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O S R ATINGS S OLICITADOS E A R ESPONSABILIDADE C IVIL C ONTRATUAL , EM ESPECIAL OS ELEMENTOS DIFERENCIADORES DESTA RESPONSABILIDADE

E NTIDADES N OTADAS

2.1 O S R ATINGS S OLICITADOS E A R ESPONSABILIDADE C IVIL C ONTRATUAL , EM ESPECIAL OS ELEMENTOS DIFERENCIADORES DESTA RESPONSABILIDADE

Debruçar-nos-emos, por ora, nos ratings solicitados que correspondem à realização de um encargo ou de um serviço pedido às agências de notação de risco e a que estas se comprometeram através de um contrato, o contrato de rating184.

Nestes casos, a notação de risco solicitada consubstancia, pois, um contrato de

rating entre a agência de notação de risco e o emitente (quanto aos valores mobiliários

por este emitidos) ou a entidade objeto de avaliação. Assim, apenas na notação de risco

solicitada existe um contrato que determina a relação inter partes.

Ora, conforma já sublinhamos, tratando-se de uma notação de risco contratualizada, quanto à responsabilidade civil das agências de notação de risco perante o credor lesado (neste caso, uma entidade notada), naturalmente, aplica-se o regime do contrato, quer no que toca aos procedimentos de notação, quer naquilo que diz respeito a

184 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

uma responsabilidade por não cumprimento (ou cumprimento defeituoso), nos termos dos artigos 798.º e seguintes do Código Civil185.

Poder-se-ia tentar convocar o artigo 485.º, n.º 1 do CC para se isentar a agência de notação de risco de responsabilidade civil por violação do contrato de rating, arguindo- se que “os simples conselhos, recomendações ou informações não responsabilizam quem os dá, ainda que haja negligência da sua parte”, mas sem sucesso, uma vez que o n.º 2 do mesmo preceito estabelece que a obrigação de indemnizar os danos existe quando, entre outras circunstâncias, haja o dever jurídico de dar o conselho, recomendação ou informação e se tenha procedido com negligência ou intenção de prejudicar, podendo este dever jurídico ser imposto por lei ou encontrar a sua fonte num contrato186.

Ora, desencadeando-se os mecanismos da responsabilidade contratual e as regras gerais do Direito civil, importará recordar e sublinhar alguns aspetos-chave, nomeadamente (i) a problemática dos pressupostos da responsabilidade civil obrigacional e da “presunção de culpa” estabelecida no artigo 799.º, n.º 1 do CC; (ii) a aplicação do artigo 800.º, n.º 1 do CC, quanto à questão da responsabilidade do devedor pelos atos dos auxiliares; e (iii) a delimitação do dano a ser ressarcido, no âmbito da responsabilidade civil obrigacional, segundo uma causalidade jurídico-normativa, harmonizando-se a medida da responsabilidade sem distorcer a repartição de risco adequada ao contrato estabelecido entre os sujeitos.

185 Assim, CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

p. 27, alertando que havendo incumprimento ou cumprimento defeituoso de tal contrato de rating, mediante a disponibilização de uma informação incorreta, intervêm as regras gerais e desencadeiam-se os mecanismos de responsabilidade contratual. No mesmo sentido, RICARDO FALCÃO, Da

Responsabilidade das Agências de Notação de Risco perante os Investidores, p. 30, referindo que na relação

entre as partes, este contrato de rating em nada se distingue dos restantes pelo que, em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso, haverá lugar à respetiva responsabilização, nos termos gerais do artigo 798.º e ss do CC.

186 Neste sentido, também, MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Sociedades E Notação do Risco (Rating)

– A Proteção dos Investidores, p. 319; e RICARDO FALCÃO, Da Responsabilidade das Agências de Notação de Risco perante os Investidores, p. 30. Assim, quando haja um dever jurídico de dar informações,

nomeadamente que encontre a sua fonte num contrato (de rating), através do qual uma das partes (a agência de notação de risco) se vincula a prestar informações (à entidade notada, através do relatório de notação) há lugar, em caso de violação do contrato, à obrigação de indemnizar, que só existe, por intermédio deste artigo 485.º, n.º 2, quando se tenha procedido com dolo ou negligência, não bastando o erro ou o mal resultado das informações. Assim, PIRES E LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2011, pp. 486 e 487, que defendem, ainda que quando haja o dever jurídico de dar o conselho, recomendação ou informação, a obrigação de indemnizar só aproveita à pessoa perante quem se esteja vinculado, e não ao terceiro que eventualmente foi lesado com a informação errónea dada a seu respeito, ou com a recomendação efetuada.

