving Badly:

The Case of Enron, in Connecticut Law Review, vol. 35, 2003; JOHN C. COFFEE, What Cause Enron?: A Capsule Social and Economic History of the 1990’s, Columbia Law nad Economics Working Paper no.

214, disponível na SSRN eLibrary, em https://ssrn.com/abstract=373581; FRANK PATROY, Enron and

Derivatives, disponível na SSRN eLibrary, em https://ssrn.com/abstract=302332; e, ainda, relacionado com o tema, cfr. SIMONI DI CASTRI / FRANCESCO BENEDETTO, There is Something About Parmalat (on

Directors and Gatekeepers), 2005, disponível na SSRN eLibrary, em https://ssrn.com/abstract=896940. Sobre a falência da Enron e alguns dos mais relevantes contornos regulatórios, cfr., também, Hearing

Before the Committee on Governmental Affairs United States Senate, One Hundred Seventh Congress,

Second Session, 20 de março de 2002, U.S. Government Printing Office, Washington, 2002, disponível em https://www.gpo.gov/fdsys/pkg/CHRG-107shrg79888/pdf/CHRG-107shrg79888.pdf.

8 Concretamente, e para se perceber o impacto da atribuição do rating, após o downgrading da S&P para a

escala “BBB‐”, teve lugar o vencimento imediato de uma obrigação no valor de $ 690.000.000,00, devido à seguinte cláusula contratual, no âmbito de um contrato bancário da Enron: “O banco tem o direito de exigir do mutuário o reembolso antecipado do empréstimo, se a notação atribuída pela Standard & Poor ́s, pela Fitch ou pela Moody ́s à mutuária for inferior a “A‐” ou “A3”, respetivamente, ou se alguma dessas agências de notação deixar de atribuir notação dívida de longo prazo, não subordinada e não garantida, do mutuário”. Cfr. JOÃO FILIPE GRAÇA, Agências de Notação de Risco, in Publicações CEDIPRE Online – 14, Coimbra, setembro de 2012, disponível em http://www.cedipre.fd.uc.pt, p. 3; e, também, o relatório

Financial Oversight of Enron: The SEC and Private-Sector Watchdogs, Staff to the US Senate Committee on Governmental Affairs, 2002, p. 114, disponível em http://www.senate.gov. As diferentes escalas de avaliação dos relatórios de notação de risco serão, a seu tempo, neste estudo explicadas.

9 Cfr. CLAIRE A. HILL, Rating Agencies Behaving Badly: The Case of Enron, p. 1145 e CLAIRE A.

HILL, Regulating the Rating Agencies, Georgetown University Law Center, Business, Economics and Regulatory Policy Working Paper No. 452022, disponível na SSRN eLibrary, em http://papers.ssrn.com/abstract=452022, p. 1, explicando o seguinte: “until four days before Enron declared bankruptcy, its debt was still rated “investment grade” by the major credit rating agencies, suitable as a safe investment for a conservative investor. Rating agencies purport to be experts in appraising the quality of debt. Clearly, four days before Enron declared bankruptcy, its debt was actually junk”.

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rating agencies were dismally lax in their coverage of Enron. They didn’t ask probing questions and generally accepted at face value whatever Enron’s executives told them”11.

Este fenómeno financeiro – que integra a categoria de um dos maiores escândalos financeiros na história dos EUA – foi decisivo na história da notação de risco, contribuindo para um profundo escrutínio da atividade destas agências. Aliás, o caso da falência da Enron foi, até, apelidado de Great Divide pelo reputado economista norte-amerciano Paul Krugman, vencedor do Prémio Nobel da Economia de 2008, numa reflexão publicada no jornal The New York Times12, em 2002: “It was a shocking event.

With incredible speed, our perception of the world and of ourselves changed. It seemed that before we had lived in a kind of blind innocence, with no sense of the real dangers that lurked. Now we had experienced a rude awakening, which changed everything. No, I'm not talking about Sept. 11; I'm talking about the Enron scandal. One of the great clichés of the last few months was that Sept. 11 changed everything. I never believed that. An event changes everything only if it changes the way you see yourself. And the terrorist attack couldn't do that, because we were victims rather than perpetrators. Sept. 11 told us a lot about Wahhabism, but not much about Americanism. The Enron scandal, on the other hand, clearly was about us. It told us things about ourselves that we probably should have known, but had managed not to see. I predict that in the years ahead Enron, not Sept. 11, will come to be seen as the greater turning point in U.S. society”.

Contudo, o Enron Scandal não foi um fenómeno isolado, nem o único a contribuir para que as agências de notação de risco fossem colocadas na discussão mediática internacional, avolumando-se as dúvidas quanto à probidade destas entidades e as críticas à sua influência na regulação dos mercados financeiros.

