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Paula Angela de Figueiredo e Paula

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Academic year: 2019

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Paula Ângela de Figueiredo e Paula

O Desejo Do Analista Como o Nome de Um Amor Mais Digno Que a Solidariedade Social

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social sob a orientação do Professor Doutor Raul Albino Pacheco Filho.

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BANCA EXAMINADORA

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Ainda que eu falasse a língua dos homens... Que eu falasse a língua dos anjos... Sem amor, eu nada seria... É só o amor, é só o amor que conhece o que é a verdade O amor é bom não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece O amor é fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer Ainda que eu falasse a língua dos homens

Que eu falasse a língua dos anjos Sem amor, eu nada seria... É um não querer mais que bem querer É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente É cuidar que se ganha em se perder É estar-se preso por vontade É servir a quem vence o vencedor É o tempo quem nos mata lealdade Tão contrário assim é o mesmo amor Estou acordado(a) e todos dormem, todos dormem Agora vejo em parte, mas então veremos face a face É só o amor, é só o amor que conhece o que é verdade Ainda que eu falasse a língua dos homens... Que eu falasse a língua dos anjos... Sem amor eu nada seria...

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Para defender a tese de que o desejo do analista é o nome de um amor mais digno que a solidariedade social foi preciso primeiro demonstrar que a solidariedade como categoria ética dos tempos modernos, surgiu justamente como resposta às desigualdades sociais acentuadas com o capitalismo. Consolidamos as bases teóricas de um estudo sobre o amor nos três registros do ensino de Lacan, mostrando os limites da solidariedade como um tipo de amor que não carrega nenhuma virtude em si, pois se funda na segregação do diferente, negando a alteridade do outro. Fizemos a distinção entre o gozo e o amor apresentando o analista como alguém que opera na lógica feminina do “não-todo” como forma de escapar do discurso capitalista. A tese foi escrita com a formalização de um matema que deve servir para mostrar o desejo do analista como o nome de um “novo amor” fora da dimensão de Eros de Philia e de Agape. Esta tese é fruto de meu desejo em fazer da psicanálise um instrumento político para a intervenção em contextos sociais, derrubando a idéia de que a solidariedade beneficente, hoje hegemônica em nossa sociedade, seja o fundamento ético capaz de superar nossas mazelas sociais.

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Pour défendre la thèse selon laquelle le désir de l’analyste est le nom d’un amour plus digne que la solidarité sociale, il a d’abord fallu démontrer que la solidarité, en tant que catégorie éthique des temps modernes, a justement surgi afin de répondre aux inégalités sociales accentuées par le capitalisme. Nous renforçons les bases théoriques d’une étude portant sur l’amour dans les trois registres de l’enseignement de Lacan, en montrant les limites de la solidarité comme un type d’amour qui ne renferme aucune vertu en lui-même, puisqu’il repose sur la ségrégation de ce qui est différent et nie l’altérité de l’autre. Nous avons fait une distinction entre la jouissance et l’amour en présentant l’analyste comme quelqu’un qui agit selon la logique féminine du « pas tout » afin d’échapper au discours capitaliste. La thèse selon laquelle le désir de l’analyste est le nom d’un amour plus digne que la solidarité sociale a été écrite sous la forme d’une esquisse. Celle-ci doit servir à montrer le désir de l’analyste comme le nom d’un « nouvel amour ». Ces deux thèses s’unissent dans mon désir de transformer la psychanalyse en un instrument politique permettant d’intervenir au sein des contextes sociaux, tout en déconstruisant l’idée selon laquelle la solidarité bienfaitrice devenue de nos jours hégémonique dans notre société est le fondement éthique capable de surmonter nos maux sociaux.

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To defend the thesis that it is more appropriate to name the analyst’s desire a love than social solidarity, it was first necessary to demonstrate that solidarity, as an ethical category of present times, arose specifically as a response to the social inequalities that are accentuated by capitalism. The theoretical basis for this study of love was consolidated on the three approaches in Lacan’s teaching and that the solidarity is limited, being a type of love that has no virtue in itself as it is founded on the segregation of the different, so negating the otherness of the other. A distinction was made between joy and love, showing the analyst to be someone operating within the feminine logic of “not-all” as a means to escape the capitalist discourse. The thesis that analyst’s desire is a more appropriate name of love than social solidarity was described by formulating a matheme. This should be sufficient to show analyst’s desire to be the name of a “new love”. These two theses unite in my own desire to make psychoanalysis a political instrument for intervention in social contexts, overturning the currently hegemonic idea in our society that charitable solidarity should be the fundamental ethic capable of overcoming our social ills.

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Para defender a tese de que o desejo do analista é o nome de um amor mais digno que a solidariedade social foi preciso dividi-la em duas. Para chegar à primeira delas, que é a de que a solidariedade é um sintoma social do capitalismo, desenvolvemos os dois primeiros capítulos. No primeiro fizemos um sobrevôo pela história desde o início do feudalismo, no século XIII, e as consequências de seu apogeu, no século XIV, até chegar à atualidade, quando os efeitos do neoliberalismo globalizado do capitalismo financeiro sucatearam as políticas sociais do Estado, movimento intensificado a partir de 1960 do século XX.