Começando, por isso, pela problemática dos pressupostos da responsabilidade civil obrigacional e da “presunção de culpa” estabelecida no artigo 799.º, n.º 1 do CC, note-se que a responsabilidade obrigacional encontra-se, genericamente, prevista no artigo 798.º do CC, estabelecendo-se aí que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor” e, por isso, esta responsabilidade visa, na sua matriz, “assegurar e prolongar a função do contrato, assente na criação e na circulação de riqueza”187.

Ora, havendo, entre as partes, uma obrigação específica (resultante do contrato), cabe ao devedor executar a prestação principal, nos termos contratualmente previstos. Caso o devedor não cumpra está a frustrar, pela sua conduta, o valor que o Direito atribuía ao credor legitimado pelo ordenamento jurídico. E, por isso, em caso de incumprimento, ou seja, em caso de não-realização objetiva da prestação a que se encontrava obrigado, o devedor é automaticamente condenado a indenizar, isto é, “a prosseguir, no plano indemnizatório, o dever de prestar principal que inadimpliu”188.

Note-se que, na responsabilidade obrigacional há sempre que lidar com a fonte original da obrigação em jogo (um contrato) e com o “facto ilícito” do seu incumprimento (a não-execução da prestação principal). Para se atingir a imputação da obrigação de indemnizar, com base em responsabilidade civil obrigacional, há um conjunto de passos a dar: a interpelação do devedor pelo credor, a cominação de um prazo admonitório ou o desinteresse objetivo superveniente na prestação (cfr. artigos 804.º, 805.º e 808.º do CC) e, depois, a constituição do dever de indemnizar, a articular com a estrutura sobrevivente da obrigação anterior. Por isso, MENEZES CORDEIRO189 alerta que “mal ficariam quer o Direito que a Economia que ele tutela quando, depois de ter exigido, do credor, todo o calvário procedimental que desemboca no incumprimento definitivo, ainda se lhe fosse requerer mais do que a prova da obrigação incumprida e a declaração do incumprimento”. E, desta feita, restará ao devedor ou provar o seu cumprimento (trata-se de um facto extintivo, cujo ónus probatório lhe assiste, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do CC)

187 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Direito das Obrigações,

Tomo III, Gestão de Negócios, Enriquecimento Sem Causa e Responsabilidade Civil, Almedina, Lisboa, 2010, p. 391.

188 Assim, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Direito das Obrigações,

Tomo III, Gestão de Negócios, Enriquecimento Sem Causa e Responsabilidade Civil, Almedina, Lisboa, 2010, p. 391.

189 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Direito das Obrigações,

Tomo III, Gestão de Negócios, Enriquecimento Sem Causa e Responsabilidade Civil, Almedina, Lisboa, 2010, p. 392.

ou provar que tinha uma qualquer causa de justificação ou de excusa para não cumprir (nos termos do artigo 799.º, n.º1 do CC, que estabelece uma presunção de culpa do devedor).

Por isso, no que aos pressupostos da responsabilidade obrigacional diz respeito, estabelece-se, no artigo 798.º do CC, uma referência a um facto voluntário do devedor (“o devedor que”), cuja ilicitude resulta do não cumprimento da obrigação (“falta (...) co cumprimento da obrigação”), exigindo-se a culpa (“culposamente”), o dano (“torna-se responsável pelos prejuízos”) e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (“que causa ao credor”)190.

Seguindo de perto a conceção de MENEZES CORDEIRO, diremos que a “presunção de culpa”, referida no artigo 799.º, n.º 1, retomada dos clássicos civilistas para os quais a “culpa” era a faute napoleónica191, é, de facto, uma presunção de culpa e de

190 Seguimos, aqui, a sistematização de MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, Introdução.

Da Constituição das Obrigações, 2.ª Edição, Almedina, Lisboa, 2015, p. 315, ainda que, conforme se verá,

admitamos existir uma presunção de culpa (referida no artigo 799.º, n.º 1 do CC) a cargo de devedor que consubstancia uma presunção de culpa e de ilicitude pelo que, na responsabilidade obrigacional, não se distinguem, tão claramente, os pressupostos autónomos da culpa e da ilicitude.