A verdade é que alguns fenómenos registados no início deste século, entre os quais a falência de colossos empresariais como a Enron, a Worldcom, a Parmalat, o Lehman Brothers, mas também a incontornável crise financeira associada ao subprime, que remonta ao Verão de 2007, ou as subsequentes crises das dívidas soberanas, vieram suscitar um acrescido interesse crítico sobre o desempenho das agências de rating e o seu

11 Cfr. declaração proferida pelo Senador Joseph Lieberman, disponível em Hearing Before the Committee

on Governmental Affairs United States Senate, in One Hundred Seventh Congress, Second Session, 20 de

Março de 2002, U.S. Government Printing Office, Washington, 2002, que pode ser consultada em https://www.gpo.gov/fdsys/pkg/CHRG-107shrg79888/pdf/CHRG-107shrg79888.pdf, p. 1.

12 O mencionado texto de opinião pode ser consultado em

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papel nas crises financeiras, porquanto estes episódios, entre outros, vieram a assumir um grande impacto na confiança dos investidores à escala global, fortemente amparada na atividade de notação de risco.

Na verdade, ainda que as agências de notação de risco não tenham constituído a causa principal ou imediata de qualquer dos mencionados fenómenos financeiros destacados estão-lhes intimamente associadas. Por isso, quando os investidores vêm um indicador que tinham em grande consideração nas suas decisões de investimento tornar-se pouco fiável e a merecer pouca credibilidade, é altura de descortinar o que possa estar a correr mal, através de um papel mais energético do Direito.

Enfim, recorremos a CARNEIRO DA FRADA para concluir que o tema da responsabilidade civil das agências de rating pelas suas notações de risco de crédito se tornou, fruto dos mencionados fenómenos financeiros, um assunto que “anda nas bocas do mundo – aliás, não propriamente por boas razões – e que parece suscitar a convicção da necessidade de uma resposta adequada, que tarde, por parte do Direito”13.

De facto, não andaria longe da verdade a chief credit officer da Standard & Poor’s, ao afirmar que Every time there is a crash, everyone looks for someone at whom they can

point the finger: havendo danos – leia-se, neste caso, danos provocados no contexto de

uma crise financeira – geralmente, há uma profunda preocupação em encontrar os culpados, “em apontar o dedo”, almejando-se por uma imputação, no seio do Direito Civil, que permita repara-los.

Assim, é verdade que a falência da Enron acabou por se traduzir num grande impacto na história da atividade de notação de risco, suscitando-se uma tremenda desconfiança face a estes agentes financeiros; mas, recuperando a memória do incontornável músico norte-americano Leonard Cohen, é importante reforçar que “there is a crack in everything. That's how the light gets in”. E, de facto, a comunidade académica nacional e internacional, face aos referidos fenómenos financeiros, teve – e, de resto, continua a ter – uma proveitosa oportunidade de explorar o tema da responsabilidade civil das agências de notação de risco, que motivou este nosso estudo e, na busca jurídico-dogmática pelos fatores de imputação mais adequados, elevar o tema

13 Cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Sociedades E Notação do Risco (Rating) – A Proteção dos

Investidores, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. II, Coimbra Editora,

(15)

para outras reflexões, permitindo-se dele verterem-se as mais amplas contribuições e coordenadas para tantas outras problemáticas juscivilísticas.

Quase duas décadas depois do Enron Scandal, uma década depois da crise financeira à escala global motivada pelo subprime, e depois da vasta literatura jurídica produzida (sobretudo no âmbito regulatório), valerá a pena revisitar o tema da responsabilização das agências de notação de risco e contribuir, de alguma forma, para o desenvolvimento de alguns institutos do Direito Civil, enquanto percorremos esta incursão pelo Direito do Mercado de Capitais.

Por isto mesmo escolhemos esta tema para dedicarmos a nossa dissertação de mestrado. Porque se trata um tema que espelha uma confluência das áreas científicas a que, ao longo deste Mestrado na Faculdade de Direito de Lisboa, fomos dedicando a nossa atenção e estudo14: o direito civil e o direito comercial, aqui se incluindo o direito financeiro e o subsetor do direito do mercado de capitais15.

14 Sustentando a transversalidade do tema que motivou a nossa dissertação de mestrado, não resistimos em

convocar um excerto da nota de apresentação do mais recente estudo sobre a responsabilidade civil das agências de notação de risco para humildemente concluirmos, com CARNEIRO DA FRADA, que esta mesma transversalidade, que “convida, é certo, a um esforço integrador”, foi uma das notas justificativas da escolha: “Afinal, onde quer que nos situássemos, sempre procurámos cultivar um “saber jurídico essencial” (Grundlagenwissen): como quem pretende beber das nascentes mais puras do Direito, buscando continuamente, a partir da perspetivação dos problemas jurídicos “de dentro do sistema”, a realização possível do anelo de incontingência e de perenidade daquele conhecimento mais “fundamentante” que debalde se encontra por apreensão, mais a mais se epidérmica, de zona da periferia da ordem jurídica. Daí a atenção privilegiada que conferimos ao direito comum”. Cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, A

Responsabilidade Civil das Agências de Notação do Risco (Rating) – Ensaio de Construção Dogmático-Crítica, p. 5.

