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O ARTIGO 484 º E A TUTELA DELITUAL DO CRÉDITO E DO BOM NOME

J URIDICAMENTE E XIGÍVEL

2.2.2 O ARTIGO 484 º E A TUTELA DELITUAL DO CRÉDITO E DO BOM NOME

O nosso ordenamento jurídico reconhece explicitamente uma tutela delitual do crédito e do bom nome contra ofensas negligentes no artigo 484.º do CC, onde se dispõe que “quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoal, singular ou coletiva, responde pelos danos causados”215.

Ou seja, o legislador, ladeando a questão de saber se há ou não um direito subjetivo ao “crédito” ou ao “bom nome” das pessoas singulares ou coletivas216, considerou expressamente ilícita a conduta (“quem afirmar ou difundir um facto”) que ameace lesá-

215 Vide, sobre o tema, FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito

ou ao Bom Nome, Coimbra, 2011. Note-se que o nosso Código Civil, tendo fixado, no artigo 483.º, n.º 1 a

cláusula geral de responsabilidade civil aquiliana, passa depois a tratar situações especiais que, no entendimento do legislador, apresentam uma compleição que suscita regras diferenciadoras, em relação ao que já derivaria do princípio geral. E a primeira dessas situações, logo no artigo 484.º, diz respeito à “ofensa ao crédito ou do bom nome”.

216 Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, pp. 270-271, no sentido de que o artigo 484.º

parecer, em bom rigor, dispensável, uma vez que o artigo 483.º já tutela a violação de direitos subjetivos como categoria de ilicitude, sendo manifesta a existência de um direito subjetivo ao bom nome e reputação (cfr. artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) e à intimidade da vida privada e familiar (artigo 80.º do Código Civil), não vendo, assim, utilidade nesta previsão específica. O Autor considera que esta norma é útil no âmbito do sistema jurídico germânico, perante o carácter restrito da enumeração dos bens jurídicos tutelados no § 824 I do BGB, mas é totalmente dispensável no sistema jurídico português, perante a previsão genérica de ilicitude por violação de qualquer direito subjetivo, no artigo 483.º, n.º 1.

los (“capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa singular ou coletiva”), nos termos prescritos217.

Trata-se de um preceito cuja fonte é o § 824 do Bürgerliches Gesetzbuch, que prevê a responsabilidade do agente pela divulgação de factos prejudiciais, desde que esses factos sejam falsos, e o agente conhecesse ou devesse conhecer essa falsidade. Note-se, todavia, que a lei alemã é menos protetora do que a portuguesa, uma vez que exige a falsidade do facto e o conhecimento dessa falsidade ou o dever de a conhecer, por parte do declarante218.

Ora, no âmbito do nosso artigo 484.º do CC, suscita-se, imediatamente, uma questão: esta cláusula219 abrange indistintamente a afirmação ou difusão de quaisquer factos, sejam eles verdadeiros ou falsos?

Por um lado, PESSOA JORGE220 pronunciou-se no sentido de que não haveria responsabilidade pela afirmação ou divulgação de factos verdadeiros, desde que a divulgação não integrasse os pressupostos de uma previsão penal, já que, caso contrário, teria de se considerar ilícita a atividade das agências de informações, quando estas desempenham factos socialmente relevantes.

Por outro lado, em sentido contrário, ANTUNES VARELA221 considera haver responsabilidade pela divulgação de factos verdadeiros ou falsos, contando que seja suscetível, ponderadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoas para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom

217 Note-se que o preceito contempla quer as atuações dolosas, quer as atuações negligentes. Neste sentido,

vide também CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating), p. 30.

218 Veja-se, a título de curiosidade, que o atual § 824 do BGB deriva da reforma de 2001/2002, porquanto

a sua versão original protegia apenas as mulheres.