191 Cfr., para um enquadramento dos modelos de responsabilidade civil francês (napoleónica) e germânico,

analisando-se a sua influência no direito da imputação de danos português, o nosso RUI VASCONCELOS PINTO, A Tutela Delitual dos Danos Patrimoniais Reflexos. Parte I: O Pressuposto da Ilicitude Delitual

e a Problemática da Titularidade do Direito de Indemnização, in O Direito, ano 150.º (2018), vol. I, pp.

157-199. Sem pretensões de iniciarmos uma análise prolongada que, de resto, ultrapassaria em larga medida o âmbito do nosso estudo, interessa-nos conhecer, brevemenre, a clássica dicotomia, no que à determinação do pressuposto da ilicitude diz respeito, existente nos vários sistemas de imputação de danos dos ordenamentos jurídicos da civil law. De facto, o requisito da ilicitude nem sempre aparece tipificado a nível legislativo: em sede de direito continental comparado, pode fazer-se referência a uma contraposição entre os sistemas de grande cláusula geral – como o francês, de inspiração napoleónica e assente na faute (artigo 1382º do Code Civil) – e os sistemas de cláusulas gerais limitadas – como o alemão (§§ 823 I e II e 826 do Bürgerliches Gesetzbuch), sob a égide de um modelo proposto por RODOLF VON JHERING. A grande diferença entre os dois sistemas é, fundamentalmente, baseada no facto de os primeiros não delimitarem a nível legislativo quais os bens jurídicos cuja lesão envolve responsabilidade (e, por isso, se fala numa grande cláusula geral ), remetendo a questão para a apreciação do julgador, enquanto os segundos procedem por via legislativa à enunciação dos bens jurídicos tutelados (e, por isso, se denominam de sistemas de cláusulas gerais limitadas ). O artigo 1382º do Código Civil francês de 1804 estatui que Tout fait quelconque

de l’homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer.

Assim, no direito francês, a responsabilização do agente apenas requer que este tenha causado um dano a outrem através de uma faute, expressão cujo funcionamento abrange a ilicitude, a culpa e o nexo causal. Segue-se, neste sistema, o artigo 1383º do Code que dispõe que cada um seja responsável pelo dano que tenha causado, não apenas pelo seu feito, mas também pela sua negligência ou imprudência. Foi, precisamente, esta suscetibilidade de aplicação ilimitada, esta grande amplitude de aplicação, alcançada através do recurso à faute (portanto, sem que se tipifique, legislativamente, os bens jurídicos tutelados) que presidiu às intenções dos redatores do código napoleónico. Também assente num sistema de grande cláusula geral destaca-se o artigo 2043º do Codice – Código Civil italiano -, cuja responsabilidade do agente resulta da prática de qualquer facto danoso doloso ou culposo, que causa a outrem um dano injusto. Aqui, o critério para que da lesão sofrida resulte uma indemnização assenta na valoração negativa do dano, que depende de uma ampla apreciação judicial. Neste sentido, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, p. 259. Retenha-se, pois, todo o sistema de imputação delitual napoleónico foi reconduzido a um único pressuposto de imputação: a faute. E este dever geral de não causar danos com faute a outrem que o

ilicitude. Assim, “quando haja inadimplência, presume-se que esta ocorreu ilicitamente e com culpa (dolo). Caberá, logicamente, ao devedor demonstrar que tinha a possibilidade legal de não executar a obrigação, provando os competentes factos”192.

Por isso, cumpre, agora, procedermos a uma pequena nota relativamente ao pressuposto da culpa e da ilicitude, na responsabilidade civil obrigacional, tendo como pano de fundo a presunção estabelecida no artigo 799.º, n.º 1 do CC.

Code consagrou permite, à partida, um universo maior para a integração do dano indemnizável, face

