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A R ESPONSABILIDADE O BRIGACIONAL E OS SEUS L IMITES

A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO PERANTE OS I NVESTIDORES

3 A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO P ERANTE OS

3.2 A R ESPONSABILIDADE O BRIGACIONAL E OS SEUS L IMITES

Começando pela hipótese típica onde exista um contrato entre a agência de rating e o emitente/entidade (solicited rating), figurando o investidor como um terceiro face a esta relação contratual, cumpre averiguar se a estes terceiros investidores, ainda que não sejam parte do contrato de notação de risco, assiste o direito a serem ressarcidos por eventuais prejuízos causados por uma notação de risco inexata, que tenha gerado investimentos ruinosos aos investidores. Releva, portanto, a tutela providenciada pela responsabilidade civil obrigacional.

A este respeito, convoca-se, à partida, o princípio da relatividade dos contratos278 para se estabelecer que as obrigações contratuais apenas produzem efeitos entre o credor e o devedor. E, de acordo com o artigo 406.º, n.º 2 CC, um contrato só produz efeitos em relação a terceiros nos casos e termos especialmente previstos na lei (figurando, neste âmbito, como caso típico o exemplo paradigmático do contrato a favor de terceiro, cujo regime jurídico consta dos artigos 443.º a 451.º do Código Civil). Com efeito, a verdade é que a responsabilidade obrigacional se funda em vínculos específicos entre as partes, lidando com vínculos pré-estabelecidos, cognoscíveis e livremente contratualizados entre credor e devedor279.

Por isto, trata-se de uma responsabilidade civil particularmente severa para aquele que incumpra uma obrigação livremente por si assumida, convocando-se, a este respeito, a presunção estabelecida no artigo 799.º do Código Civil, que obriga o devedor faltoso a ilidir a presunção de culpa para afastar a sua responsabilidade civil. Contrariamente, a presunção de culpa da responsabilidade civil delitual recai sobre aquele que alega ter sofrido uma lesão, porquanto este campo aquiliano assume configurações particularmente diferentes da realidade obrigacional: com efeito, é pautado por um conjunto de situações genéricas, isto é, vínculos jurídicos impostos a todos os indivíduos, que muitas vezes são

VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10º Ed., Coimbra, Almedina, 2012, pp. 518 e ss; e ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12º Ed., Coimbra, Almedina, 2011, pp. 517 e ss.

278 Este princípio funda-se em normas como os artigos 397.º, 398.º. n.º 1, 405.º, n.º 1, 406.º, n.º 2 e 424.º do

Código Civil. Cfr., para mais desenvolvimentos, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito

Civil Português, II, tomo II, Almedina, 2010, pp. 59 e ss, explicando que “a relatividade corresponde à

natural seletividade das relações humanas. O relacionamento, quando minimamente consistente, estabelece-se entre pessoas determinadas”.

279 Note-se que a relatividade dos contratos tem como limite o perímetro subjetivo dos deveres de prestar

instruídos no contrato, através do consenso das partes. É, porém, manifestamente insuficiente para tutelar terceiros investidores.

até mal apreendidos pelas partes e que impõem ao legislador uma preocupação em respeitar a liberdade de movimentação no espaço jurídico.

Neste seguimento, uma vez que o investidor que funda a sua decisão de investir na notação de risco não é parte do contrato que solicitou o rating, configurando-se como um mero terceiro face às obrigações previamente assumidas inter partes, não terá, à partida, direito indemnizatório fundado nesta responsabilidade civil contratual.

A verdade é que o âmbito nuclear da responsabilidade civil contratual é, necessariamente, determinado pela autonomia privada dos sujeitos contraentes e, por isso, trata-se de uma responsabilidade delimitada pelo programa obrigacional voluntariamente assumido pelas partes o que, em sede de tutela do investidor, revela a sua estreiteza280 e as suas limitações.

Mesmo nos raros casos em que o contrato é celebrado diretamente entre a agência de rating e o investidor, não estaremos perante contratos de prestação de serviços e não se estabelecem quaisquer deveres de aconselhamento para com o investidor: pensamos, aqui, no caso da subscrição de publicações ou assinatura de serviços eletrónicos por parte dos investidores. Ora, nem neste quadro contratual os investidores serão, em regra, capazes de descobrir cláusulas que os tutelem.

Exemplificativamente, note-se que as obrigações decorrentes dos contratos celebrados pelas agências de rating, que disponibilizam informação sobre notações de risco a entidades que atuam no mercado de capitais, nomeadamente mediante a subscrição de publicações ou a assinatura de serviços eletrónicos, cingem-se, na maior parte dos casos, a facultar o acesso aos respetivos suportes informativos (à entrega das publicações correspondentes). Conforme sublinhamos, não se tratarão, por isso, tipicamente de contratos de prestação de serviços, nem se estabelecem, na maior parte dos casos, de forma acessória, deveres de aconselhamento para com o investidor.

280 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

p. 38, alertando para a “estreiteza” da responsabilidade contratual para a tutela dos investidores, porquanto a mesma é delimitada pelo programa obrigacional assumido de forma voluntária pelos contraentes. No entanto, o autor destaca pertinentemente que existem, por certo, regras disciplinadoras da relação contratual que não constituem expressão (direta ou indireta) da autonomia privada dos sujeitos, nem estão ao serviço imediato das suas estipulações, desencadeando uma responsabilidade por violação de prescrições de direito objetivo que já não consente, sem mais, as valorações próprias das primeiras, nem se submetem por inteiro ao mesmo regime. Pensará, nesta sede, o autor nos deveres de proteção contratuais que não têm ordinariamente guarida nas declarações que compõem um contrato.