15 Preferimos a designação de “instrumento financeiro” a “valor mobiliário”, como conceito central dos

instrumentos juscomerciais do mercado de capitais. Esta opção encontra-se em linha com a legislação comunitária e, de resto, portuguesa, na qual, o diploma codificador nuclear do mercado de capitais – o CVM – assume, no seu âmbito de aplicação material, o conceito de “instrumento financeiro” (artigo 2.º, n.º 2), conceito que abarca os valores mobiliários [artigos 1.º e 2.º, n.º 1, al. a), ab initio], os instrumentos do mercado monetário, com exceção dos meios de pagamento [artigo 2.º, n.º1, al. b)], e as diversas modalidades de instrumentos derivados [artigo 2º, nº1, al. c) a f)]. A este respeito, com maiores desenvolvimentos e mais referências, vide o nosso RUI VASCONCELOS PINTO, Contratos

Internacionais sobre Instrumentos Financeiros, in Revista de Direito Civil, Ano II (2017), n.º 4, pp.

879-953 (pp. 885 e seguintes). De facto, a designação de “instrumento financeiro” assume-se como o conceito central dos instrumentos juscomerciais do mercado de capitais. Com efeito, sobretudo a partir de meados do século XX, no seio dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, acabou por surgir uma dicotomia fundamental entre os títulos de crédito e os valores mobiliários, seja nos países da Common Law, seja nos países da Civil Law. Mas, recentemente, esta tradição evolutiva dos instrumentos juscomerciais de criação e circulação de riqueza conheceu novos desenvolvimentos: paralelamente ao universo dos valores mobiliários, assistiu-se ao surgimento do conceito de instrumento financeiro. Na verdade, trata-se de uma expressão utilizada pela primeira, no sentido atual do termo, pelo legislador comunitário na década de 90, na Diretiva 93/22/CEE, de 10 de maio, mas o impulso decisivo para esta nova realidade financeira foi dado pela Diretiva 2004/39/CE, de 21 de abril, intitulada Diretiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros (transposta, entre nós, pelo Decreto-Lei nº 457-A/2007, de 31 de outubro). Para uma análise geral ao enquadramento, objetivos, regime e desafios colocados pela DMIF, vide MARIA LUÍSA AZEVEDO,

(16)

coord. Maria de Fátima Ribeiro, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 31 e ss. E, cfr., quanto ao aparecimento do valor mobiliário e respetivo percurso histórico, AMADEU FERREIRA DE ALMEIDA, Desmaterialização

dos Títulos de Crédito: Valores Mobiliários Escriturais, sep. da Revista da Banca, nº 26, 1993, pp. 23 e ss.;

J. OLIVEIRA ASCENSÃO, Valor Mobiliário e Título de Crédito, sep. de Direito dos Valores Mobiliários, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Lex, Lisboa, 1997¸ pp. 27-29; PAULO CÂMARA, Manual de

Direito dos Valores Mobiliários, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 34 e ss; J. ENGRÁCIA

ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 11 e ss.

Ora, neste contexto, recorrendo a PAULO CÂMARA, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, p. 87., o “arsenal terminológico” do Direito dos Valores Mobiliários tem sido marcado pela coexistência de dois conceitos distintos: valor mobiliário e instrumento financeiro. A doutrina tem debatido qual a relação entre estes dois conceitos, gerando-se uma certa insatisfação terminológica própria, desde logo, de uma realidade algo recente no Direito Comercial e de um período, ainda, de transição. Face à densidade de elaboração doutrinária nem sempre coincidente no que às categorias conceptuais diz respeito, iremos proceder a uma fixação terminológica que nos pareceu ser a mais adequada.

Os instrumentos financeiros podem ser definidos, de acordo com J. ENGRÁCIA ANTUNES, Os

Instrumentos Financeiros, p. 7, como o conjunto de instrumentos juscomerciais heterogéneos suscetíveis

de criação e/ou negociação no mercado de capitais, que têm por finalidade primordial o financiamento e/ou cobertura do risco da atividade económica das empresas. Este é, para nós, o conceito central nesta matéria. É que, de facto, as inovações financeiras recentes alteraram os pilares do Direito positivo comercial, ultrapassando em larga medida noções como a de valor mobiliário. Este verdadeiro “imperialismo dos mercados financeiros” (FRÉDÉRIC PELTIER/MARIE-NOËLLE DOMPÉ, Le Droit des Marchés

Financiers, Presses Universitaires de France, Paris, 1998, p. 11) repercutiu-se na esmagadora maioria das

ordens jurídicas atuais, que passaram a erigir a figura dos instrumentos financeiros como um novo conceito central dos instrumentos comerciais do mercado de capitais, por se referir a uma realidade mais abrangente do que a realidade dos valores mobiliários.

Naturalmente, os valores mobiliários continuam a constituir “a pedra de toque” (J. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, p. 14) do mercado de negociação de instrumentos financeiros moderno, assumindo-se como o veículo por excelência do financiamento empresarial a médio e longo prazo. Mas este protagonismo incontornável conheceu novos desafios e paulatinamente foram surgindo novos instrumentos que ganharam uma importância crescente na criação e mobilização dos recursos financeiros para as empresas: referimo-nos aos instrumentos monetários, no mercado de capitais de curto prazo, ou aos instrumentos derivados, que conheceram uma especial importância como instrumentos fundamentais de cobertura dos riscos inerentes à atividade económica.