sobretudo a outros sistemas de cláusulas gerais limitadas. Com efeito, a este modelo napoleónico, assente numa unidade dos pressupostos da responsabilidade civil centrados na faute e caracterizado por uma intuição no momento da determinação da presença dos danos, contrapõe-se o modelo germânico, predominantemente mais analítico (por oposição a um sistema intuitivo) e que se preocupa em apurar pressupostos distintos e não unificados. Assim, o modelo germânico distingue, claramente, as duas instâncias de imputação delitual: à culpa acresce a ilicitude, um filtro objetivo que irá selecionar as hipóteses relevantes em matéria de obrigação ressarcitória (os pressupostos da responsabilidade já não se encontram, portanto, unificados em torno de um determinado conceito). Acresce, ainda, que a ilicitude acabaria por assentar em três cláusulas gerais limitadas: a violação de direitos subjetivos e a violação de normas de proteção, às quais acresceu, posteriormente, a violação dolosa dos bons costumes. A primeira, contida no o § 823 I do BGB, prevê que quem com dolo ou negligência violar ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade, fica obrigado a indemnizar (…). Uma vez tutelada a violação dolosa de direitos absolutos alheios, surge a cláusula do § 823 II, que, sempre com autónoma exigência da culpa, prevê as hipóteses de responsabilidade decorrente da violação de normas que visem proteger interesses alheios (as normas de proteção); e, por fim, o § 826 comina a obrigação de indemnização para os casos de danos causados dolosamente contra os bons costumes. Bem se vê, portanto, que o código civil alemão não estabeleceu um princípio geral no sentido de que a atuação antijurídica culposa obrigasse à indemnização dos danos, à semelhança das codificações de inspiração francesa, preferindo-se circunscrever o ilícito a determinadas hipóteses de facto: o panorama germânico seria, pois, bem diferente do napoleónico, porquanto através do BGB se procurava fornecer linhas firmes aos juízes e impedir uma excessiva extensão da responsabilidade civil. Note-se, porém, que a consagração de uma terceira cláusula geral de ilicitude (violação dolosa dos bons costumes) acaba por atribuir a este sistema mais restrito uma grande abertura no que à imputação de danos diz respeito, contrariando a ideia de que a indemnização dos danos reflexos seria mais fácil num sistema jurídico como o francês, por ser mais amplo o conceito de ilicitude delitual. Como bem tem sido apontado, nomeadamente por MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Liberdade vs.

Responsabilidade – A precaução como fundamento da imputação delitual?, Almedina, Coimbra, 2006, p.

110, a distinção entre estes dois sistemas tem uma relevância prática que merece ser destacada: por um lado, surge um sistema germânico onde quase que se chega à consagração de um sistema de tipicidade de ilícito; por outro lado, no modelo de inspiração napoleónica qualquer violação culposa de um direito pode dar origem, em abstrato, a uma pretensão indemnizatória. Ainda assim, e pese embora esta aparente grande abrangência da faute, há que sublinhar que muito embora o alterum non laedere, ou o princípio neminem

laedere, esteja aqui genérica e formalmente consagrado, a doutrina francesa tem-se ocupado de delimitar

áreas onde a extensão do dano indemnizável não poderá almejar tocar, nomeadamente em campos de liberdade económica, de relações de vizinhança, de liberdade de imprensa, entre outras. A este propósito, refere ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Eficácia externa dos créditos e abuso do direito, in O Direito, 2009, ano 141º, I, p. 48, que a experiência mostrou que este sistema é funcional, com claras vantagens: trata-se de um sistema responsivo, apto a acompanhar e integrar os desafios colocados por uma realidade em constante mutação, sem necessidades de alterações formais. Portanto, esta aparente indefinição que preside ao sistema napoleónico e que parceria, numa primeira análise, arriscada é, na verdade, a chave do seu êxito e da sua sobrevivência ao longo dos séculos. Para uma completa análise sobre os modelos de responsabilidade civil germânico e napoleónico, cfr., com mais referências, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. II – Direito das Obrigações, tomo III – Gestão de Negócios, Enriquecimento sem Causa, Responsabilidade Civil, Coimbra, 2010, pp. 285 e ss.

192 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Direito das Obrigações,

Tomo III, Gestão de Negócios, Enriquecimento Sem Causa e Responsabilidade Civil, Almedina, Lisboa, 2010, p. 392.

No seio da clássica e conhecida dicotomia, no âmbito da responsabilidade civil, entre os sistemas de origem napoleónica - assentes numa grande cláusula geral e na faute - e os sistemas de influência germânica - assentes na condução da obrigação de indemnizar a pressupostos mais analíticos - perguntar-se-á onde se enquadra o sistema de responsabilidade civil português.

No que à responsabilidade aquiliana diz respeito, o artigo 483º, nº1 consagra o modelo analítico de Jhering, imputando-se delitualmente o agente que com dolo ou mera culpa, violar uma das duas modalidades de ilicitude aí previstas: um direito subjetivo ou uma norma de proteção193. Surge, portanto, um sistema dualista, assente na contraposição entre culpa e ilicitude, onde a ilicitude assume duas variantes diferentes.