219 O artigo 484.º do CC representa, a par de outras normas (como o artigo 485.º), um tipo delitual

específico, para além da previsão geral da responsabilidade civil subjetiva do artigo 483.º do CC, estendida à omissão pelo artigo 486.º. No entanto, não cremos tratar-se, para além da cláusula de violação dos direitos subjetivos e da cláusula de violação de normas de proteção do n.º 1 do artigo 493.º, de uma simples outra cláusula geral de ilicitude. Com efeito, a previsão do artigo 484.º não se limita à ilicitude, antes bulindo com o facto, com a culpa e com a própria causalidade. Por isso, esta cláusula constitui, na verdade, um modelo global específico de imputação, que transcende a ilicitude. Neste sentido, cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, tomo III, p. 454.

220 PESSOA JORGE, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, CEF, 1968,

reimpressão, Coimbra, Almedina, 1995, p. 310.

221 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª edição, Almedina, Lisboa, 2012, pp. 548-

549. No mesmo sentido, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, vol. II, Direito das

nome), no meio social em que vive ou exerce atividade. O Autor considera, ainda, que o invocado caso das agências de informações não altera esta solução, na medida em que, estando elas autorizadas a funcionar como tal, as informações que prestem vêm a corresponder ao exercício de um direito ou a cumprimento de um dever contratual, o que basta para excluir a ilicitude da sua conduta.

Com efeito, a afirmação ou a divulgação de factos pode não ser ilícita se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever, legal ou contratual (como se se tratar, por exemplo, de informações divulgadas em depoimento de parte ou de testemunha, num inquérito judicial, etc.).

Neste mesmo sentido, argumenta também MENEZES CORDEIRO222, defendendo que a lei não exige, como pressuposto de funcionamento do artigo 484.º do CC, a falsidade de quaisquer afirmações, antes se limitando a remeter, ainda que implicitamente, para os direitos de personalidade.

Já ALMEIDA COSTA223 refere que ainda que a regra consista na irrelevância da veracidade ou falsidade do facto, sempre que a difusão corresponda a interesses legítimos, deve-se admitir a exclusão da responsabilidade.

RIBEIRO FARIA224, por seu turno, entende que a divulgação de factos verdadeiros apenas deverá envolver a responsabilização do agente se for efetuada dolosamente, pelo que, a não se considerar consagrada esta solução no artigo 484.º do CC, não poderá admitir-se a inclusão no seu âmbito de divulgação negligente de factos verdadeiros.

Finalmente, MENEZES LEITÃO225, recuperando as tipificações criminais nesta sede (designadamente, os cries de difamação – artigo 180.º do Código Penal -, de injúria – artigo 181.º do CP -, de ofensa a pessoa coletiva, organismo e serviço – artigo 187.º do CP -, e devassa da vida privada – artigo 192.º, al. d) do CP), conclui que a afirmação ou difusão de factos falsos é sempre proibida, pelo que o agente que com dolo ou negligência adote esse comportamento responderá por todos os danos causados ao visado. E, quanto

222 MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. II, tomo III, p. 555. 223 ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, pp. 564-565.

224 RIBEIRO FARIA, Direito das Obrigações, vol. I, Coimbra, Almedina, 1987, p. 434. 225 MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, pp. 269-270.

aos facos verdadeiros, entende o Autor que a sua divulgação poderá ser admitida, mas desde que tal se efetue para assegurar um direito próprio ou um interesse público legítimo.

Quanto a nós, antes de mais, diremos que nos parece tratar-se de um preceito pouco útil: ainda que permita ladear a discussão em torno da existência, ou não, de um direito subjetivo ao crédito e ao bom nome das pessoas singulares e coletivas - porquanto o legislador português considerou, no artigo 484.º do CC, expressamente ilícita a afirmação ou divulgação de factos que ameace lesar estes direitos, nos termos aí previstos - a verdade é que, conforme veremos adiante, o nosso ordenamento jurídico já conhece um direito subjetivo ao crédito e ao bom nome, no âmbito dos direitos de personalidade226.

Relativamente à discussão em torno da veracidade ou falsidade dos factos proferidos, parece-nos, em regra, que será irrelevante, para efeitos de aplicação deste preceito, se o facto divulgado é ou não verdadeiro, uma vez que a o fator decisivo para a aplicação deste artigo será a diminuição, através dessa afirmação ou divulgação, da confiança no crédito do lesado ou do prestígio do seu bom nome.