No segundo capítulo, pesquisamos sobre o movimento solidarista capitaneado pelos pensadores católicos Robert Owen, Charles Fourier, Saint-Simon e Phroudon, que, no final do século XIX, buscavam fazer acontecer um equilíbrio entre o individualismo liberal e o coletivismo marxista. A solidariedade é uma categoria ética dos tempos modernos surgida no século XIX, justamente como resposta às desigualdades sociais acentuadas pelo sistema capitalista, visando amenizar mazelas trazidas pela lógica mercantil.

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INTRODUÇÃO ... 11

1. O CAPITALISMO E A ESTRUTURA DE SEUS DISCURSOS ... 22

1.1 Um Pouco “Exagerado” de História. ... 23

1.2 Como Começou o Feudalismo? ... 26

1.3 O Capitalismo Mercantil ... 31

1.4 O Capitalismo Industrial ... 36

1.5 O Liberalismo e as Revoluções Burguesas ... 42

1.6 O Liberalismo e o Direito à Representação ... 49

1.7 Problemas da Representação Política ... 51

1.8 Neoliberalismo e o Capitalismo Financeiro ... 57

1.9 Reflexos Econômicos e Estruturais da Passagem do Capitalismo Industrial ao Capitalismo Financeiro ... 66

1.10 Como Ficam as Políticas Sociais? ... 73

2. BASES ANTROPOLÓGICAS DA SOLIDARIEDADE ... 81

2.1 Os Socialistas Utópicos ... 88

2.2 A Doutrina Social da Igreja ... 91

2.3 A Solidariedade da Classe Trabalhadora ... 95

2.4 As Novas Formas de Solidariedade no Mundo Contemporâneo ... 107

3. A SOLIDARIEDADE COMO SINTHOMA DO CAPITALISMO FINANCEIRO NEOLIBERAL ... 114

3.1 A Virada do Sintoma no Ensino Lacaniano ... 119

3.2 Qual o Discurso Dominante No Capitalismo Financeiro? ... 124

3.3 Do Sintoma ao Sinthoma ... 132

3.4 A Ontologia Psicanalítica Da Solidariedade ... 137

4. SOBRE O AMOR E SUAS DIMENSÕES NA FILOSOFIA E NA PSICANÁLISE ... 146

4.1 Para Começar: Eros e Platão ... 146

4.2 A Vertente Imaginária do Amor Erótico ... 148

4.3 A Philia e a Polis ... 149

4.4 A Vertente Simbólica de Philia ... 152

4.5 O Ágape e o Amor Imotivado de Deus ... 154

4.6 A Vertente Real do Amor no Seminário da Ética ... 157

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5. O QUE O GOZO TEM A VER COM O AMOR? ... 190

5.1 Um Santo Lacaniano ... 196

5.2 As Vertentes do Real em sua Conjugação com os Tipos de Gozo ... 200

5.3 A Mulher, O Sinthoma e o Amor ... 203

6. O DESEJO DO ANALISTA COMO O NOME DE UM AMOR MAIS DIGNO ... 216

6.1 O Amor na Posição de Agente no Discurso do Analista ... 223

CONCLUSÃO ... 229

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INTRODUÇÃO

De acordo com Dumont (1981), o individualismo se constituiu no Ocidente como uma nova configuração da vida social. Essa tradição iniciou-se no século XVI e se fortaleceu com a revolução científica, capitaneada por Descartes ao teorizar um sujeito autoconsciente, dono de sua própria vontade. Da Renascença às Luzes assistiu-se a profundas mudanças no plano político, econômico e social, e o Liberalismo dos séculos XVII e XVIII, por sua vez, elevou o conceito de indivíduo ao nível de bandeira política e realidade econômica.

Tal ideário passou por transformações enormes até chegar ao Neoliberalismo atual, um arcabouço teórico e ideológico que combate as teses keynesianas a respeito do Estado de Bem-estar Social e critica implacavelmente os direitos sociais e os ganhos de produtividade auferidos à classe trabalhadora. De acordo com Santos (1996), tal situação se instaura porque o princípio do mercado extravasou a política econômica, colonizando o próprio Estado e a sociedade. Sob esse ideário, as relações de mercado competitivas e otimizadoras constituem-se um princípio necessário e capaz não apenas de limitar a intervenção estatal, mas também de racionalizar o próprio governo (MANCEBO, 2002, p. 107).

Estamos, ao que tudo indica, vivendo também as transformações sociais decorrentes da revolução digital e dos avanços tecnológicos que acentuam os efeitos da globalização econômica. De acordo com Pacheco Filho (2005, p. 162), o capitalismo surgiu como uma revolução no modo de estruturação das relações sociais, econômicas e políticas, sustentando a crença de que a livre competição entre os indivíduos autônomos em busca do lucro e de exclusivo interesse pessoal pode produzir o benefício coletivo. O capitalismo sempre foi visto como promessa de libertação da potencialidade humana, capaz de uma distribuição mais igualitária e equitativa, considerando a participação dos cidadãos nos processos decisórios sociais. No entanto, o capitalismo se mostrou desde o início portador de contradições que evidenciaram sua incapacidade de progredir sem frustrar as mesmas expectativas que impulsionaram seu desenvolvimento (SANTOS, 2005).

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possibilitem um consumo ilimitado e uma alocação privilegiada no espectro da hierarquia social.

