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O RECURSO AO C ÓDIGO DOS VALORES M OBILIÁRIOS E O ALCANCE DA RESPONSABILIDADE LEGAL PELO P ROSPECTO

A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO PERANTE OS I NVESTIDORES

3 A R ESPONSABILIDADE C IVIL DAS A GÊNCIAS DE N OTAÇÃO DE R ISCO P ERANTE OS

3.4 O RECURSO AO C ÓDIGO DOS VALORES M OBILIÁRIOS E O ALCANCE DA RESPONSABILIDADE LEGAL PELO P ROSPECTO

Na sequência do que vem sendo exposto, somos, naturalmente, lançados para o universo da responsabilidade civil delitual pelo que, antes do recurso ao regime geral do direito comum, plasmado no Código Civil, devem ser procuradas soluções – ou, pelo menos, inspirações – no âmbito das eventuais regras especiais que existam.

Por isso, olhemos com atenção para o Código dos Valores Mobiliários e para o instituto da responsabilidade pelo prospeto de oferta pública302, prevista nos seus artigos 149.º e seguintes303. Diga-se, já à partida, que os eventuais contributos recolhidos aproveitarão, apenas, as notações de risco solicitadas.

Antes de mais, o prospeto é o documento sujeito a fiscalização administrativa prévia que, de forma padronizada, concentra a informação relevante sobre o emitente, os valores mobiliários por este emitidos e o processo da oferta ou admissão em mercado regulamentado.

Na ordem jurídica portuguesa prevê-se a existência de cinco diferentes prospetos: (i) o prospeto da oferta (cfr. artigo 134.º do CVM), que, no âmbito do processo das ofertas públicas, é uma peça obrigatória que condensa a dose de informação relevante relativa ao emitente e à oferta; (ii) o prospeto de admissão (cfr. 236.º do CVM), exigido no processo de admissão à negociação de valores mobiliários em mercado regulamentado; (iii) o prospeto de base, que incorpora a informação sobre a situação económica e financeira do emitente e informação estabilizada sobre valores mobiliários não acionistas (cfr. artigo 135.º-C do CVM), traduzindo-se num documento sujeito à aprovação da CMVM, com periodicidade anual, que permite aligeirar os prospetos de oferta e de admissão; (iv) o prospeto preliminar, o qual agrega informação respeitante a processos de recolha de intenções de investimento (cfr. artigos 165.º e 166.º do CMV); e, finalmente, (v) o prospeto do fundo de investimento, que se trata de um documento informativo que deve

302 Nos termos do n.º 1 do artigo 134.º do CVM, com exceção dos casos previstos no n.º 2 do mesmo

preceito, a realização de qualquer oferta pública relativa a valores mobiliários deve ser precedida de divulgação de um prospeto.

303 Não pretendemos, aqui, fazer mais do que uma breve referência à responsabilidade civil pelo prospeto

e recolher alguns dos seus contributos para a responsabilidade civil das agências de notação de risco. Para uma análise mais aprofundada, vide, com mais referências, PAULO CÂMARA, Direito dos Valores

ser elaborado no momento da constituição de fundos de investimento e mantido atualizado304.

Apesar da extensão deste rol de propostos, concentrar-nos-emos, neste estudo, no prospeto de oferta pública, que se afigura, no nosso Direito, a par do prospeto de admissão, como um caso paradigmático.

A responsabilidade pelo prospeto corresponde a um desenvolvimento dogmático nas margens da responsabilidade civil, apresentando contornos próprios. No atual Código, a responsabilidade pelos vícios do prospeto aparece regulada nos artigos 149.º a 154.º, regime este que serve de modelo à responsabilidade civil noutros contextos do CVM. Por isso, embora não se possa falar de um regime geral de responsabilidade civil por informações, este regime serve de modelo a outras matérias onde emerge o problema da responsabilidade civil por informações, no âmbito do CVM, sobretudo no âmbito de prospetos obrigatórios305.