Como resultado desta evolução, o conceito de valor mobiliário (que engloba figuras como as Ações, Obrigações, Títulos de Participação, Unidades de Participação, Warrants, entre outras) tornou-se obsoleto para fazer face aos novos desafios do mercado de capitais, fundando-se na figura dos “instrumentos financeiros” o novo conceito central destes novos instrumentos juscomerciais. Esta evolução é patente, desde logo, na ordem jurídica portuguesa, onde o diploma codificador nuclear do mercado de capitais – o CVM – assume o seu âmbito de aplicação material no conceito de “instrumento financeiro” (artigo 2º, nº2), conceito que abarca os valores mobiliários (arts. 1º e 2, nº1, al. a), ab initio), os instrumentos do mercado monetário, com exceção dos meios de pagamento (artigo 2º, nº1, al. b)), e as diversas modalidades de instrumentos derivados (artigo 2º, nº1, al. c) a f)).

Esta centralidade do conceito de instrumento financeiro, que engloba as demais figuras referidas, nomeadamente a de valor mobiliário, encontrou um impulso decisivo na DMIF) – Diretiva 2004/39/CE -, que erigiu expressamente aquele conceito como a nova figura-chave da regulação do mercado de capitais (art, 4º, nº1, ponto 17 da Diretiva). Esta posição é corroborada por autores como J. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos Financeiros, pp. 14-16; J. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Novíssimo Conceito

de Valor Mobiliário, in “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. VI, Coimbra Editora, 2006, p. 143; e

RENATO GONÇALVES, Nótulas Comparatísticas sobre os Conceitos de Valor Mobiliário, Instrumento

do Mercado Monetário e Instrumento Financeiro na DMIF e no Código dos Valores Mobiliários, in

“Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários”, nº 19, 2004, p. 95. No entanto, esta orientação está longe de ser pacífica na doutrina nacional, onde surgem autores como PAULO CÂMARA, Manual de Direito

dos Valores Mobiliários, pp. 87 e ss, que defendem que o conceito de valor mobiliário continua a ser o

conceito central na matéria, porquanto se encontra melhor sedimentado, sugerindo que metodologicamente “é mais seguro concentrarmo-nos neste conceito [valor mobiliário] – e depois apurar a extensão do conceito de instrumento financeiro”. Contudo, PAULO CÂMARA não deixa de sublinhar que enquanto categoria jurídica, os instrumentos financeiros incluem os valores mobiliários – “posições jurídicas representadas e circuláveis”-, assim como os instrumentos do mercado monetário e os derivados. No entanto, o autor defende que não é possível encontrar uma unidade funcional em torno destes três conceitos, porquanto o

(17)

Adicionalmente, motivou-nos esta escolha de tema porque, mesmo vinte anos depois do Enron Scandal, julgamos continuar na ordem do dia a questão da responsabilidade civil das agências de notação de risco16. Afinal, ainda no passado mês de outubro de 2018, o jornal português Público17 anunciava que a Moody’s, ao fim de sete anos, havia retirado o rating de Portugal do lixo. Isto, depois da S&P ter qualificado, durante um intenso período consecutivo superior a cinco anos (entre janeiro de 2012 e setembro de 2017), o rating de Portugal no nível de junk, condicionando o acesso de Portugal ao financiamento do Banco Central Europeu.

Junk. É uma palavra difícil de engolir pela soberania estadual, que se sente

ameaçada e condicionada por estes organismos supranacionais que são as agências de notação de risco. Recuemos na história portuguesa a 2011 e o jornal Público ajuda-nos na elaboração de uma breve resenha histórica, disponível na já mencionada notícia: “Estava-se em Julho de 2011, com a troika acabada de chegar ao país, e a Moody’s passou

conceito e a disciplina dos valores mobiliários repousa na sua transmissibilidade e, conforme adiante veremos, os derivados “não são de todo transmissíveis (caso dos derivados de mercado), ou apenas são passíveis de cessão de posição contratual” (no que concerne aos derivados negociados fora do mercado) ”. Conforme dissemos, o conjunto dos instrumentos financeiros elencados no artigo 2º, nº1, al. a) a f) e nº2 do CVM poderá ser ordenado em três categorias fundamentais: os instrumentos mobiliários (valores mobiliários), os instrumentos monetários e os instrumentos derivados. Trata-se de uma divisão tripartida dos instrumentos financeiros que constitui, apenas, uma mera categorização teórica com pretensões didáticas, não deixando de ser um elenco tendencial, incapaz de ilustrar o ainda o inesgotável universo dos mercados de instrumentos financeiros. Partilhando, também, de uma semelhante divisão, vide LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Aplicável às Operações sobre Instrumentos Financeiros, p. 662, defendendo que “são instrumentos financeiros, designadamente, não só as ações, obrigações, títulos de participação, unidades de participação em instituições e investimento coletivo e warrants autónomos (que são entre nos considerados valores mobiliários), mas também opções, futuros e swaps (…) (que são entre nós considerados instrumentos financeiros derivados que não são valores mobiliários) ”.