No entanto, note-se que será sempre lícita a afirmação ou divulgação de factos que correspondam a um exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever; em contrapartida, caso a afirmação ou divulgação em causa integre os ilícitos penais mencionados, à sanção civil do dano poderão acrescer as sanções previstas na lei penal.

Mas, urge questionar, o que deve entender-se por afirmação “verdadeira” ou “falsa”?

Diremos, com MENEZES CORDEIRO227, que tudo o que seja amputar a verdade, transmiti-la a sugerir algo diverso do que dela resulte, redigi-la de modo a provocar valorações tendenciosas, levantar dúvidas ou reticências ou fabricar notícias por qualquer modo, não pode reivindicar a veritas, sendo ilícito, desde que atinja a honra de alguém.

Ora, é sabido que as afirmações totalmente verdadeiras também são capazes de atentar contra a honra das pessoas: mas a verdade é que nem tudo o que existe, se faz ou

226 Neste sentido, também MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, pp. 270-271, afirmando

que é manifesta a existência de um direito subjetivo ao bom nome e reputação (artigo 26.º, n.º 1 da CRP) e à intimidade da vida privada e familiar (artigo 80.º do CC), não se vendo, assim, utilidade na previsão desta situação do artigo 484.º como Tatbestand delitual específico.

sucede tem de ser revelado pelo que – e não estando, aqui, em causa a intimidade privada, protegida por um outro direito específico – há um juízo de oportunidade que deve ser feito. Por isso, parece-nos que, em regra, a exceptio veritatis, isto é, o escudo da verdade para justificar a afirmação proferida, não pode ser tout court aceite. Afinal, “o Direito civil procura a felicidade das pessoas; nunca poderá contemporizar com a maldade gratuita”228.

Assim, o filtro que ajudará o intérprete a determinar se o facto afirmado ou divulgado, verdadeiro ou falso, é capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome do visado será o do critério do bónus pater famílias: a pessoa média normal sentir-se-ia bem consigo próprio e com os outros se fosse vítima da afirmação ou da insinuação em causa?229

Questão diferente será, porém, a de perceber qual é a conduta punível: é que, nos termos do artigo, apenas responderá pelos danos causados “quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome”. O legislador referiu-se, expressamente, à afirmação e divulgação de factos. O que entender por tal “facto”?

Por princípio, um facto será uma afirmação ou uma insinuação, feita pela palavra (escrita ou oral), pela imagem ou pelo som, que impliquem ou possam implicar desprimor para o visado, que resultará diminuído na consideração social que ele tenha de si mesmo. No entanto, as notações de risco estão longe de serem factos, sendo, antes, meras avaliações, prognoses e opiniões que envolvem juízos de valor, escapando, assim, ao conceito de “facto” e à aplicação deste preceito230.

Por isso, o artigo 484.º do CC, por tutelar apenas a divulgação e afirmação de factos, não se encontra apto a tutelar os danos sofridos pelas entidades emitentes em virtude das notações de risco inexatas das agências de rating.

É que o legislador não pretendeu consagrar uma responsabilidade por opiniões. Com efeito, as opiniões e os juízos de valor beneficiam, como será natural, de um estatuto de alargada irresponsabilidade, quer em Portugal, quer noutros quadrantes, que se encontra compreensivelmente associado à necessidade de tutelar a liberdade de

228 MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. II, tomo III, p. 557. 229 Assim, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. II, tomo III, p. 553.

230 Neste sentido, CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco

expressão, de comunicação e de pensamento231. O risco de um dever de indemnizar, fundado na responsabilidade por opiniões ou juízos de valor, certamente obscurecia ou silenciava (chilling effect) estas liberdades fundamentais do tráfego jurídico.

No entanto, não nos precipitemos, para já, em conclusões acerca da irresponsabilidade das agências de notação de risco por condutas negligentes que provoquem danos, através dos relatórios de rating, às entidades notadas.

