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O P ARADIGMA DA T UTELA D ELITUAL : A INADEQUAÇÃO DA TUTELA D ELITUAL FACE ÀS L IMITAÇÕES DAS DUAS SITUAÇÕES B ÁSICAS DE R ESPONSABILIDADE

A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO PERANTE OS I NVESTIDORES

3 A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO P ERANTE OS

3.5 O P ARADIGMA DA T UTELA D ELITUAL : A INADEQUAÇÃO DA TUTELA D ELITUAL FACE ÀS L IMITAÇÕES DAS DUAS SITUAÇÕES B ÁSICAS DE R ESPONSABILIDADE

REFERIDAS NO ARTIGO 483.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL

Impõe-se, pois, a necessidade de se explorar outras vias de responsabilização das Agências de Rating perante terceiros, sendo essencial, conforme se deixou claro, encontrar fundamentos responsabilizantes que permitam estender a responsabilidade para lá do perímetro traçado pelo acordo de vontade dos sujeitos contratuais e para além dos regimes especiais de responsabilidade por informações contidos no CVM.

Excluída, então, a possibilidade de recurso à tutela da responsabilidade civil obrigacional316, e concluído pelo pouco aproveitamento da responsabilidade pelo prospeto constante o CMV, que respostas poderemos encontrar ao abrigo do paradigma da responsabilidade civil delitual?

Mergulhamos, então, decididamente nas regras do direito comum, com o Código Civil – e a sua tutela aquiliana - no horizonte.

Iremos, então, agora estudar conjuntamente as suas hipóteses típicas de responsabilidade civil das agências de notação de risco perante investidores – referimo- nos à proteção dos investidores face a ratings solicitados (contratualizados com emitentes) e face a ratings não solicitados –, separando-as apenas quando concluirmos por conveniente.

É que, interessando-nos a análise da proteção dos investidores, e conforme já analisámos, na maior parte dos casos nada os liga às agências de notação de risco, pelo que as suas decisões de investimento não estarão abrangidas pelo âmbito dos contratos que estas possam, ou não, ter celebrado (designadamente, com sociedades objeto de

315 Vide cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco

(Rating), p. 43, concluindo que, “no conjunto, só pode, portanto, esperar-se da regulamentação do prospeto

uma ajuda muito exígua para a responsabilização das agências de rating”.

316 Concluamos, pois, que cabe à responsabilidade civil contratual, por excelência, a função de possibilitar

e garantir a interação humana baseada num contrato, o que, manifestamente, não possibilita a tutela dos terceiros investidores.

notação). Importará, então, trilhar os caminhos dogmáticos para além do âmbito da responsabilidade civil obrigacional.

Com efeito, enquanto que a responsabilidade obrigacional resulta da violação de um Direito de crédito ou obrigação em sentido técnico, a responsabilidade delitual resulta da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, ou seja, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos Direitos absolutos, ou até de certos atos que, embora lícitos, produzem danos a outrem. Trata-se, pois, de uma proteção básica, genérica e tendencialmente indiferenciada, dos sujeitos portadores de posições e interesses independentes dos contextos relacionais em que se tenham querido envolver, contra lesões perpetradas na sua esfera jurídica. E, por isto, a tutela delitual caracteriza- se paradigmaticamente pela igualdade e fungibilidade dos sujeitos317.

Neste sentido, ao abrigo da tutela delitual, os investidores que sofram prejuízos motivados por relatórios de notação de risco inexatos terão de fundar a obrigação de indemnizar das agências de notação de risco no artigo 483.º ou no artigo 485.º do Código Civil.

(i) As limitações da tutela do artigo 485.º do Código Civil

Convoquemos, primeiramente, o artigo 485.º do CC (“Conselhos, Recomendações e Informações”) onde se estatuiu que os simples conselhos, recomendações ou informações não responsabilizam quem os da, ainda que haja negligência da sua parte (n.º1), sendo que existe a obrigação de indemnizar, porém, quando se tenha assumido a responsabilidade pelos danos, quando havia o dever jurídico de dar conselho, recomendação ou informação e se tenha procedido com negligência ou intenção de prejudicar, ou quando o procedimento do agente constitua facto punível (n.º 2).

317 Cfr., a este respeito, as importantes considerações de CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade

Civil das Agências de Notação de Risco (Rating), p. 43, ao convocar a conceção da ordem social de RAWLS

(e o seu véu da ignorância), que estará protegida pelo direito delitual, já que as posições contratuais são particulares.

