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O CONTRATO COM E FICÁCIA DE P ROTEÇÃO DE T ERCEIROS

A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO PERANTE OS I NVESTIDORES

3 A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO P ERANTE OS

3.3 O CONTRATO COM E FICÁCIA DE P ROTEÇÃO DE T ERCEIROS

Ora, face ao facto de o princípio da relatividade dos contratos não ser um valor inabalável no nosso ordenamento jurídico, alguns autores nacionais285 têm ensaiado uma possibilidade de se responsabilizar as agências de notação de risco perante os investidores (nos casos de solicited ratings), convocando a doutrina dos contratos com eficácia de proteção de terceiros.

Nas palavras de MENEZES CORDEIRO, “adivinha-se, na origem de um contrato com eficácia protetora de terceiros, a quebra do chamado princípio do contrato pelo qual, do convénio entre partes determinadas, não poderia advir ação alguma contra terceiros ou

284 Ainda no âmbito da tutela dos investidores lesados por notações de rating inexatas ao abrigo da

responsabilidade civil obrigacional, poder-se-ia, também, projetar a hipótese de se recorrer ao regime civil da venda de coisas defeituosas, previsto nos artigos 913.º e ss do Código Civil. Assim, poder-se-ia equacionar a responsabilidade das agências de notação de risco perante os investidores que fossem assinantes das plataformas de informações sobre ratings. No entanto, concordamos com CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating), pp. 39-40 para dizermos que a notação de risco não é, propriamente, uma coisa com substrato físico suscetível de dar lugar às consequências próprias de coisas defeituosas.

285 Cfr. RICARDO FALCÃO, Da Responsabilidade das Agências de Notação de Risco perante os

a seu favor. Na erosão desse princípio – que correspondeu sempre, aliás, mais a um postulado central de tipo axiomático, do que a uma expressão dogmática efetiva, ditada por necessidades jurídicas pensadas – foram decisivos, no espaço alemão, o instituto do contrato a favor de terceiros e, mais tarde, o repensar do sistema jurídico-privado, dinamizado em torno da boa fé. (...) Dentro desses parâmetros, pode enunciar-se o sentido da eficácia protetora de terceiros: certos contratos compreenderiam entre os seus efeitos, determinados deveres a cumprir perante pessoas estranhas à sua celebração”286.

Trata-se de uma figura desenvolvida pela doutrina e jurisprudência alemãs do século XX, que acabaria plasmada, pelo legislador alemão, no § 311, n.º 3 do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch) ao estabelecer que “Também pode surgir uma relação obrigacional com deveres no sentido do § 241/2 perante pessoas que não sejam, elas próprias, partes no contrato. Semelhante relação obrigacional surge, particularmente, quando o terceiro deposite uma especial confiança e através disso as negociações estruturais ou a conclusão do contrato sejam consideravelmente influenciadas”.

O contrato com eficácia de proteção de terceiros seria, depois, importado para Portugal através da aceitação da figura por autores como MENEZES CORDEIRO287, MOTA PINTO288, SINDE MONTEIRO289 E CARNEIRO DA FRADA290.

Em traços gerais, trata-se, não de um caso em que um terceiro adquire um direito à prestação prometida num contrato (contrato a favor de terceiro), mas antes de um caso onde se estende o dever de cuidado, que o devedor sempre teria face ao credor, a um terceiro, o qual, no caso de violação desse dever, fica diretamente legitimado a uma pretensão indemnizatória (este terceiro passa a figurar como credor de um direito de prestação secundário).

A ideia fundamental a reter desta figura é a de que determinados negócios podem envolver terceiros sob a sua proteção, ainda que estes não sejam partes no contrato, uma

286 MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 619 e ss.

287 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, 1984, pp. 619 e ss.

ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo I, Almedina, 2009, pp. 356 e ss; e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo II, pp. 650 e ss.

288 MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, Almedina, 1970, pp. 419 e ss.

289 SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina,

1989, pp. 518 e ss.

290 CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, 2004, pp. 135 e

vez que poderão fundar um direito de indemnização pelos danos sofridos em virtude da violação de deveres acessórios de cuidado e de consideração.

Assim, o contrato de rating celebrado entre as agências de notação de risco e os emitentes, ainda que não pudesse alicerçar propriamente direitos dos investidores a uma pretensão perante aqueles sujeitos financeiros (como ocorreria no contrato a favor de terceiros, nos termos do artigo 443.º, n.º 1 do CC), seria, em todo o caso, suscetível de envolver os investidores na sua proteção.