Repare-se, por fim, que a lei não fornece qualquer definição legal para o conceito de “instrumento financeiro”, optando por elencar, apenas, os instrumentos que devem ser qualificados como tal. Esta ausência de uma definição legal tem sido criticada na doutrina nacional, uma vez que esta omissão definitória será mais apta a esconder as dificuldades do que a resolvê-las (cfr., J. OLIVEIRA ASCENSÃO,

O Novíssimo Conceito de Valor Mobiliário, p. 143). Em nossa opinião, atendendo ao período de transição

em que se encontram os instrumentos de captação e circulação de riqueza juscomerciais, parece-nos que o valor da segurança jurídica deve ser uma prioridade legislativa, pelo que será normal que a técnica da enumeração adotada prevaleça sobre a da definição substancial (vide, na doutrina estrangeira, PAUL LE CANNU, L’Ambiguïté d’un Concept Négatif: Les Valeurs Mobilièrs, in “Bulletin Joly Sociétés”, nº 4, 1993, p. 395).

Por tudo isto, e na senda de J. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Contratos de Intermediação Financeira, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXV, 2009, p. 277, consideramos mais correto chamar, hoje, ao Direito dos Valores Mobiliários, Direito do Mercado de Capitais, uma vez que o seu eixo regulatório central reside no conceito de “instrumento financeiro”, abrangendo-se, assim, o mercado de capitais em sentido lato, o qual inclui, para além do mercado de valores mobiliários, o mercado de derivados e o mercado monetário.

16 Cfr., sustentando que, mesmo em 2018, ninguém negará a atualidade e o interesse do tema escolhido,

MANUEL CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação do Risco (Rating)

– Ensaio de Construção Dogmático-Crítica, p. 6.

17 Cfr. notícia disponível em

(18)

repentinamente a ser um nome famoso em Portugal, quando se tornou na primeira agência de notação financeira internacional a colocar o rating (classificação de risco) português no nível “lixo”. Com as taxas de juro da dívida imediatamente a subirem para níveis ainda mais incomportáveis e as outras agências a ameaçarem fazer o mesmo, políticos de todos os quadrantes protestaram, as redes sociais indignaram-se e até uma nova estatueta do Zé Povinho foi criada para tornar mais fácil o protesto contra a agência. Esta sexta-feira, mais de sete anos depois, a Moody’s, que entretanto continuou a ser a agência mais céptica em relação à recuperação económica e orçamental, deu sinais de ter voltado a confiar no país: colocou o rating novamente em “nível de investimento”, e Portugal deixou de ter qualquer das três principais agências mundiais a classificar a sua dívida como “lixo”.”

Diz-nos o jornal nacional Observador18 que, com este novo rating, a Moody’s fez

as pazes com o Zé Povinho: “quando a Moody’s decidiu cortar o rating, até a Bordallo Pinheiro fez uma “reinterpretação” das estátuas do “Zé Povinho”, com o gesto que lhe é característico e o título “Toma, Moody’s”. Agora, o impacto destas “pazes” da Moody’s com Portugal para a perceção de risco nos mercados deverá ser limitado (até porque não é propriamente uma surpresa e os juros já têm vindo a incorporar boas notícias como esta) mas positivo”.

Para que se perceba o impacto no panorama económico português desta mais saudável notação de risco, na prática, e de forma particularmente sintética e resumida, além de poder contar com mais fundos de pensões, seguradoras ou fundos de investimento que precisam dos três ratings positivos para poder investir, Portugal passa também a integrar mais novos índices globais de dívida de países desenvolvidos, incluindo um relevante índice gerido pelo JPMorgan (uma multinacional americana, sediada em Nova York, dedicada aos serviços de banco de investimento e serviços financeiros), como o

Emerging Markets Bond Index Plus, o que, naturalmente, também aumenta o leque de

investidores na dívida portuguesa.

Enfim, as condutas que têm sido imputadas às agências de notação de risco, pelos seus ratings inexatos, pelas suas omissões ou pelas suas atuações em manifesto conflito de interesses são suscetíveis de atingir de forma muito prejudicial um largo número de

18 Cfr. a notícia disponível em

(19)

investidores, de entidades múltiplas e, em certos casos, países inteiros. E, por isso, ninguém duvidará da manifesta necessidade de o Direito se debruçar sobre estas condutas, prevenindo-se os naturais excessos e desproporções típicos de um tema que acabou sujeito a um intenso, e sempre célere e instantâneo, julgamento mediático.

1.2 DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO E FIXAÇÃO DOS TIPOS DE CASOS MAIS

RELEVANTES

Por todos estes motivos, propomo-nos versar sobre a responsabilidade civil das agências de notação de risco. O intuito é o de contribuir para a construção dessa responsabilidade mediante uma exposição e esclarecimento críticos e atualistas dos seus referentes dogmáticos.

Com efeito, e porque às notações de risco têm sido associadas atuações parciais, de independência duvidosa e, não raras vezes, em conflito de interesses, tem sido lançada a suspeita em torno de possíveis manipulações de mercado à escala transnacional.

Nas palavras de CARNEIRO DA FRADA19, estas manipulações traduzem-se em apreciações incorretas sobre a solvência / insolvência de um certo emitente de instrumentos financeiros ou acerca da capacidade de determinado sujeito cumprir com os seus compromissos, acabando por prejudicar de forma profunda múltiplos sujeitos.