Em tempo de escassez de direitos para uma grande parcela da população nacional e mundial, convivemos há pelo menos duas décadas no Brasil com a convocação por uma “ética da solidariedade” como uma das grandes saídas para se fazer justiça social. A solidariedade se tornou, portanto, um vocábulo sócio-político com força simbólica para fazer com que pessoas se sensibilizem para o socorro aos mais necessitados. Analisamos esse apelo muito recorrente como a confissão velada do Estado neoliberal que privilegia a saúde econômica, fazendo sempre faltar recursos para as políticas sociais.

O apelo às campanhas de solidariedade, que costumavam acontecer especialmente em ocasião de crises humanitárias emergenciais, prestado às vítimas de catástrofes naturais e de guerras, curiosamente se instalou em nosso cotidiano como estratégia de “marketing” para a arrecadação sistemática de recursos financeiros destinados à realização de “projetos sociais” para as camadas pobres da população.1

Estamos de acordo com Zizek (2005, p. 14) quando nos alerta para o fato de que a luta pela hegemonia ideológica e política sempre se apropria de termos que são espontaneamente vivenciados como apolíticos pelas pessoas comuns. Ele observa que não é de se admirar que o nome do mais forte movimento dissidente no comunismo do leste europeu na década de 1980 fosse “Solidariedade.” Zizek afirma que “Solidariedade” foi o candidato perfeito, pois sua operacionalidade política apelava para a alusão da unidade simples e fundamental entre os seres humanos que deviam, naquele momento, se unir para além de todas as diferenças. A solidariedade é, portanto, um significante da plenitude impossível da sociedade, um significante situado, por assim dizer, na própria fronteira que separa o político do pré-político.

Responsável pela formação ético-política no curso de psicologia da PUC-MG em Betim me interessa despertar no aluno o interesse em analisar os efeitos da globalização da lógica econômica do capitalismo no funcionamento do Estado neoliberal e na constituição das subjetividades contemporâneas. Pensamos que, assim, nossos alunos estarão mais bem preparados para responder às demandas institucionais advindas das políticas públicas e também do novíssimo campo do empreendedorismo social, conhecido como Terceiro Setor, sem repetir práticas assistencialistas que impossibilitam a mudança de posição subjetiva das pessoas beneficiárias desses serviços, reforçando sua condição de dependente frente ao outro.

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Nossa preocupação não é sem motivos, pois além do fato da Psicologia ter historicamente agregado pessoas que querem ajudar os outros, estamos em uma Universidade Católica que mantém ações de filantropia na comunidade, baseadas no cuidado e na solidariedade. O apelo à ética de um amor cristão são os argumentos que fundamentam não só os projetos de extensão como as ações da pastoral universitária e, ao mesmo tempo em que visam contribuir com a melhoria de vida do público atingido, também amenizam a despolitização e pobreza espiritual que nos assola na contemporaneidade.

Nosso compromisso é o de não formar profissionais que, sem analisar a quem suas intervenções beneficiam, atendam prontamente a demanda que lhes é feita, esclarecendo-os do risco de não desarticular o sistema de prestação de serviços que mantém as desigualdades sociais, porque cristaliza posições subjetivas de submissão e carência. A crítica política ao papel do saber técnico “psi” deve preparar os profissionais psicólogos para um movimento de resistência aos modelos de intervenção social que não promovam um saber novo, porque construído pelas próprias pessoas participantes do processo.

Se no início da institucionalização da psicologia no Brasil essa ciência esteve calcada em um projeto epistemológico bastante positivista, afastada das temáticas políticas por causa de uma pretensa neutralidade científica; se esteve associada a projetos modernizadores, de natureza elitista e de corte autoritário tal como Bock (2003) nos alerta; com a decadência da ditadura militar e a abertura democrática novas possibilidades foram criadas para a expressão de uma Psicologia que toma como foco o campo político.

A psicologia brasileira foi regulamentada em 1962 e, efetivamente, não foi sem consequências o fato de ela ter vivido os vinte primeiros anos de sua institucionalização em plena ditadura militar, com ausência da liberdade de expressão, de organização e de crítica.

Os psicólogos assistiram em silêncio ao sucateamento das políticas públicas de emprego, saúde e educação; viram o país se endividar para os organismos internacionais; as relações capitalistas se tornarem cada vez mais hostis, enquanto cidadãos eram torturados ou se tornavam desaparecidos.

Nós, os psicólogos, estivemos fora do espaço da política e do debate público que define a convivência social da maioria dos cidadãos brasileiros. Estivemos fora das instituições nas quais os cidadãos brasileiros foram e ainda são maltratados pelas políticas do Estado. Temos uma trajetória de omissão frente às desigualdades sociais, omissão patrocinada pelo conforto no qual nos instalamos enquanto classe social.

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precisa aprofundar a sua relação com os Índices de Desenvolvimento Humano e com a história da política do Estado brasileiro, mas não pode deixar de lado a contribuição da psicanálise freudo-lacaniana, pois ela nos ajuda a esclarecer o que há de dominação e obscenidade escondido na solidariedade quando queremos intervir em contextos estranhos aos da classe média brasileira, dando-nos pistas de uma política do ato e do acontecimento.