É que, conforme nos recorda CARNEIRO DA FRADA232, os ratings constituem apreciações com pretensão de objetividade e neutralidade em ambiente económico, no mercado de capitais e trazem implícito resultarem de procedimentos de avaliação conformes com as legis artis e alicerçam-se em factos, para o efeito devidamente escrutinados por quem tinha também especial competência para tal.

Por isto, mesmo não constituindo meras asserções de facto, os ratings justificam um regime de responsabilidade mais gravoso, até porque, a notação de risco assume-se como uma atividade financeira particularmente necessária e decisiva para a funcionalidade dos mercados de capitais e quem produz e difunde os ratings aufere, ou pretende auferir, lucros e proveitos com esta atividade. Não está, portanto, meramente em causa a proteção da liberdade de pensamento e de expressão: está, antes, em causa a tutela das entidades emitentes que vieram a sofrer prejuízos devido a notações de risco negligentemente inexatas.

Mas este regime de responsabilidade deverá ser convenientemente fundamentado, isto é, a responsabilidade delitual das agências de notação de risco não prescinde, naturalmente, de um enquadramento perante as situações básicas de responsabilidade aquiliana previstas no artigo 483.º, n.º 1 do CC: referimo-nos à lesão de direitos de outrem e à violação de disposições de proteção.

É que o simples ocasionar de um prejuízo por falta de diligência de um sujeito não é suficiente para que se funde uma obrigação de indemnizar, havendo, pois, que enquadrar a conduta numa das duas modalidades de ilicitude previstas no artigo 483.º do CC.

231 Assim, CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

p. 30.

232 Cfr. CARNEIRO DA FRADA, A Responsabilidade Civil das Agências de Notação de Risco (Rating),

No que à responsabilidade delitual diz respeito, o artigo 483º, nº1 do Código Civil imputa os danos ao agente que, com dolo ou mera culpa, violar uma das duas modalidades de ilicitude aí previstas: violação de um direito subjetivo (violação de um direito de

outrem, de acordo com o artigo 483.º, n.º 1, 1.ª parte) ou de uma norma de proteção

(disposição legal destinada a proteger interesses alheios, de acordo com artigo 483.º, n.º 1, 2.ª parte).

Não estando em causa a violação de um direito subjetivo, entramos no domínio da problemática dos danos puramente patrimoniais233.

Em regra, os danos puramente patrimoniais são definidos pela negativa, por representarem todos aqueles que não resultam da violação de um direito absolutamente protegido234: ou seja, estamos perante um tipo de dano onde se verifica uma perda patrimonial sem que tenha existido uma prévia violação da primeira modalidade de ilicitude do artigo 483º, n.º 1.

São inúmeros os exemplos a que poderíamos recorrer para ilustrar esta categoria de prejuízos. Compreendem-se, aqui, desde logo, os danos patrimoniais reflexamente sofridos por terceiros, nomeadamente por investidores ou por entidades emitentes, provocados pelas agências de notação de risco que produzam ratings negligentemente incorretos. Um outro caso típico diz respeito aos famosos cable cases, que ocorrem quando alguém provoca negligentemente o corte de um cabo de fornecimento de energia

233 Sobre a problemática dos danos puramente patrimoniais e os limites da tutela delitual, vide o nosso RUI

VASCONCELOS PINTO, A Tutela Delitual dos Danos Patrimoniais Reflexos. Parte II: os Danos

Puramente Patrimoniais e os Limites da Tutela Delitual, in O Direito, Ano 150.º (2018), II, pp. 361-399.

234 Cfr. Sinde Monteiro, A responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, p. 187; Rui

Ataíde, A responsabilidade do “representado” na representação tolerada, AAFDL, Lisboa, 2008, p. 188; e Carneiro da Frada, Uma “terceira via” no direito da responsabilidade civil?, Almedina, Coimbra, 1997, p. 36-42. A expressão “danos puramente patrimoniais” ou “danos primariamente patrimoniais” radica, entre nós, em Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, p. 187 e é utilizada em diversas obras, como a da autoria de Adelaide Menezes Leitão, Normas de proteção e danos

puramente patrimoniais”, p. 31 e passim, ou como a de autoria de Rui Ataíde, Responsabilidade civil por violação de deveres no tráfego, p. 1067 e passim. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 238 recorre, também, à designação de “danos pura

ou primariamente patrimoniais”, que corresponderá, conforme sublinha o autor, à terminologia fixada pela linguagem germânica - reine oder primäre Vermögensschaden - utilizada para assinalar a inexistência de violação de direitos subjetivos absolutamente protegidos e sublinhar a circunstância de ser o património em si mesmo, independentemente da violação de um direito individual, que é atingido. Já Rita Amaral Cabral,