Já no que toca à responsabilidade contratual, a análise não nos parece tão clara e óbvia: estaremos perante um sistema monista de inspiração napoleónica, assente na faute francesa ou estaremos perante um sistema mais analítico, onde a partir do artigo 798º seja possível decalcar os mesmos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, com destaque para a separação da culpa/ilicitude?

Parece-nos que no artigo 798º o legislador nacional pretendeu consagrar um sistema diferente do estabelecido em sede de tutela delitual no artigo 493º. E a verdade é que esta opção nos parece particularmente feliz atendendo, antes de mais, às realidades diversas em que se fundam a responsabilidade civil obrigacional e aquiliana194. A verdade é que a responsabilidade obrigacional se funda em vínculos específicos entre as partes: lidamos aqui com vínculos pré-estabelecidos e particulares; o campo aquiliano é bastante

193 Note-se que Cfr. Vaz Serra, Requisitos da Responsabilidade Civil, BMJ nº 92 (1960), pp. 37 e ss.

inspirado pelo legislador alemão e pelo seu § 826, considerava como um ilícito fundador da responsabilidade delitual, “qualquer lesão de outrem, quer ofenda um direito subjectivo ou uma lei de proteção, quer não, se for intencional e contrária aos bons costumes”. Esta não foi, no entanto, a opção do legislador nacional, que fez depender a imputação de danos em sede de responsabilidade delitual da violação de um direito subjetivo ou de uma norma de proteção. Adianta-se, ainda, que também contrariamente ao que havia sido preconizado por Vaz Serra, o instituto do abuso do direito (adiante analisado com maior detalhe) haveria de ter uma consagração apenas na parte geral do nosso Código Civil, no artigo 334º, sem ser alvo de qualquer referência em sede de responsabilidade civil. Esta foi a opção do nosso legislador nacional e, face a ela, a doutrina tem debatido largamente o ressarcimento dos chamados danos puramente patrimoniais à luz do artigo 334º. Já sublinhamos as vantagens, quanto à indemnização deste tipo de prejuízos, em sede de sistemas de grande cláusula geral, como o francês, ou até mesmo em sistemas como o alemão, que facilitam a sua ressarcibilidade através da violação dolosa dos bons costumes (§ 826 BGB). Em Portugal, o paradigma é diferente: afinal de contas, não se consagrou, em sede de responsabilidade civil, a ilicitude por violação dolosa dos bons costumes. Retomaremos este ponto pertinentemente.

194 Não iremos, porém, aqui debruçarmo-nos sobre as diferenças existentes entre o regime das duas

responsabilidades. Remetemos para ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12º edição revista e atualizada, Coimbra, 2011, pp. 543 e ss.

diferente, pautado por um conjunto de situações genéricas, isto é, vínculos jurídicos impostos a todos os indivíduos, que muitas vezes são até mal apreendidos pelas partes e que impõem ao legislador uma preocupação em respeitar a liberdade de movimentação no espaço jurídico. Portanto, parece-nos particularmente feliz que o legislador tenha submetido regimes jurídicos diferentes a situações claramente diferentes.

Assim, tendemos a considerar que o artigo 798º é algo distante do artigo 483º: a sua inspiração napoleónica será notória, quando se prescreve a responsabilidade do devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação, não se fazendo qualquer referência à ilicitude. Parece-nos que estamos perante um sistema monista, onde a culpa e a ilicitude aparecem reunidos, e unificados, ao estilo da faute. E, neste sentido, parece também apontar a presunção do artigo 799º, nº1, dispondo que incumbe ao devedor

provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua. Naturalmente, pode faltar-se licitamente ao cumprimento de uma obrigação (pensa-

se, aqui, imediatamente nas causas de justificação, mas não só). E, na maioria dos casos, o devedor que queira exonerar-se da “presunção de culpa” irá tentar provar a licitude da sua conduta. Parece, portanto, que a presunção de “culpa” referida é antes uma presunção de culpa e de ilicitude. Ou seja, a culpa em sede de responsabilidade obrigacional não é a

Schuld alemã – é, antes, a faute francesa.

Desta forma - ainda que sem a evidência que o artigo 483º tem ao aproximar-se do modelo de Jhering - parece-nos que no campo da responsabilidade obrigacional estamos numa área bastante influenciada pela faute francesa atingindo-se aquilo a que MENEZES CORDEIRO denominou de modelo híbrido na responsabilidade civil