Desta forma, a intensa discussão em torno da persistente turbulência financeira à escala mundial tem vindo a expandir-se gradualmente da área política e económica para a área jurídica, motivando uma série de iniciativas destinadas a promover a concorrência, a transparência, entre outros aspetos regulatórios, do mercado de ratings20. Paralelamente,

19 Cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Sociedades E Notação do Risco (Rating) – A Proteção dos

Investidores, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. II, Coimbra Editora,

1.ª edição, Julho 2013, p. 317.

20 Não será nossa missão, neste estudo, proceder a uma análise de foro económico ou financeiro em torno

destes agentes económicos e das situações de crise a que se encontram, invariavelmente, ligados. Por isso, também não é objetivo desta exposição debruçamo-nos sobre o paradigma de regulação e supervisão do sistema financeiro e, em concreto, das agências de notação de risco e sobre o seu papel na crise financeira internacional. Vide, para essa análise, com mais referências, DIOGO FEIO / BEATRIZ SOARES, O Poder

das Agências, Lisboa, Matéria-Prima Edições, 2012, com uma profunda análise do impacto dos ratings nos

mercados financeiros; PAULO CÂMARA, Crise Financeira e Regulação, in Revista da Ordem dos Advogados (ROA), Ano 69, 2009, Lisboa; TIAGO MATEUS, O Novo paradigma da Regulação e

Supervisão do Sistema Financeiro na União Europeia – O Caso das Agências de Notação de Risco,

AAFDL, Lisboa, 2015; ISABEL ALEXANDRE / ANA DINIZ, O Regulamento (CE) n.º 1060/2009 e o

(20)

têm-se vindo a discutir quais os melhores mecanismos para assegurar a tutela ressarcitória dos investidores, quando estes sofram prejuízos resultantes de condutas culposas por parte das agências de rating.

Impõe-se, pois, uma reflexão, de acentuada natureza jurídica, acerca do controlo da atividade de notação de risco. Importa, à partida, fundamentalmente distinguir entre mecanismos de tutela ex ante e ex post, consoante se pretenda centrar a discussão numa atuação preventiva, procurando evitar-se notações de risco lesivas e incorretas, ou numa atuação reativa, em função da violação de determinados preceitos legais.

Será nos mecanismos de tutela ex post que nos debruçaremos neste estudo, porquanto pretendemos contribuir para a construção da responsabilidade civil das agências de notação de risco, mediante uma análise crítica das coordenadas dogmáticas da teoria geral do direito de imputação de danos21.

Neste caminho, encontraremos os obstáculos típicos de um tema com implicações à escala global e que de nós exigirão um tratamento dogmático ponderado e integrado. Com efeito, à dimensão planetária do problema não corresponde, ainda, uma reação adequada do Direito, porquanto faltam respostas sedimentadas e critérios de solução adequados. Paralelamente, a transposição das fronteiras dos espaços nacionais introduz incertezas à reflexão jurídica, que se torna mais delicada e transversal, ainda que nos orientemos, na resolução do problema aqui proposto, fundamentalmente pela nossa ordem jurídica. São, pois, os quadros da ordem jurídica portuguesa que nos guiarão neste nosso estudo, na procura de soluções partilháveis de modo alargado.

Trata-se, pois, de um tema que tem originado abundantes discussões no seio da doutrina, motivadas, fundamentalmente, conforme já destacamos, pelo diálogo constante entre o Direito Civil – enquanto um ramo de Direito comum a todo o sistema jurídico – e

separata da Revista do Ministério Público, 128, Out./Dez. de 2011; HUGO MOREDO SANTOS, A

Notação de Risco e os Conflitos de Interesse, pp. 471-563 s; DELFIM VIDAL DOS SANTOS, As Agências de Notação de Risco e a Crise Financeira Planetária, in Revista de Direito das Sociedades (RDS), n.º 1,

Almedina, Lisboa, 2011, pp. 137-168; e JOÃO FILIPE GRAÇA, Agências de Notação de Risco, in Publicações CEDIPRE Online, n.º 14, disponível em http://www.cedipre.fd.uc.pt, Coimbra, Setembro de 2012.

21 MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Sociedades E Notação do Risco (Rating) – A Proteção dos

Investidores, p. 319, destaca pertinentemente que, vigorando no direito privado o princípio da autonomia

dos sujeitos, a tutela que ele proporciona não se centra tanto no controlo ex ante (de cariz preventivo) do procedimento conducente às notações de risco, versando, antes, na proteção dos atingidos perante notações incorretas. Assim, “o campo por excelência do direito privado é, portanto, o da intervenção ex post, verificada uma notação inexata ou deficiente”.

(21)

o Direito Financeiro, através do seu subsetor do direito do mercado de capitais, nomeadamente por via do Código dos Valores Mobiliários (CVM)22 e dos vários Regulamentos emitidos no quadro comunitário.