A regra geral, nesta matéria, é, pois, a de que deve caber ao recetor da informação suportar os riscos da decisão de se determinar por ela ou não (nomeadamente, de com base na informação proceder à decisão de investimento, ou não)318.

A frontalidade e a simplicidade do preceito em questão têm causado alguns equívocos quanto ao dever de responder resultante de danos em cujo nexo causal se encontram as informações prestadas, e tem dado azo a muito debate na doutrina. Não temos aqui oportunidade de aprofundadamente dissecar este artigo, mas diremos, em síntese, que a regra geral estabelecida pelo nosso legislador é a da irresponsabilidade pelos simples conselhos, recomendações ou informações, “ainda que haja negligência” de quem os dá (n.º 1 do artigo 485.º), existindo, excecionalmente, o dever de indemnizar em três situações distintas: (i) “quando se tenha assumido a responsabilidade pelos danos”; (ii) quando havia o dever jurídico de dar o conselho, recomendação ou informação e se tenha procedido com negligência ou intenção de prejudicar”; ou (iii) “quando o procedimento do agente constitua facto punível” (n.º 2)319.

Note-se que, contrariamente à sugestão de VAZ SERRA durante os trabalhos preparatórios320, o legislador português optou por não consagrar como exceções à irresponsabilidade por simples conselhos, recomendações ou informações, os casos em que houvesse o dever de proceder diligentemente ao dar a informação ou quando a informação fosse fornecida com ofensa manifesta da consciência social dominante.

No entanto, este artigo 485.º estabelece uma obrigação de indemnizar quando exista um dever jurídico de dar o conselho, recomendação ou informação e o prestador tenha procedido com negligência ou intenção de prejudicar. Ora, esse dever jurídico poderá resultar de um contrato321, nomeadamente do contrato subjacente à agência de notação de risco e a entidade emitente de valores mobiliários. No entanto, e no que ao investidor lesado diz respeito, este artigo não o poderá tutelar, uma vez que a obrigação

318 Cfr. VAZ SERRA, Abuso do Direito (em matéria de Responsabilidade Civil), in Boletim do Ministério

da Justiça (BJM) n.º 85, 1959, pp. 243-343.

319 Por questões inerentes às limitações de tempo, não temos aqui oportunidade de aprofundar a análise a

este artigo 485.º. Cfr., para mais desenvolvimentos, por todos, JORGE SINDE MONTEIRO,

Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, pp. 333 e ss; AGOSTINHO

CARDOSO GUEDES, A Responsabilidade do Banco por Informações à luz do artigo 485º do Código

Civil, in Revista de Direito e Economia, Ano XIV, 1988, pp. 153 e ss; e CARLOS COSTA PINA, Dever de Informação e Responsabilidade pelo Prospecto no Mercado Primário de Valores Mobiliários, pp. 150

e ss.

320 Cfr. SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, p. 339. 321 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I – Introdução. Da Constituição das Obrigações,

de indemnização aqui estabelecida aproveita, naturalmente, apenas àqueles que se encontram vinculados pelo contrato e não a terceiro que, eventualmente, tenha sido lesado co a informação errónea322.

Para além disto, o preceito em causa assumirá particular relevância e sentido quando se trate de conselhos, recomendações ou informações promovidos no quadro das relações de puro obséquio (e, por isso, o legislador incluiu, na norma, a expressão simples para qualificar os concelhos, recomendações ou informações prestadas). Desta forma, consideramos que o artigo 485.º CC não permite salvaguardar a notação do risco de crédito levada a cabo por sociedades a que a ela se dediquem profissionalmente – como as agências de rating – considerando, também, que não lhes confere a irresponsabilidade própria das simples opiniões, constitucionalmente garantida pelo direito à liberdade de expressão323.