A comissão de especialistas que analisaram o resultado dos “provões” – testes nacionais que avaliam os estudantes de psicologia recém-formados pelas universidades do país – encontrou, em 2004, uma situação curiosa. Ao comparar a fabulosa capacidade dos profissionais avaliados de recomendar um procedimento técnico adequado a uma situação problema apresentada, constata-se que são incapazes, no entanto, de justificar teoricamente o procedimento recomendado. Esse resultado revela que os profissionais continuam saindo das universidades tecnicamente bem treinados na escolha de opções instrumentais, mas sem fundamentação teórica para explicar o porquê de suas próprias recomendações técnicas (MENDONÇA FILHO, 2005).

Essas questões se impõem no horizonte de formação do psicólogo, que precisa saber como contribuir com a sua profissão para a transformação da realidade social brasileira, pois, caso contrário, cederá facilmente às promessas do Terceiro Setor, que está aí para lhe oferecer emprego, dentro das condições já comentadas.

Considerando o alerta que Ramos (2007, p. 117) faz sobre o compromisso político de uma “certa” psicologia, julgamos fundamental “o desvelamento das relações de dominação ocultas sob as mediações e determinações materiais do psiquismo e das subjetividades.” Concordamos com o autor, para quem “esta psicologia” deve funcionar como uma força de resistência e não conformar o particular à realidade material dada, como se esta última fosse “natureza”, contribuindo dessa forma para a eternização da lógica capitalista.

Certamente já sabemos que a Psicologia não admite mais pensar a subjetividade sem uma teoria social, mas estamos em via de não abrir mão de definir uma teoria do sujeito que nos permita compreender a dialética entre a concretude da subjetividade e a objetividade da História, implicando em seu cerne a dimensão do vazio.

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Sabemos que o projeto de Freud foi também, em certo momento, o de ampliar os efeitos da Psicanálise para além dos muros do consultório individual. Em 1918, no V Congresso Internacional de Psicanálise, ele expressou a esperança de que, um dia, alguém se aventurasse na tentativa de transportar a psicanálise para a comunidade: havia chegado o tempo de se tomar consciência da comunidade; de se acordar para o fato de que os pobres tenham direito de ajuda para as suas mentes quanto do cirurgião para salvar sua vida. Teríamos, segundo ele, que despertar para a tarefa de adaptar nossas técnicas às novas condições (FREUD, [1918] 1996, p. 210).

O desejo de estender a psicanálise a todos os serviços encontrados na cidade onde está o psicólogo é um produto de minha análise pessoal. A falta que provoca a demanda e a dependência do Outro viu seu valor se inverter. Ao invés de reenvia-la às outras demandas infinitas, percebendo-a como uma deficiência, a demanda tornou-se para mim a verdade da falta, reafirmando meu desejo como um desejo advertido de que o saber é não-todo.

Então, se quero ultrapassar a solidariedade, tenho que ir em direção a uma política que se proponha a radicalizar o amor no “em comum” das várias formas de vida, bens, afetos e conhecimentos, porque sem o amor e a arte dos bons encontros que o favorece, não há verdadeira democracia.

Quando os psicólogos reconhecem que o seu trabalho deve ser oferecido a todos que dele precisem como um direito social à saúde, precisam construir meios para validar o uso desse direito. Temos, portanto, uma grande tarefa pela frente no campo da produção de conhecimento e de novas práticas “psi.” Temos consciência de que é preciso produzir referências que nos permitam compreender os processos de subjetivação tal como se produzem no interior da sociedade brasileira na contemporaneidade.

Nossa pesquisa é teórica e tem como objetivo principal analisar a função do apelo à ética da solidariedade como um sintoma social que foi necessário ao longo da história para o desenvolvimento e a manutenção do sistema capitalista. Analisamos também em que este apelo toca o sujeito falante em sua estrutura, já que o sintoma social se mantém a partir do sintoma particular de cada um. Estamos defendendo a tese de que existe um amor mais digno que a solidariedade beneficente e que esse amor advém de um trabalho de análise que realize a operação de reconhecer o outro enquanto alteridade radical, ou seja, que parta da crença no Outro e vá até a descoberta de sua inexistência como completude.

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feudalismo, até o início formalizado do capitalismo, quando Marx nomeou como mais-valia o produto do sistema, ao descrever a lógica de reprodução do capital.

Também abordamos os estágios do capitalismo (mercantil, industrial e financeiro), analisando a importância do liberalismo e das revoluções burguesas nesse desenvolvimento. Os principais pensadores iluministas, tais como Locke, Adam Smith, Montesquieu e Rousseau, fundamentaram teoricamente os aspectos jurídicos acerca do funcionamento do Estado moderno, ancorados nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, na realidade concreta do mundo do trabalho, não foi isso que se atingiu com o capitalismo.

A democracia moderna, instaurada após as revoluções burguesas, pôs à mostra o fracasso do Estado, visto que o direito de representação ainda continuava vinculado à condição econômica, impedindo a própria democracia de se realizar. Esses aspectos impulsionaram o aparecimento do pensamento socialista, bem como a querela de Marx com os socialistas utópicos que pensavam em humanizar o sistema capitalista, diminuindo a injustiça social promovida pelo próprio sistema. Também abordamos os reflexos culturais da passagem do capitalismo industrial ao financeiro com o advento da globalização econômica e do neoliberalismo de Estado. Analisamos o efeito das guerras mundiais na economia e na instituição do Estado do Bem-estar Social na Europa, o que em definitivo não representou uma transição para o socialismo, e sim objetivou recuperar os países destruídos, fortalecendo ainda mais a lógica capitalista.