Com efeito, o CVM, enquanto diploma central do Direito do Mercado de Capitais, não regula detalhadamente a atividade de notação de risco, nem se debruça diretamente sobre a matéria da responsabilidade civil das agências de rating23. Adicionalmente, não procede a nenhuma remissão explícita para o Código Civil (o principal texto legislativo de Direito civil, relevante, neste caso, devido ao instituto da responsabilidade civil), porquanto são os seus conceitos e os regimes que lhe estão associados que, por defeito, o intérprete pressupõe.

De facto, as exigências da informação projetam a sua sombra sobre quase todos os institutos do Direito do Mercado de Capitais, colocando constantes desafios à ciência jurídica que, devido à crescente sofisticação dos termos em que assentam as transações nos mercados financeiros, deve proceder a um esforço de acompanhamento crítico e atualizado no que aos seus quadros teóricos diz respeito. A atividade de notação de risco, desempenhada por agentes que são verdadeiros intermediários de informação, deve merecer, por isso, uma reforçada atenção.

O tratamento da informação enquanto facto jurídico relevante e potencialmente gerador de responsabilidade é um dos campos paradigmáticos onde residem várias problemáticas que têm originado abundantes discussões no seio da doutrina e da jurisprudência motivadas, fundamentalmente, como se disse, pelo diálogo constante entre o Direito civil – enquanto um ramo de Direito comum a todo o sistema jurídico – e o Código dos Valores

22 Para uma análise da relação do Código dos Valores Mobiliários com o restante sistema jurídico e para

um apanhado geral das fontes mobiliárias, vide, com mais referências, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, O Código dos Valores Mobiliários e o Sistema Jurídico, in “Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários”, nº7, abril de 2000, CMVM, pp. 19-47. O autor conclui que, apesar da regulação plural e diversificada dos instrumentos financeiros, a unidade do sistema de fontes é assegurada pelo próprio CVM, na medida em que, sendo a fonte principal do sistema, determina a solução específica e, por vezes, (quase) completa de algumas questões. Para além disto, as relações de subordinação hierárquica e de coordenação entre normas formalmente colocadas ao mesmo nível contribuem, também, para a harmonia coerente entre as diferentes fontes jusmobiliárias.

23 Note-se que o CVM não abrange toda a matéria mobiliária, nem era essa a pretensão do legislador: nas

palavras de ANTÓNIO BARRETO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, Lisboa, 2016, pp. 47-53, o CVM apresenta-se mais leve e simples do que o seu antecessor (o Código do Mercado de Valores Mobiliários, publicado em Abril de 1991), assumindo uma sistematização mais elegante, sendo dada especial ênfase a partes gerais – o que tende a promover uma unidade interna sempre desejável, motivada pelo notório cuidado em incluir o diploma no sistema jurídico português, evitando-se a tentação de reformular conceitos e institutos já existentes e consolidados.

(22)

Mobiliários (CVM), ainda que o CVM não se debruce, diretamente, sobre a problemática da responsabilidade civil das agências de notação de risco por ratings inexatos.

Na verdade, trata-se de matéria regulada pelo legislador comunitário, através de regulamentos comunitários adiante analisados, que têm, como se sabe, caráter geral, são vinculativos em todos os seus elementos e são diretamente aplicáveis por todos os Estados-Membros desde a sua entrada em vigor (na data por ele estabelecida ou, à falta dela, no vigésimo dia que se segue à sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia) sem que deva ser objeto de um ato nacional de transposição. Por isto, estes regulamentos comunitários devem ser integralmente respeitados por todas as entidades às quais sejam aplicáveis (nomeadamente, particulares, Estados-Membros e instituições da União Europeia)24.

Com efeito, numa matéria, como a atividade de notação de risco, que assume proporções à escala mundial, a regulação através de regulamentos comunitários torna-se particularmente útil e decisiva, porquanto visa garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia em todos os Estados- Membros. Simultaneamente, torna não aplicáveis quaisquer normas nacionais que sejam incompatíveis com as disposições materiais contidas nos regulamentos.

Mas este diálogo – fundado numa relação de complementaridade entre um regime geral (Direito Civil) e um regime especial (Direito Financeiro) –, feito sobretudo através das referências implícitas que encontramos em múltiplos preceitos do CVM e através de uma relação de hierarquia entre o direito nacional e o direito comunitário, exige um cuidado acrescido por parte de intérprete que, invariavelmente, se depara com soluções legais híbridas e com enquadramentos de diversas proveniências.

Assim, e colocando em especial evidência este cuidado diálogo entre o Direito civil e o Direito Financeiro25, e entre o direito nacional e o direito comunitário, o presente estudo visa aprofundar a proteção de determinados sujeitos (entidades notadas e

24 Cfr., sobre as fontes e o âmbito de aplicação do Direito da União Europeia, a ficha técnica sobre a União

Europeia, emitida pelo Parlamento Europeu, datada de maio de 2018, da autoria de Udo Bux, e disponível em http://www.europarl.europa.eu/ftu/pdf/pt/FTU_1.2.1.pdf; vide, ainda, para uma abordagem mais ampla e aprofundada, com relevantes notas jurisprudenciais, SOFIA OLIVEIRA PAIS, Princípios Fundamentais

de Direito da União Europeia - Uma Abordagem Jurisprudencial, Reimpressão da 3ª Edição, Almedina,

2014.