No entanto, ressalve-se que, ao abrigo deste preceito, poder-se-á fundar a responsabilidade no facto de o comportamento da agência de notação de risco constituir um evento criminalmente punível (artigo 485.º, n.º2, in fine), ou seja, sempre que agência de notação de risco seja condenada, por exemplo, pelo crime de manipulação de mercado (ao abrigo da Diretiva n.º 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2003), os terceiros lesados por esse crime poderão reclamar o ressarcimento dos prejuízos advenientes da conduta criminalmente punível da agência de rating.324

Ainda assim, e não sendo este artigo 485.º particularmente útil para a construção dogmática da responsabilidade civil das agências de rating perante os investidores, note- se que este preceito não obsta a que se considerem, em matéria de responsabilidade por informações, conselhos e recomendações, os contributos trazidos por outras normas ou pelos desenvolvimentos praeter legem do direito. Que contributos poderão ser dados pela tutela delitual ao abrigo da cláusula do artigo 483.º?

322 Cfr. MANUEL SÁ MARTINS, Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco por

Informações Prestadas aos Investidores, p. 22; CARNEIRO DA FRADA, Uma “terceira via” no direito da responsabilidade civil?, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 66 e ss; e PIRES DE LIMA e ANTUNES

VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, reimpressão, 2011, anotação ao artigo 485.º, pp. 486 e ss.

323 Seguimos de perto as conclusões pertinentemente retiradas por MANUEL SÁ MARTINS,

Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco por Informações Prestadas aos Investidores, p.

23.

324 Cfr. RICARDO FALCÃO, Da Responsabilidade das Agências de Notação de Risco perante os

(ii) A tutela delitual e a defesa de posições jurídicas absolutas

No que à responsabilidade delitual diz respeito, o artigo 483º, nº1 do Código Civil imputa os danos ao agente que, com dolo ou mera culpa, violar uma das duas modalidades de ilicitude aí previstas: violação de um direito subjetivo (violação de um direito de

outrem, de acordo com o artigo 483.º, n.º 1, 1.ª parte) ou de uma norma de proteção

(disposição legal destinada a proteger interesses alheios, de acordo com artigo 483.º, n.º 1, 2.ª parte).

Ora, não havendo um direito subjetivo de realizar bons investimentos ou de obter

ratings exatos e de qualidade325, a primeira conclusão a retirar é a de que os prejuízos sofridos pelos investidores em virtude dos ratings erróneos das agências de notação de risco ocorreram sem a prévia violação de um direito ou bem absolutamente protegido (não se enquadram, portanto, na primeira modalidade de ilicitude delitual) – situam-se,

pois, no domínio dos danos puramente patrimoniais326. Atendendo ao facto de esta primeira modalidade de ilicitude exigir a lesão de um

direito subjetivo absoluto, a indemnização está limitada à frustração das utilidades proporcionadas por esse direito, pelo que não se admite, nesta sede, a tutela dos danos puramente patrimoniais327. Por isso, as agências de rating, e bem, não indemnizam ao abrigo desta situação de responsabilidade.

325 Cfr. MANUEL SÁ MARTINS, Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco por

Informações Prestadas aos Investidor, p. 20; e DELFIM VIDAL SANTOS, As Agências de Notação de Risco e a Crise Financeira Planetária, p. 159. É certo que não existe um qualquer direito dos investidores

a uma notação de risco correta, perante as agências de rating, salvo, naturalmente, a existência de um contrato com estas, que só excecionalmente ocorrerá, sendo, então, de ativar a responsabilidade contratual.

326 A noção de dano puramente patrimonial é controversa, por depender de uma compreensão prévia sobre

a interpretação das normas que integram o nosso sistema de responsabilidade civil. No entanto, recorde-se que dissemos que um dano puramente patrimonial se poderá definir como um tipo de dano em que há uma perda patrimonial sem que tenha existido uma prévia violação de um direito subjetivo protegido: ou seja, estamos perante um tipo de dano onde se verifica uma lesão patrimonial sem que tenha existido uma prévia violação da primeira modalidade de ilicitude do artigo 483º, nº1. Cfr., com mais referências, RUI ATAÍDE,

A responsabilidade do “representado” na representação tolerada, AAFDL, Lisboa, 2008, p. 188; SINDE

MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, p. 187; e CARNEIRO DA FRADA, Uma “terceira via” no direito da responsabilidade civil?, p. 36-42. A tutela destes danos, em sede de responsabilidade civil, fica, portanto, condicionada pela existência de uma específica norma de proteção, para efeitos de preenchimento do pressuposto da ilicitude delitual; já fora do âmbito da tutela da responsabilidade civil, estes danos podem encontram proteção através da configuração da conduta lesiva como abusiva à luz do artigo 334º do Código Civil (Abuso de Direito).