No final do primeiro capítulo, analisamos também os efeitos do capitalismo financeiro, ao ter transformado o dinheiro em uma abstração bancária que muitas vezes existe apenas como dado computacional. A ciranda financeira das bolsas deixou cada vez mais frágil a ligação estabelecida entre o trabalho material e a produção de valor, já que o lucro passou a ser um trabalho feito pelo próprio dinheiro. Demonstraremos que, com o neoliberalismo, pudemos sentir a queda de investimentos nas políticas sociais, fazendo com que a necessidade de se apelar para a solidariedade social se tornasse essencial para a manutenção da lógica capitalista.

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Público Privadas (PPPs), visando dividir as responsabilidades de assistência nas políticas sociais.

Com essa questão em vista, analisamos em nosso segundo capítulo as bases antropológicas da solidariedade, apresentando os movimentos solidaristas ao longo da história européia a partir do século XVIII, e também o movimento na América Latina que apareceu com o pensamento de esquerda no interior da Igreja Católica. Verificamos que a ideia dos solidaristas do século XVIII está na base da formulação de políticas do Estado do Bem Estar Social e também no fundamento do Terceiro Setor. Com a multiplicação de ONGs, após a década de 1990, e toda a querela a respeito da dificuldade do Estado em cumprir com a sua responsabilidade de oferecer assistência às diversas políticas sociais, a solidariedade cumpre a função de eternizar o sistema capitalista. Por outro lado, discutimos com autores que pensam que as ações de voluntariado são “um sinal de maturidade política que deve ser saudado.” Selli e Garrafa (2006, p. 2498) conceituam esse tipo de participação social como “solidariedade crítica”, e os defensores do voluntariado orgânico argumentam que a responsabilidade social não é exclusiva do Estado. O que esses autores não problematizam é que a solidariedade coloca em um mesmo patamar as intenções nobres do cidadão que doa e trabalha voluntariamente para ajudar o próximo e os interesses daqueles que lucram com as desigualdades sociais e que não tem escrúpulos ao se apossarem das melhores doações antes que elas cheguem ao seu destinatário.

No terceiro capítulo analisamos a solidariedade como sintoma social à luz da psicanálise e, para isso, partimos da afirmação de Lacan ([1966] 1998, p. 234-235) de que foi Marx o inventor do sintoma para apresentar o conceito. Marx demonstrou em seu método que todos os fenômenos que se afiguram à consciência comum como simples desvios, deformações e degenerações contingentes do funcionamento “normal” da sociedade, tais como as crises econômicas, guerras, etc., são os lugares em que transparece sua verdade, seu caráter antagônico imanente.

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e complementar. Essa posição é a mesma de Lacan ([1974] 2005) em seu texto “A terceira”, quando diz das três virtudes teologais (a fé, a esperança e a caridade) como “sintomas bons.” Lacan diz que esses sintomas mantêm perfeitamente a neurose universal, destacando a função da fantasia humana submersa na crença de que a sociedade exista, nos lembrando de que a função da igreja é a de velar para que isso se sustente.

Portanto, se considerarmos o sintoma como aquilo que vem do real para impedir que as coisas andem, não poderíamos nomear a solidariedade como um sintoma, já que sua função sempre foi a de tamponar a verdade do sistema capitalista, a saber, a produção de uma fratura na promessa liberal de universalizar a liberdade e a igualdade. O sintoma, nesse caso, seria então a incessante produção de pobreza e de desigualdade social. No entanto, com a universalização do sintoma realizada por Lacan ([1975-1976] 2007) em O seminário, livro 23, final de seu ensino, a definição de que o mesmo funcionaria como um quarto anel vem enlaçar os três registros (Real, Imaginário e Simbólico) em um nó borromeano corrigindo o erro da estrutura. Nesse sentido, não é difícil ver a caridade, apontada por Lacan como um “sintoma bom”, travestida de solidariedade e funcionando como um sinthoma para alguns sujeitos que por sua vez a sustentam no social como um sintoma do capitalismo.

É por isso que foi necessário demonstrar o equívoco de tomarmos a solidariedade no campo da “gestão do necessário” ou do “serviço dos bens”, ou seja, na política das cidades, tal como ela tem sido convocada atualmente para corrigir as falhas do sistema capitalista. Pelo contrário, é preciso aprofundar sua análise ontologicamente, já que sabemos que o agir segue o ser.

Para analisarmos uma possível base ontológica da solidariedade, recorremos às teorias de Freud e Lacan e não a uma metafísica clássica, iniciando com um estudo das raízes etimológicas da palavra solidariedade. O Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa

(1975) nos ofereceu os seguintes significados no verbete “solidariedade”:

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Assim, na linguagem jurídica, os devedores são ditos solidários se cada um puder responder pela totalidade da soma que tomaram emprestado coletivamente. Isso tem suas relações com o vocábulo “solidez”, de que a palavra provém. Um corpo sólido é um corpo em que todas as partes se sustentam, em que as moléculas são mais solidárias do que nos estados líquidos ou gasosos, de tal sorte que tudo o que acontece com uma, também repercute na outra. Em suma, a solidariedade é, a princípio, o fato de uma coesão, de uma interdependência no interior de uma comunidade de interesses ou de destino. Ser solidário, nesse sentido, é pertencer a um mesmo conjunto e partilhar, consequentemente, quer se queira ou não, de uma mesma história.