Assim, determina o artigo 149.º, n.º 1do CVM que são responsáveis pelos danos causados pela desconformidade do conteúdo do prospeto com o disposto no artigo 135.º (relativo aos princípios gerais aplicáveis à informação no prospeto), salvo se provarem que agiram sem culpa306, o oferente; os titulares do órgão de administração do oferente; o emitente; os titulares do órgão de administração do emitente; os promotores, no caso de oferta de subscrição para a constituição de sociedade; os titulares do órgão de fiscalização, as sociedades de revisores oficiais de contas, os revisores oficiais de contas e outras pessoas que tenham certificado ou, de qualquer outro modo, apreciado os documentos de prestação de contas em que o prospeto se baseia; os intermediários financeiros

304 Cfr. SÓNIA TEIXEIRA DA MOTA, Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Mobiliário

(alterações em matéria de informação aos investidores), in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliário,

CMVM, n.º 8, Agosto, 2000, pp. 125-141.

305 Assim, MARGARIDA AZEVEDO DE ALMEIDA, A Responsabilidade Civil perante os Investidores

por Realização Defeituosa de Relatórios de Auditoria, Recomendações de Investimento e Relatórios de Notação de Risco, p. 28. Cfr., também, PAULO CÂMARA, Manual de Direito dos Valores Mobiliários,

p. 734, referindo que o regime aplicável aos prospetos de ofertas públicas afigura-se, em larga medida, como paradigmático, sendo aplicável a outras matérias, servindo, nomeadamente, de base à responsabilidade por informação periódica e por factos relevantes (cfr. artigo 251.º do CVM), quando divulgada em termos contrários aos prescritos por lei ou servindo como modelo em relação ao regime da publicidade relativa a oferta pública (nos termos do artigo 121.º, n.º 3 do CVM), entre outros regimes, como a violação das normas sobre a conformação do prospeto preliminar (artigo 166.º do CVM) ou a responsabilidade pelo conteúdo do prospeto de admissão (cfr. artigo 243.º do CVM).

306 Estabelece-se, por isso, no artigo 149.º, n.º 1 do CVM uma presunção de culpa que, na senda do

defendido por MARGARIDA AZEVEDO DE ALMEIDA, A Responsabilidade Civil perante os

Investidores por Realização Defeituosa de Relatórios de Auditoria, Recomendações de Investimento e Relatórios de Notação de Risco, p. 28, ultrapassa uma simples presunção de censurabilidade da conduta,

encarregados da assistência à oferta; e as demais pessoas que aceitem ser nomeadas no prospeto como responsáveis por qualquer informação, previsão ou estudo que nele se inclua.

No mais, a culpa é apreciada de acordo com elevados padrões de diligência profissional (cfr. artigo 149.º, n.º 2 do CVM, assim se afastando o critério do bom pai de família, previsto no artigo 487.º do CC), sendo a responsabilidade excluída se alguma das pessoas referidas provar que o destinatário tinha ou devia ter conhecimento da deficiência de conteúdo do prospeto à data da emissão da sua declaração contratual ou em momento em que a respetiva revogação ainda era possível (cfr. artigo 149.º, n.º 3 do CVM).

Nos termos do artigo 149.º, n.º 4 do CVM, a responsabilidade é, ainda, excluída se os danos previstos resultarem apenas do sumário do prospeto, ou de qualquer das suas traduções, salvo se o mesmo, quando lido em conjunto com os outros documentos que compõem o prospeto, contiver menções enganosas, inexatas ou incoerentes ou não prestar as informações fundamentais para permitir que os investidores determinem se e quando devem investir nos valores mobiliários em causa.

Nesta sequência, o artigo 152.º do CVM visa o ressarcimento dos danos individualmente sofridos pelos investidores, reproduzindo no âmbito da responsabilidade pelas deficiências das informações contidas no prospeto, o artigo 562.º do CC, aplicando- se as regras gerais do Código Civil em sede de dano, o mesmo se sucedendo em matéria do nexo de causalidade (cfr. artigo 563.º do CC). Assim, estabelece-se que a indemnização deve colocar o lesado na exata situação em que estaria se, no momento da aquisição ou da alienação dos valores mobiliários, o conteúdo do prospeto estivesse conforme com o disposto no artigo 135.º do CVM; sendo que o montante do dano indemnizável reduz-se na medida em que os responsáveis provem que o dano se deve também a causas diversas dos vícios da informação ou da previsão constantes do prospeto.