25 Cfr., para a consulta de diversos estudos que se “integram na zona de confluência do direito civil, do

direito bancário e do direito dos valores mobiliários”, MAFALDA MIRANDA ALVES, Direito Civil e

(23)

investidores), perante notações de risco inexatas, levadas a cabo pelas agências de rating, convocando-se, em concreto, a tutela fundada no instituto da responsabilidade civil.

Neste cenário, cumpre salientar que a responsabilidade civil das agências de rating se desdobra em dois planos principais: perante os emitentes e perante os investidores.

Em primeiro lugar, destaca-se a responsabilidade civil perante os emitentes de instrumentos financeiros, quando estes (ou os seus produtos financeiros ou valores mobiliários) tenham sido objeto de uma notação de risco incorreta (tipicamente, um

underrating), e daí tenham resultado prejuízos para esses mesmos emitentes.

Depois, há a considerar a possibilidade de uma obrigação de indemnizar a cargo das agências de notação de risco perante os investidores que, fundados numa notação de risco inexata (tipicamente, uma notação de risco indevidamente favorável, ou seja, um

overrating), concederam crédito à entidade notada ou procederam a outras decisões

financeiras (por exemplo, subscrição e compra de valores mobiliários; ou decisões de não desinvestimento, mediante a respetiva alienação) que não teriam tomando, vindo a sofrer prejuízos26.

E, neste contexto, sem prejuízo de um maior desenvolvimento conceptual que faremos ao longo deste nosso estudo, adiantamos, desde já, que se vislumbram duas hipóteses típicas a ter em consideração, em qualquer um dos dois planos de responsabilidade civil descritos: as situações de ratings solicitados pelos emitentes de valores mobiliários / outras entidades, nas quais os investidores figuram como meros terceiros face às informações contidas nos relatórios de notação de risco publicados (há, portanto, uma delimitação subjetiva tripartida entre a agência de notação de risco, o emitente / entidade que solicita o rating e os investidores); e as situações de ratings não solicitados, realizados por iniciativa das entidades de notação de risco, que poderão de igual forma, uma vez publicados os relatórios de notação de risco, afetar quer os investidores que os consultem e neles fundem as suas decisões, quer as entidades alvo da notação inexata, que vêm a sua reputação nos mercados variar de forma negativa.

26 Cfr. MANUEL CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação do Risco

(Rating) – Ensaio de Construção Dogmático-Crítica, p. 23, destacando que estes sujeitos podem ser

diversos: credores de emitentes alvo de notação, parceiros de negócios, sócios sobrevindos ou supérstites (por causa do rating incorreto), aforradores individuais ou institucionais (que compraram produtos financeiros arriscados ou tóxicos), etc.

(24)

Desta forma, face aos dois planos de responsabilidade civil mencionados (perante as entidades notadas e perante os investidores), nos quais se encontram diversos casos típicos relevantes (nomeadamente, o caso dos ratings solicitados ou não solicitados), o caminho para a construção da responsabilidade civil das agências de notação de risco terá de mobilizar as várias modalidades e fundamentos daquele instituo juscivilístico, por forma a convenientemente percorrer e responder aos vários cenários descritos e possíveis. Com efeito, face à atualidade e complexidade do tema e devido ao número bastante alargado de potenciais lesados, suscita-se a necessidade de se delinear de forma razoável e integrada a responsabilização destes agentes financeiros: pretende-se, pois, averiguar cuidadosamente o papel desempenhado por certas estruturas essenciais e clássicas do direito da responsabilidade civil na tutela das entidades notadas e dos investidores perante notações de risco inexatas, para lá das contingências espácio-temporais provocadas pela intervenção de sujeitos que operam a partir de países terceiros27.

Por fim, destaque-se que complexidade da matéria reside na relação de tensão existente entre, por um lado, a evidência da necessidade de responsabilização das agências de notação de risco perante determinados prejuízos provocados aos investidores ou às entidades notadas e, por outro lado, o alerta de que uma desmesurada responsabilização destes agentes financeiros, face ao número potencialmente bastante alargado de investidores, poderia gerar espirais indemnizatórias intoleráveis e riscos de sérios efeitos perversos no mercado de capitais.

A verdade é que conteúdo se destina à imposição de obrigações de reparar ou de indenizar os danos sofridos por outrem: trata-se, portanto, de uma restrição ao princípio geral de que a suportação do dano é feita por quem o sofre (casum sentit dominus), imputando os danos a pessoa diferente daquela que originariamente os suportou. A razão de ser e a função do instituo da responsabilidade civil funda-se, por isso, na necessidade de deslocar um dano ocorrido de quem o sofreu, o lesado, para aquele que o causou, o lesante, de acordo com determinados critérios legais.

27 Por razões de limitações de tempo, os aspetos relacionados com o direito internacional-privaístico não

poderão ser aprofundadamente abordados neste estudo, uma vez que ultrapassariam em larga medida o objeto da nossa análise. Vide, no entanto, a notável reflexão sobre a responsabilidade das agências de notação de risco e os desafios da globalização em CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das

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