Portanto, buscamos responder nesse capítulo, a partir do que nos ensina a psicanálise, se há traços identificatórios comuns entre a classe de pessoas que praticam a “solidariedade” e as que, por não terem acesso aos seus direitos sociais básicos, precisam dela. Mesmo argumentando que esse traço seja a busca pela justiça, não podemos garantir que a justiça de uns seja a mesma que a de outros, e poderemos estar confundindo solidariedade com aquela beneficência que cala nossos sentimentos de culpabilidade ou de piedade pela situação dos desfavorecidos.

Vale ressaltar que dessa maneira se abre um espaço abissal entre quem dá e quem recebe, pois, afinal, quem recebe é sempre uma vítima, um dependente, um humilhado e, portanto, a doação não deixa de ser uma forma de dominação, pois vem da potência de quem pode dar.

Não podemos desconsiderar o ensinamento da Psicanálise de que a solidariedade é “comunidade de interesses” e, portanto, do ponto de vista moral, vale tanto quanto valem os interesses. Essa reflexão nos alerta para o fato de que toda a ação humana por mais bem intencionada que seja não deve ser realizada sem uma reflexão ético-política, pois se corre o risco de se colocar a serviço de práticas assistencialistas, autoritárias e pouco transformadoras. Essas práticas “solidárias” não impedem que o ciclo repetitivo de dar/receber seja interrompido, muito pelo contrário, elas podem até estimulá-lo. Na ótica da psicanálise esse jogo de repetição observado no campo social está a serviço da pulsão de morte, o que significa sustentar a estrutura mortífera das desigualdades sociais.

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para que tenham uma boa vida, pois a generosidade obedece ao seu modo ao mandamento evangélico de Cristo: “Amai ao próximo como a ti mesmo.”

Para destrinçar em que bases epistemológicas estão assentadas todas as formas conhecidas de amor, utilizamos do quarto capítulo, no qual são apresentadas as definições encontradas na filosofia e na psicanálise. Nesse capítulo, analisamos as vertentes imaginária, simbólica e real do amor erótico, da Philia e do Ágape cristão, fundamentalmente em três obras de Lacan: O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, de 1950-1960, O Seminário, livro 8: a transferência, de 1960-1961 e O seminário, livro 20: mais ainda, de 1972-1973. Investigamos sobre o amor nas três dimensões, buscando responder à questão que nos interessa: Um amor “puro”, totalmente desinteressado, é pensável? Qual justificação teórica pode ser dada a esse amor já que, para Lacan ([1950-1960] 1988, p. 235), a ética da psicanálise se choca com uma posição pastoral?

Situamos a solidariedade na dimensão simbólica, representada pela Philia grega, e não pudemos nos esquecer do horror de Freud frente ao mandamento cristão, quando advogou a impossibilidade de seu cumprimento a partir da maldade que existe no próximo. Muito embora Freud (1996, v. VII, p. 204) admita em primeiro plano que o amor quer primeiro tomar, consumir, devorar, ele reconhece também que a própria realidade o proíbe, ou seja, o próprio amor o proíbe. Nesse sentido, não podemos deixar de constatar que Freud está menos distante do que ele mesmo imaginava de certa inspiração evangélica quando teoriza que, na primeira experiência de satisfação, os humanos “mamam” o amor junto com o leite.

Para Bauman (1998, p. 68), esta é, sem dúvida, a mais segura experiência que temos do amor, e é da força dessa experiência de desamparo que nasce nossa moral em relação ao outro. A experiência do amor parece ser aos olhos desse sociólogo um aspecto fundamental para que possamos ser generosos, respeitando o outro em sua singularidade radical.

Em sua aula de 21 de junho de 1961, Lacan ([1960-1961]1992, p. 381) admite que tal mandamento cristão ainda não foi de todo compreendido filosoficamente porque o próprio cristianismo ainda não deu sua última palavra sobre o amor. Por isso, nós analisamos a pureza do amor fora de toda a utilidade, fora de toda a perspectiva do sacrifício presente em certas experiências místicas. O místico tenta evacuar todo desejo ou toda a expressão psicológica e afetiva do desejo, depurando-o de todo o interesse. Isso se ancora sobre o real de suas provações, e nosso capitulo ajuda a localizar aí o gozo para além da significação fálica.

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quando o invocamos na condição de outro, e demonstramos porque o amor é o único que faz suplência à inexistência da relação sexual. Nesse capítulo, a estreita relação que a Psicanálise tem com o amor ficou explícita, já que “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo.” (LACAN,[1962-1963] 2005, p. 197).

É preciso esclarecer que nossa posição não é a de idealizar um “novo amor” que reconstituísse o bom e velho Deus do cristianismo em outros termos. O amor de que tratamos está condenado a um “destino fatal”, pois se trata de mal-entendido ineludível e, por isso, não nos deixa alternativa a não ser assumi-lo com a valentia necessária de quem quer viver relações respeitosas com o outro.