Ou seja, quanto à responsabilidade civil pelo conteúdo do prospeto (aplicada, conforme sintetizamos, a outros regimes modeladores da responsabilidade pela informação), o Código dos Valores Mobiliários apresenta um regime “quase completo e

tendencialmente uniforme para as relações jurídicas pré-contratuais, contratuais e extracontratuais”307.

É que, de facto, o regime instaurado pelo CVM abarca variadíssimos tópicos, como o âmbito da ilicitude por desconformidade do conteúdo dos prospetos, da publicidade e de outras informações (art. 149º, nº1), o elenco das pessoas responsáveis (arts. 149º, nº1 e 243º, al. a)), a solidariedade dos responsáveis (art. 151º), a presunção de culpa (art. 149º, nº1, proémio), o padrão de culpa (art. 149º, nº2), a responsabilidade objetiva por atos de outrem (art. 150º), as regras sobre os critérios do dano indemnizável (art. 152º), as causas de exclusão da responsabilidade (art. 149º, nº3 e nº4), a cessação temporal do Direito à indemnização (arts. 153º e 243º, al. b)) e a injuntividade das normas (art. 154º). Uma rápida análise permite concluir que, seja qual for o conjunto de elementos ou de pressupostos que, para o instituto da responsabilidade civil se considerem, eles estão todos presentes e regulados neste pequeno grupo de disposições legais (como a ilicitude, a culpa, o dano, o nexo de causalidade entre o dano e o ato ilícito, o limite temporal do Direito à indemnização, a imputação subjetiva, causas de exclusão da responsabilidade, etc…)308.

Portanto, tratar-se-á de um regime bastante completo e autossuficiente em vários aspetos, uma vez que prescinde da integração em algum dos sistemas clássicos de responsabilidade civil: evitou-se, portanto, tomar posição perante a dúvida da qualificação da responsabilidade civil pelo prospeto através da criação de um sistema ad

hoc que inclui e uniformiza soluções inspiradas quer pela responsabilidade obrigacional,

quer pela responsabilidade delitual309.

Enfim, o legislador estabeleceu um regime de responsabilidade por danos causados pela desconformidade do conteúdo do prospeto, com as exigências de uma infirmação verdadeira, atual, clara e objetiva (cfr. artigo 7.º do CVM), exigências que se estendem, conforme já referimos, também às notações de risco (a fim de permitir aos destinatários do prospeto formular juízos fundados a tal respeito).

307 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Normas de Imputação e Normas de Proteção no Regime da

Responsabilidade Civil Extracontratual pela Informação nos Mercados de Valores Mobiliários, p. 22.

308 Cfr. CARLOS COSTA PINA, Dever de Informação e Responsabilidade pelo Prospecto no Mercado

Primário de Valores Mobiliários, pp. 185 e ss; e L. Menezes Leitão, A Responsabilidade Civil no âmbito da O.P.A.”, in Direito dos Valores Mobiliários, vol. IV, 2003, pp. 116 e ss.

309 Cfr., com mais referências, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Normas de Imputação e Normas de

Proteção no Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual pela Informação nos Mercados de Valores Mobiliários, p. 24.

A primeira conclusão a retirar é a de que o regime legal ora apresentado é, sem dúvida, suscetível de ancorar uma responsabilidade das agências de notação de risco310, ainda que de formas particularmente limitativa.

Em primeiro lugar, diremos que, naturalmente, o regime legal da responsabilidade pelo prospeto aplica-se, apenas, ainda que de forma irrestrita, por princípio, a situações de prospeto obrigatório. Ora, naturalmente, as situações de propspeto obrigatório correspondem apenas a uma pequena parte das notações de risco que ocupam o objeto deste estudo.

Por exemplo, no âmbito das já referidas operações de titularização de crédito, a titularização surgirá atrativa na medida em que o retorno dos investidores tenda a ser relativamente mais elevado do que o risco do crédito, por isso mesmo normalmente reduzido pela garantia prestada. Neste contexto, a valoração do mérito do crédito subjacente e dos novos valores mobiliários emitidos – isto é, a notação de risco – se feita por agências de rating com grande credibilidade e aceitação no mercado (como as Big

Three), aparece como pedra angular aos olhos dos investidores, pelo peso na escolha311. Daí que o pedido de autorização de constituição de fundos de titularização de créditos (FTC), caso as unidades de titularização se destinem a ser emitidas com recurso a subscrição pública, deva ser instruído com o relatório elaborado por uma sociedade de notação de risco registada na CMVM, contendo as informações constantes do artigo 27.º, n.º 4 do Decreto-Lei 453/99, de 5 de Novembro e do artigo 3.º do Regulamento n.º 2/2002 da CMVM (relativo aos fundos de titularização de créditos)312.