Tutela delitual do crédito, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva, Lisboa,

2001, pp. 1028-1029, por seu turno, utiliza a expressão “dano económico”. Por fim, no universo anglo- saxónico, estes danos são, preferencialmente, denominados de pure economic loss ou economic tort, por forma a acentuar a contraposição com os danos causados na pessoa ou na propriedade.

elétrica, por hipótese, provocando graves danos patrimoniais à empresa que ficou sem energia e, portanto, privada de laborar.

Enfim, em todas estas situações há um prejuízo que se repercute na situação patrimonial global de alguém, sem que tenha sido atingido um bem absolutamente protegido. Nas palavras de Sinde Monteiro, verifica-se um damnum sine injuria, “nessa medida valendo o princípio casum sensit dominus”.235

Ora, diga-se, a título introdutório, que é inegável que se tem assistido, atualmente, a um fenómeno de progressiva ampliação da área do dano delitual ressarcível236. Contudo, esta expansão do dano ressarcível só pode ser feita tendo em conta as diretrizes do instituto da responsabilidade civil plasmado no nosso Código Civil e, por isso, fizemos questão de, ao longo da nossa exposição, ir chamando a atenção para que a responsabilidade das agências de notação de risco não pode prescindir de um enquadramento dogmático perante as situações básicas de responsabilidade civil previstas no ordenamento jurídico português.

Mas, parece-nos absolutamente incontestável a afirmação de que nem todos os prejuízos poderão ser reparados, sob pena de sacrificarmos o pilar inerente à liberdade de ação dos agentes jurídicos, que pauta qualquer conceção moderna de Direito privado.

O tráfego jurídico assenta numa verdadeira balança onde estão, constantemente, numa autêntica relação de tensão, por um lado, os pilares da liberdade e autodeterminação dos indivíduos e, por outro, a necessidade de responsabilização daqueles que desrespeitaram as esferas jurídicas alheias. É nesta dicotomia de liberdade/responsabilidade que se encontra o fundamento de todo o sistema de responsabilidade civil, procurando uma justa repartição dos danos que resultem de todas as interações sociais. Recorrendo às palavras de Rui Ataíde237, esta imputação – sobretudo quando fora do contexto negocial, enquanto modelo paradigmático de vinculação voluntária - carece de um fundamento material capaz de disputar a primazia axiológica da liberdade de agir, “cuja consagração significa implicitamente a tolerância jurídica das

235 Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, pp- 189-190,

referindo que o casum sensit dominus é o princípio clássico em matéria de responsabilidade civil, ainda que o Estado de Direito social lhe tenha introduzido numerosas limitações.

236 Cfr. Maria João Pestana de Vasconcelos, Algumas questões sobre a ressarcibilidade delitual de danos

patrimoniais puros no ordenamento jurídico português, p. 147, citando o autor italiano Francesco Galgano, La commedia della responsabilità civile, RCDP 1987, p. 192.

inerentes interferências mais ou menos intensas sobre as esferas alheias, inevitáveis por força da natural dinâmica de interatividade que se estabelece entre membros de uma mesma coletividade”.238

No que aos danos puramente patrimoniais diz respeito, e no contexto do nosso ordenamento jurídico, a seleção dos danos que merecem ser ressarcidos resulta, em primeira linha, do artigo 483º, n.º1, com especial enfoque para as duas modalidades de ilicitude aí plasmadas239: a violação de um direito subjetivo absoluto e a violação de uma disposição destinada a proteger os interesses alheios. É, então, versando sobre estas duas