Recorrendo a MENEZES CORDEIRO, o contrato com eficácia de proteção de terceiros é uma fonte de paracontratualidade que designa situações de “constituição de obrigações através de formas que não podem, em termos rigorosos, ser reconduzidos ao contrato mas que, com ele, mantenham uma proximidade suficiente para que se lhes aplique, pelo menos, uma parte razoável do seu regime”291, permitindo-se a extensão das regras contratuais a quem, como os investidores, não é parte do contrato.

As matrizes justificativas deste alargamento fundam-se na aplicação do princípio geral da boa fé e na consequente imposição de deveres acessórios às partes também perante terceiros, com os quais estejam numa relação de proximidade tal que legitime aquela extensão. Com efeito, ainda que do contrato resultem obrigações meramente bilaterais para as partes, as mesmas não se poderão abstrair do contexto social e jurídico onde se inserem, pelo que deve ser dada particular atenção ao exercício de prestações contratuais que possa colidir com o interesse de terceiros.

Estes deveres acessórios, integrados na relação obrigacional complexa292, conferem, pois, aos terceiros uma tutela que extravasa o dever de prestar existente inter

partes.

Naturalmente, rapidamente se extrai o alcance limitado e as inúmeras dificuldades que o recuso a esta respeitável criação dogmática jurídica apresenta para o propósito que, neste estudo, analisamos: desde logo, é claro que apenas os ratings solicitados se prestam a serem, abstratamente, abrangidos pela tutela do contrato com eficácia e proteção de terceiros, pelo que, apenas nas hipóteses em que as agências de notação de risco tenham assumido contratualmente perante os emitentes a obrigação de efetuarem uma notação de

291 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo II, pp. 629-630. 292 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pp. 135 e ss (nota de

risco, se pode pretender que os investidores estejam incluídos no perímetro de proteção de tal contrato.

Perguntar-se-á: quando é que um terceiro se poderá socorrer desta proteção? Acompanhando de perto os estudos de MENEZES CORDEIRO293, diremos que um terceiro será abrangido pela eficácia de proteção de um contrato quando: i) tenha uma proximidade visível perante a prestação principal e em face do credor; ii) a prestação principal, pela sua natureza, venha bulir com os seus interesses ou a isso possa levar; e iii) tenha depositado, de modo razoável, uma confiança legitima no bom cumprimento da prestação.

Ora, uma análise destes pressupostos permite concluir que a figura do contrato com eficácia de proteção de terceiros dificilmente poderá almejar tutelar os investidores perante ratings inexatos provenientes de contratos entre as agências de notação de risco e os emitentes/entidades294.

Com efeito, e tratando-se de uma responsabilidade civil contratual, consideramos que a mesma reclama um mínimo de possibilidade de se imputar à autonomia contratual das partes a proteção de terceiros, o que in casu dificilmente se verificará, por se tratar de conjuntos excessivamente fluídos e elásticos de potenciais beneficiários do titular da indemnização (investidores). Com efeito, o programa obrigacional voluntariamente assumido pelas partes no âmbito das estipulações contratuais dificilmente poderá abranger esta proteção de terceiros investidores.

Ou seja, a figura do contrato com eficácia de proteção de terceiros, assumindo-se como uma solução contratualista, reclama sempre uma conexão suficiente com a vontade das partes: seria, por isso, sempre exigível que se demonstrasse que num contrato de notação de risco as partes assumiram, de algum modo, que o cuidado com a informação a prestar visava a proteção do interesse de certos terceiros em tomarem as suas decisões económicas num quadro conveniente de esclarecimento295.

293 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Tomo II, pp. 650 e ss. 294 Cfr., no mesmo sentido, MANUEL SÁ MARTINS, Responsabilidade Civil das Agências de Notação

de Risco por Informações Prestadas aos Investidor, p. 19. Vide, em sentido contrário, RICARDO

FALCÃO, Da Responsabilidade das Agências de Notação de Risco perante os Investidores, pp. 30-34.

295 Assim, CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

Não ignoramos, contudo, a apreciação de MENEZES CORDEIRO296 que alerta para que a eficácia protetora de terceiros no âmbito contratual não deve ser afastada com a ligeireza que tantas vezes é patente na doutrina. De facto, com frequência, na celebração de contratos, as partes estão cientes de que, com eles, pretende-se, também, um certo objetivo dirigido a terceiros.

Note-se, contudo, que os efeitos prosseguidos com a eficácia a favor de terceiros ultrapassam o âmbito contratual e a lógica que leva a ordem jurídica a reconhecer aos particulares o poder de, em certas circunstâncias, criar Direito. No entanto, e seguindo, ainda, de perto MENEZES CORDEIRO297, nem sempre é possível esta consagração.