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1. O CAPITALISMO E A ESTRUTURA DE SEUS DISCURSOS

O objetivo deste capítulo é o de reconstruir a lógica que dá forma à emergência do sistema capitalista, abordando seu desenvolvimento sócio-político e os efeitos da economia globalizada na constituição das subjetividades. Abordaremos também a falência da função do Estado prevista pelo liberalismo, que era a de impedir que as possíveis desigualdades naturais se configurassem em injustiça social. Usaremos do capítulo para argumentar acerca da função que o apelo contemporâneo a uma ética da solidariedade toma para manter a estabilidade do capitalismo financeiro.

Iniciaremos nosso capítulo apresentando as relações de produção e de extração do trabalho excedente – desde o modo mais primitivo, quando vigorava o escravagismo, até os dias atuais, em que vigora o capitalismo monopolista internacional – utilizando de autores como Mészáros (2007), Santos (2005) e Oliveira (1995) para apresentar os elementos da passagem de um tipo de capitalismo para outro. Alguns dos nomes encontrados na literatura para as fases ou tipos de capitalismo são: capitalismo de produção e de consumo, capitalismo mercantil, industrial e financeiro/acionário, capitalismo liberal, organizado e monopolista e capitalismo informacional multiculturalista.

Se concebermos o capitalismo como sistema de trocas monetárias generalizadas como faz Wellerstein (1974 apud SANTOS, 2005, p. 78), sua emergência está datada no século XVI. Para Mészáros (2007, p. 74), é importante saber que o capital nos acompanha há milhares de anos, pois o capital é ubíquo e está engatado em cada área singular de nossa vida social. De acordo com o autor, o capital penetra o mundo da arte, da religião e das igrejas, governando as instituições culturais da sociedade e o próprio Estado, porque ele “não é uma entidade material. Cumpre pensarmos o capital como um modo historicamente determinado de controle da reprodução sociometabólica. Esse é seu significado fundamental. (MÉSZÁROS, 2007, p. 68).

Para nossos propósitos analíticos, marcamos a emergência e a generalização de um sistema de trocas caracterizadamente capitalista, quando as relações de produção foram instauradas entre capital e trabalho. De acordo com Santos (2005, p. 79), isso só ocorre a partir de século XVII, ou mesmo em meados do século XIX, quando o capitalismo se constitui enquanto projeto sociocultural da modernidade.

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sistemas possíveis de sua realização que se fez dominante nos últimos três séculos. Para defender sua tese, Mészáros (2007, p. 131) nos diz que a relação entre capital e trabalho é “não-simétrica”, já que o capitalismo depende absolutamente do trabalho e de sua exploração permanente, enquanto a dependência do trabalho em relação ao capitalismo é relativa, historicamente criada e historicamente superável.

O livro de Mészáros (2007) é todo escrito para nos mostrar que o capitalismo sob o qual vivemos é um sistema orgânico composto de três partes: o Capital, o Estado e o trabalho humano, em que cada uma das partes sustenta e reforça as demais. Nenhuma dessas três partes pode ser derrubada, ou seja, pode deixar de existir, apontado aí a ilusão e o motivo do fracasso das grandes revoluções e experiências socialistas. No entanto, o autor propõe que tanto o sistema do Capital quanto o Estado precisam ser erradicados, ou seja, é preciso que se coloque outra forma de funcionamento no lugar dos dois para que seja possível realizar a igualdade substantiva. Mészáros (2007) reconhece que o único elemento vivo do sistema vivo é o trabalho humano, pois ele é a verdadeira riqueza do capitalismo.

A contribuição de Mészáros (2007), quanto ao entendimento de que a verdadeira riqueza do capital é a força humana de trabalho, permite-nos entender porque Lacan ([1968-1969] 2008, p. 17-19) propõe uma equivalência entre a “mais-valia” e o “mais-de-gozar”, embora a reconheçamos como problemática, já que para a “mais-valia” o campo é o do mercado e para o “mais-de-gozar” o campo é o do gozo singular de cada sujeito.

Goldenberg (2002, p. 29-30) nos lembra que:

Lacan se apropria da operação crítica que permitiu Marx identificar a mais valia no interior de um sistema de produção de valores pecuniários, para chamar a atenção para a diferença entre valor fálico de troca e o valor de uso (gozo) do objeto erótico. Assim como o modo de produção capitalista gira em torno de um valor excedente, que não entra na contabilidade, o aparelho psíquico se vê às voltas com um gozo excessivo, traumático porque é irrepresentável. (GOLDENBERG, 2002, p. 29-30).

1.1 Um Pouco “Exagerado” de História.

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sujeito. Ele termina sua reflexão a respeito dizendo: “É por essa razão que não vejo bem em que a referência estrutural desconheceria a dimensão da história.” (Ibidem, p. 36).

Considerando o alerta que Ramos (2007, p. 117) faz sobre o compromisso político de “certa” psicologia, julgamos fundamental “o desvelamento das relações de dominação ocultas sob as mediações e determinações materiais do psiquismo e das subjetividades.” Concordamos com o autor, para quem “esta psicologia” deve funcionar como uma força de resistência e não conformar o particular à realidade material dada como se esta fosse “natureza”, contribuindo desta forma para a eternização da lógica capitalista.