E, daí que, também, o resumo do relatório de notação de risco, incluindo a classificação e principais fundamentos, deva constar do prospeto relativo à oferta pública

310 Neste sentido, CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco

(Rating), p. 42.

311 Cfr. JOÃO CALVÃO DA SILVA, Titularização de Créditos – Securitization, pp. 51 e ss.

312 Com efeito, o artigo 3.º do Regulamento n.º 2/2002 da CMVM estabelece que em complemento aos

elementos referidos no n.º 4 do artigo 27.º do Decreto-Lei 453/99, de 5 de Novembro, o relatório de notação de risco deve ainda conter a seguinte informação: a) Apreciação sobre o comportamento histórico dos créditos integrantes do fundo, nomeadamente no que se refere aos fluxos de rendimentos gerados e sua frequência, bem como uma análise da evolução do risco de incumprimento a eles associado; b) Apreciação sobre os termos e principais dificuldades de proceder a uma substituição dos créditos integrantes do fundo, nas situações legalmente previstas; c) Declaração relativamente ao grau de independência entre a sociedade de notação de risco responsável pela elaboração do relatório e a sociedade gestora do fundo de titularização de créditos objeto de análise; e d) A periodicidade de revisão da notação atribuída ao fundo, periodicidade esta que, desejavelmente, deverá ser inferior a um ano.

de distribuição (OPD) de unidades de titularização e à sua admissão à negociação313, conforme, aliás, já tínhamos sublinhado.

Ora, naturalmente, no âmbito da análise do objeto deste nosso estudo, o regime da responsabilidade civil pelo prospeto aplica-se, em princípio, a estas situações de prospeto obrigatório e cujo conteúdo contenha referências ao relatório de notação de risco. Conforme dissemos, trata-se, apenas, de uma pequena parte das notações de risco que, aqui, nos ocupam.

Adicionalmente, atente-se no artigo 149.º, n.º 1, al. h) do CVM, para se perceber o alcance limitado que a responsabilidade civil pelo prospeto acaba por ter, no âmbito da responsabilidade civil das agências de rating: a responsabilidade civil das agências de notação de risco pressupõe que elas tenham aceite serem nomeadas no prospeto enquanto responsáveis pela notação nele publicitada. Conforme decorre da do preceito invocado, “são responsáveis pelos danos causados pela desconformidade do conteúdo do prospeto com o disposto no artigo 135.º, salvo se provarem que agiram sem culpa, as demais pessoas que aceitem ser nomeadas no prospeto como responsáveis por qualquer informação, previsão ou estudo que nele se inclua”.

Ou seja, só se justifica, então, haver responsabilidade pelo prospeto nos casos em que a agência de rating tenha, não apenas intervindo ou participado na construção da operação que o requer, mas aceite também ser nomeada no prospeto como responsável pela notação314. Ora, esta será, contudo, uma situação particularmente rara.

Aliás, estaremos, neste âmbito, apenas dentro do universo das notações de risco solicitadas, bastante longe de abarcar, na totalidade, todas as notações de risco (ficam, por isso, de fora deste enquadramento as notações não solicitadas).

Retenha-se, pois, que o instituto da responsabilidade pelo prospeto apenas colherá alguma utilidade para as situações de notações de risco solicitadas que se incluam em

313 Vide artigos 134.º e seguintes do CVM e a Diretiva 2003/71/CE do Parlamento Europeu, de 3 de

novembro de 2003 (Diretiva dos Prospetos) e o Regulamento (CE) n.º 809/2004, de 29 de abril de 2004, que complementa a diretiva.

314 No mesmo sentido, cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação

prospetos, sendo a aplicação analógica destas regras do CVM, fora do conteúdo que tipicamente e primariamente lhe cabe, à partida muito problemática315.

3.5 OPARADIGMA DA TUTELA DELITUAL: A INADEQUAÇÃO DA TUTELA DELITUAL