É que pisa-se o domínio da pura ficção ao querer-se abarcar conjuntos excessivamente vastos ou indeterminados de potenciais beneficiários (investidores) ao abrigo de uma potencial eficácia protetora de terceiros. Recorrendo, agora, a CARNEIRO DA FRADA298, “vem à lembrança o célebre dictum do Juiz Cardoso, segundo o qual não é admissível uma responsabilidade “numa medida indeterminada, por um tempo indeterminado e perante uma classe indeterminada de sujeitos”.

De facto, parece-nos incontornável que as agências de rating não querem, contratualmente, assumir o risco face a terceiros, mesmo que os ratings fossem atribuídos para fins especiais e tendo em vista investidores determinados. Não é esta a natureza subjacente à atividade de notação de risco e, mais importante, à vontade consensual das partes manifestada na celebração de contratos de rating. Uma solução contrária seria uma pura ficção; seria inverter e fantasiar o núcleo essencial dos contratos: a autonomia privada manifestada na vontade declarada das partes

Neste sentido, de forma particularmente incisiva, CARNEIRO DA FRADA recorda-nos que “a vontade, se não quiser entrar-se no domínio da fantasia, também limita”299. E esta limitação é particularmente relevante para evitarmos, de forma fantasiosa, a criação de um risco desmesurado, que onerasse as agências de notação de

296 Vide MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 623 e ss. 297 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 623.

298 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

p. 52, recordando o famoso caso Ultramares Corporation vs. Touche, e remetendo para MARTIN DAVIES,

The Liability of Auditors to Third Parties in Negligence, University of South Wales Law Journal, 1991,

172.

299 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

p. 52, recordando que se a responsabilidade civil das agências de notação de risco encontrasse a sua chave dogmática no contrato de notação de risco, então haveria de se admitir que a proteção de terceiros, por exemplo, estaria sempre dependente da validade do contrato de rating celebrado, o que não seria aceitável.

risco e impossibilitasse a sua atividade financeira, em claro prejuízo da eficiência dos mercados.

Para além de tudo o que se expões, parece-nos incontornável a falta de proximidade entre os interesses inerentes à tríade de sujeitos – agência de rating, emitentes e investidores – havendo, até, uma expressiva oposição típica entre os interesses dos emitentes e dos investidores que, naturalmente, depõe contra este tipo de soluções contratualistas para o problema em análise300.

É que mesmo que configuremos a hipótese de o emitente ter um interesse objetivo no rating (que, ainda assim, não será certo, uma vez que o rating pode revelar-se prejudicial às conveniências do emitente), daqui não se poderia, em caso algum, concluir que uma agência de notação de risco aja, nesta quadro contratual, no intuito de acautelar os interesses dos investidores (muito menos, voluntariando-se para esse efeito). Um cenário em que tal seja, também, pretendido pelo emitente será ainda menos provável, porquanto emitentes e investidores têm interesses tipicamente contrapostos.

Assim, esta falta de alinhamento dos interesses dos sujeitos envolvidos (agências de rating, emitentes e investidores) depõe, definitivamente, contra a generalização de soluções contratualistas para o caso que, neste estudo, analisamos.

Enfim, a conclusão é a de que a responsabilidade civil das agências de notação de risco não encontra a sua chave dogmática no contrato de rating celebrado301. Haverá, então, que explorar outros caminhos: vejamos, então, os contributos de outros quadrantes do direito. Aliás, como poderia o fundamento da responsabilidade civil das agências de notação de risco perante terceiros repousar no contrato se se verifica, naturalmente, uma contraposição de interesses entre eminentes e investidores, sendo o ganho de uns a perda dos outros, e vice-versa?

300 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

p. 14; Vide, ainda, CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pp. 143-144 e pp. 174-175, que sustenta, assistindo-lhe inteira razão, que a proximidade necessária entre credor e terceiro, que faça desencadear a tutela da figura do contrato com eficácia de proteção de terceiros, deverá manifestar-se ao nível dos interesses, porquanto credor e terceiro deverão estar “do mesmo lado”, tendo ambos interesses equivalentes.

301 Mesmo na doutrina nacional, os Autores que entendem que o contrato de notação de risco poderá ser

encarado como um contrato com eficácia de proteção de terceiros, possibilitando a responsabilização contratual das agências de rating por danos causados a terceiros, como RICARDO FALCÃO, Da

Responsabilidade das Agências de Notação de Risco perante os Investidores, pp. 30-34, acaba por admitir

que esta solução não está isenta de dificuldades, devido, desde logo, à complexidade da exata delimitação dos terceiros abrangidos pelo círculo de proteção do contrato, além do desmesurado risco de responsabilidade para as agências de rating que originaria efeitos perversos no mercado.

3.4 O RECURSO AO CÓDIGO DOS VALORES MOBILIÁRIOS E O ALCANCE DA