Ou seja, as agências de notação de risco tipicamente não se vinculam a promessas de elaboração diligente das notações de risco nem a deveres de aconselhamento convencionados, o que reduz a utilidade da tutela contratual.

E aqui reside uma das maiores dificuldades, do ponto de vista do investidor lesado, que atravessa a tutela contratual: as agências de notação de risco não se vinculam contratualmente à qualidade da informação prestada, no sentido de que não respondem pela sua exatidão. Aliás, nas mais das vezes, as agências de rating declaram não pretenderem dar recomendações de investimento, excluindo, à partida, a vinculação à qualidade da informação.

Naturalmente, os investidores confiam nas informações prestadas, formulando juízos de investimento com base nessas mesmas informações, mas recorremos à teoria do negócio e a CARNEIRO DA FRADA281 para concluir que “a responsabilidade pela confiança confronta-se com os limites do negócio. Onde os efeitos de uma condutam logrem ainda explicar-se como decorrência de um ato de autonomia privada, a proteção indemnizatória das expectativas não é suscetível de desempenhar papel algum: tudo se reconduz à violação de uma adstrição negocial. Se o sistema da proteção da confiança se confundisse com o negócio, tal implicaria a perda da sua independência dogmática”.

De facto, devemos evitar ataques persistentes à vontade humana, à vontade negocial, enquanto critério e limite do negócio jurídico: o pensamento da confiança não é suscetível de constituir o fundamento decisivo do negócio jurídico. Por isso, o essencial do negócio jurídico é a vontade do agente de se vincular juridicamente (não bastando, por conseguinte, a simples consciência de vinculação) pelo que não são de aceitar como negociais determinados efeitos não correspondentes à vontade dos sujeitos.

Assim, há que destrinçar devidamente entre os efeitos que decorrem da autodeterminação dos sujeitos e do exercício da sua autonomia privada e as consequências que se lhes impõem por força de valorações do direito objetivo, de modo a acautelar as expectativas alheias.

Naturalmente, não cremos, com este reconhecimento da autonomia da responsabilidade pela confiança com respeito à teoria do negócio, levar a precipitadas conclusões de não existirem ligações entre ambas: naturalmente, o exercício da

autonomia privada por alguém implica, sem dúvida, igualmente riscos para os outros. Apenas pretendemos deixar claro que a responsabilidade contratual não será o melhor enquadramento dogmático para a tutela de tais expectativas.

Assim, concluímos com CARNEIRO DA FRADA282 para sustentar que “pode afirmar-se que o princípio da proteção das expectativas se ergue com autonomia e especificidade aí onde os efeitos jurídicos de uma conduta já não possam ser atribuídos ao exercício da liberdade de autodeterminação da pessoa mediante a conformação de consequências jurídicas. Aqui começa o campo legítimo do pensamento da confiança. Conquanto esta faça também a sua aparição no domínio do negócio, não é, ainda então, nele que radica o respetivo fundamento. Com efeito, se fosse de dizer que a confiança constituía a causa da eficácia negocial, teria de concluir-se que, onde essa confiança se não gerasse por qualquer razão, aquela eficácia também não se daria. A consequência é inadmissível e não pode aceitar-se, pois bem se sabe que o negócio produz os seus efeitos mesmo que os sujeitos entre os quais ele se estabelece mantenham entre si uma atitude de acesa desconfiança. Autonomia privada negocial e proteção da confiança são aqui realidades em antinomia. Está, desde modo, prejudicada a possibilidade de ancorar a teoria do negócio no pensamento da proteção das expectativas; não é viável coloca-lo sobre a égide da confiança como instituto mais vasto que o abranja conjuntamente com outras realidades.”

Retenha-se, pois, que relatar, dar notícia, de uma notação de risco a alguém é absolutamente diferente de comprometer-se a elaborar ou a apresentar um rating cuidadoso a certa pessoa e não equivale, seguramente, a prestar uma garantia da qualidade da informação que se veicula. Por isso: fazer responder o sujeito por danos de quem a resolve considerar na sua decisão de investimento é, a esta luz, excessivo e desproporcionado283.

No mais: conforme dissemos, o contrato de rating é tipicamente celebrado entre as agências de notação de risco e um emitente, não com terceiros investidores. Ora, desta forma, o contrato não poderá ser, como se deixou claro, a base da responsabilidade para

282 Vide CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pp. 66 e ss para uma

completa análise da problemática em torno da teoria do negócio, ponderando as mais relevantes orientações que fazem carreira na doutrina lusa e que, aqui, não temos oportunidade de cuidadosamente analisar e aprofundar.

283 Neste sentido, CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco

tutelar este leque indeterminado, bastante vasto e variável, dos atingidos por notações de risco incorretas, porquanto estes atingidos não serão os titulares formais do negócio de

rating, de compra das publicações especializadas ou da prestação de serviços de

informação.

Em suma, diremos que o princípio do contrato, que representa um consenso inter

partes apenas justifica a produção dos efeitos que as partes pretenderam estabelecer entre

si. Ou seja, pela relatividade dos seus efeitos, o contrato, que tem no seu núcleo um consenso inter partes e uma vontade de produção de efeitos relativa, está longe de poder tutelar convenientemente o conjunto dos investidores que merecem ser protegidos.

O que implica a exploração de outras vias de responsabilização das agências de notação de risco perante terceiros284, nomeadamente através da expansão da área do direito dos contratos.

Em causa está, portanto, o recuso à figura do contrato com eficácia de proteção para terceiros. Vejamos a sua potencial utilidade.