327 Cfr. MARGARIDA AZEVEDO DE ALMEIDA, A Responsabilidade Civil do Banqueiro perante os

Credores da Empresa Financiada, in Studia Iuridica, n.º 75, Coimbra, 2003, pp. 50 e ss. Com efeito, a

tutela deste tipo de danos apenas se efetua com recurso às normas de proteção (responsabilidade civil delitual) ou ao artigo 334º (abuso do direito). Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, p.

Com efeito, a verdade é que o artigo 483.º CC toma uma posição bastante protetora da liberdade de ação, fundamental dentro paradigma delitual, ao apenas permitir a tutela dos danos derivados da lesão de puros interesses patrimoniais ao abrigo da existência de uma disposição destinada a proteger interesses alheios (norma de proteção).

Por isso, observa-se com facilidade que a tutela delitual, por intermédio desta primeira modalidade de ilicitude, que diz respeito à defesa de posições jurídicas absolutas, não se ajusta à responsabilidade das agências de rating perante os investidores.

Com efeito, trata-se de proteger esses investidores contra as consequências de decisões económicas – de investimento ou desinvestimento – desajustadas, mas que eles próprios tomaram, influenciados por uma conduta alheia. O que se passa, paradigmaticamente, é uma “perturbação na formação da decisão de contratar de quem se relaciona autónoma e livremente na vida económica em virtude da apreciação feita por um terceiro acerca do objeto desse contrato”328.

Ou seja: os investidores sofrem danos (out of the pocket loss) que se traduzem num dispêndio ou num investimento inútil ou prejudicial efetuado por causa de contratos que decidiram celebrar com base numa notação incorreta e, neste sentido, o seu dano a nada mais corresponde do que a uma disposição contratual infeliz.

Veja-se, aliás, o perigo incomportável em que se traduziria a tutela delitual destes danos puramente patrimoniais: se a ressarcibilidade delitual de prejuízos não resultantes

261; SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, pp. 187 e ss; e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II, p. 448. Para uma abordagem mais abrangente da problemática dos danos puramente patrimoniais, vide com mais referências, RUI ATAÍDE, Responsabilidade civil por violação de deveres no tráfego, pp. 1017 e ss; MARIA JOÃO PESTANA DE VASCONCELOS, Algumas questões sobre a ressarcibilidade delitual de

danos patrimoniais puros no ordenamento jurídico português, in Novas tendências da responsabilidade

civil, Almedina, 2007, pp. 147 e ss; ADELAIDE MENEZES LEITÃO, Normas de proteção e danos

puramente patrimoniais, Almedina, 2009, pp. 295 e ss, e passim; CARNEIRO DA FRADA/MARIA JOÃO

PESTANA DE VASCONCELOS, Danos económicos puros, ilustração de uma problemática, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento, vol. II, Coimbra, 2006, pp. 151-176; SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou

informações, Coimbra, 1989, pp. 175 e ss, e passim; e, para uma ilustração do tema no universo jurídico da common law, vide ADELAIDE MENEZES LEITÃO, Os danos puramente económicos nos sistemas da common law- I, in Estudos em Homenagem à Professora Doutra Isabel de Magalhães Collaço, vol. II,

Coimbra, 2002, pp. 198-218. Note-se que, em todas as situações onde surjam danos puramente patrimoniais, há um prejuízo que se repercute na situação patrimonial global de alguém, sem que tenha sido atingido um bem absolutamente protegido. Nas palavras de SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por

conselhos, recomendações ou informações, pp. 159-160, verifica-se um damnum sine injuria, “nessa

medida valendo o princípio casum sensit dominus”.

328 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

da violação de uma posição dotada de proteção erga omnes fosse admitida, pense-se no consequente crescimento desmesurado do risco da responsabilidade a cargo de, por exemplo, agências de notação de risco, em face de atuações que traduzam uma simples negligências (não pensamos, portanto, nas particulares situações de especial censurabilidade da conduta ou na existência de uma ligação específica entre lesado e lesante que possa justificar e delimitar esta responsabilidade). Este desmesurado crescimento do risco de responsabilidade haveria, certamente, de entorpecer, de forma não razoável, o tráfego jurídico e os mercados.

A consagração de uma tão ampla responsabilidade esqueceria a importância do estímulo, no Direito civil, da auto-responsabilidade dos agentes que atuam no tráfego jurídico e, em particular, nos mercados financeiros. A auto-responsabildiade é, afinal, a pedra angular em que devem assentar todos os sistemas jurídicos. Seria inaceitável transferir-se o risco das decisões económicas próprio dos investidores para outrem, nomeadamente para as agências de notação de risco.

Aliás, não pode o intérprete esquecer-se que nas decisões com base em notações de risco inexatas, se há um sujeito que sofre danos, que perde - tipicamente, neste caso, um investidor -, há, certamente, um outro que, simetricamente, ganha. Se, por exemplo, um investidor vende mal e barato, permite à contraparte comprar bem e barato, vendendo, posteriormente, com lucro. Não seria tolerável esta intromissão na dinâmica, sobretudo, do mercado secundário, tratando-se, de forma desigual, as partes de um contrato que estavam sujeitas ao mesmo risco contratual de mercado.

Por isso, estamos no domínio de um problema de distribuição / alocação adequada dos riscos, num sistema de livre interação, como o mercado, e não de pura e simples lesão de bens jurídicos protegidos contra agressões ou perturbações vindas do exterior. Assim, a responsabilidade civil delitual não será apta a enquadrar dogmaticamente a responsabilidade civil das agências de notação de risco perante os investidores.

Diremos, mesmo, que não se vê qualquer razão para o Direito tutelar e corrigir decisões de investimento erradas, substituindo-se, assim, à dinâmica e ao risco típico dos mercados financeiros e que informa toda o Direito do mercado de capitais: é o mesmo comprador de produtos de investimento que, hoje levado por um rating exagerado, amanhã dele beneficia como vendedor. Destruir, de forma leviana, estas compras e estas

vendas implicaria entorpecimento intoleráveis no comércio jurídico e traduzir-se-ia em custos enormes e incomportáveis de transação.

Concluímos, por isso, convocando esta distribuição dos riscos no âmbito dos mercados, recordando, com CARNEIRO DA FRADA329, que por cada decisão de investimento prejudicial, se há alguém que perde, existem também outra pessoa que ganha. Por isto, encontramo-nos, consequentemente, na “órbita do direito dos contratos: no âmbito da interação humana e da dinâmica das decisões económicas empreendidas livremente pelos sujeitos ao abrigo da sua autonomia, embora para lá das possibilidades do princípio da relatividade dos contratos”. Poucos contributos importará, portanto, a tutela delitual para estas odisseias.

(iii) A violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios

Concluída pela incapacidade da primeira modalidade de ilicitude do artigo 483.º, n.º 1 do CC tutelar, adequadamente, os danos puramente patrimoniais sofridos pelos investidores, em virtude de ratings inexatos das agências de notação de risco, que utilidade poderá ter a segunda modalidade de ilicitude prevista nesse preceito, relativa à violação de disposições destinadas a proteger os interesses alheios (normas de proteção)? De facto, a falta de evidência social dos danos puramente patrimoniais levou o legislador a optar por uma posição particularmente restritiva quanto à sua ressarcibilidade.

No entanto, esta posição de princípio não impede o legislador de atender aos interesses específicos de determinados sectores do ordenamento jurídico, estabelecendo normas especiais (normas de proteção) em que faz prevalecer a tutela dos interesses patrimoniais prejudicados em detrimento da liberdade de ação no comércio jurídico que se quis proteger por via da regra geral330.

329 Cfr. C ARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

p. 46.

330 Cfr. MARGARIDA AZEVEDO DE ALMEIDA, A Responsabilidade Civil perante os Investidores por

Realização Defeituosa de Relatórios de Auditoria, Recomendações de Investimento e Relatórios de Notação de Risco, pp. 23-24.

Ou seja, se, perante a primeira modalidade de ilicitude delitual, a reparação danos puramente patrimoniais não encontrava eco, o mesmo já não se passará, podendo os mesmos serem reparados ao abrigo da segunda modalidade de ilicitude delitual, caso exista alguma norma de proteção que, especificamente, os tutele.

Ora, conforme referimos, a segunda variante de ilicitude diz, precisamente, respeito à violação de “qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios”, portanto, à violação de normas de proteção. Nesta segunda parte do artigo 483º, nº1, o legislador nacional inspirou-se no § 823, II do BGB331, que mereceu toda a atenção de Vaz Serra, aquando da elaboração dos trabalhos preparatórios332. Trata-se de normas que