O difícil exercício do (a) psicólogo (a) que se propõe a pensar historicamente está em encontrar seu objeto a partir das determinações existentes e de encontrar estas determinações a partir de seu objeto em nome de abstrações totalizantes e, ao mesmo tempo, compreender esta própria concretude e a singularidade como agente, reprodutora ou transformadora da totalidade que a constituiu. Seu objeto torna-se um ‘condensado histórico’ ao mesmo tempo em que desdobra, ou seja, revela, constrói ou sustenta a história a partir de sua particularidade. [...] Este é talvez, o sentido mais profundo da dialética entre particular e totalidade. (RAMOS, 2007, p. 124-125).

Todas as transformações econômicas, políticas e sociais oriundas desde o mundo antigo até os dias atuais, nos interessam, porque sabemos que a conjuntura histórica causa efeitos na constituição das subjetividades, o que desfaz a ilusória dicotomia entre o indivíduo e a sociedade. De acordo com Milner (1996, p. 39), a oposição formada entre Antiguidade e os Tempos Modernos constitui o pivô do que chamamos História, e muitos mantêm a recíproca: falar de Antiguidade e de modernidade só tem sentido se admitirmos a História. Certamente, já sabemos que a Psicologia não admite mais pensar a subjetividade sem uma teoria social, mas estamos em via de não abrir mão da definição de uma teoria do sujeito que nos permita compreender a dialética entre a concretude da subjetividade e a objetividade da História.

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Em geral, começamos a entender que a deflagração do capitalismo se deu com o comércio experimentado nos primeiros séculos da Baixa Idade Média (do século XII ao XIV d.C.), fase caracterizada pela crise do feudalismo. As relações de trabalho sofreram mudanças comparadas ao tempo da escravidão, e também sofreram com a passagem do feudalismo para o tempo moderno, quando o trabalho começou a ser pago pelo patrão, tal qual uma mercadoria qualquer.

Algumas explicações, observadas na passagem de um modo de produção ao outro, justificarão as diferentes ordens sociais, políticas e econômicas, e serão absolutamente fundamentais para compreendermos a inércia de nosso sintoma social.

De acordo com Oliveira (1995, p. 11), as sociedades ditas tribais seriam as últimas representantes da sociedade sem classes. Nelas, o produto excedente do trabalho era de propriedade coletiva e era distribuído de acordo com as relações de cooperação e poder estabelecidas na comunidade, seja em razão da força física, do sexo, da idade ou do parentesco. Esta última constituía a forma mais completa de cooperação comunitária, reproduzindo-se na formação de princípios políticos internos, fixando privilégios latentes de autoridade e de domínio, seja ele político ou religioso, exercidos por uns poucos sobre os demais. O grupo que dominava criava e utilizava das leis, não somente para mediar os conflitos, mas também para manter o seu domínio, o que revela que a pulsão de domínio de um homem sobre o outro sempre esteve presente nas relações humanas.

O excedente2 produzido nas tribos era distribuído aos que tinham privilégios pré-estabelecidos, proporcionando-lhes o ócio social, ou seja, liberando-os de trabalhar pela subsistência. Exatamente por essa razão, o excedente produzido sempre foi tido como a causa principal de desagregação das relações comunitárias absolutas (OLIVEIRA, 1995, p. 12).

É fácil concluir que, historicamente, sempre aparecem “candidatos” para viver do excedente dos outros, pela simples razão de que, no momento em que o produto de um homem ou de uma comunidade ultrapassa o que lhe é necessário para sobreviver e repor os seus fatores de produção, há um excedente disponível a ser incorporado por alguém.

Quando no mundo antigo a apropriação do excedente de produção se estendeu a um maior número de privilegiados, poucos eram os que efetivamente trabalhavam, criando uma

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escassez na força de trabalho. Essa situação levou o “homem ocioso” a buscar alternativas para a sua subsistência e para a acumulação de sua riqueza. A solução foi a utilização dos derrotados das guerras entre as comunidades tribais como escravos, ao passo que antes os prisioneiros eram imolados ou consumidos em rituais antropofágicos.

Os vencidos tornados escravos ainda se davam por satisfeitos por não terem sido mortos e pagavam pela vida com o trabalho, deixando para os cidadãos livres o tempo suficiente não somente para o exercício do ócio, mas também para planejar outras guerras que terminavam por expandir cada vez mais os seus domínios. Nesse sistema, o escravo era propriedade do Senhor, e era comercializado como uma moeda de troca no mercado de escravos.3

É fácil verificar que o Senhor dependia do escravo para viver, pois é óbvio que, se os escravos só produzissem o mínimo para a própria sobrevivência, não poderiam sustentar o seu dono. Portanto, era em função de seu trabalho que a riqueza do Senhor era criada. Não há dúvida aqui de que a totalidade do excedente de trabalho produzido pelos escravos ia para as mãos do senhor, que apenas arcava com os custos para a manutenção do subjugado em condições de trabalho. Sabemos que, moralmente, a redução de seres humanos à condição de escravos foi justificada por um número enorme de pensadores, amparados na afirmação de que se tratava de espécies inferiores de seres vivos, tal como o fazia Aristóteles (apud OLEA, 1984, p. 72), e mesmo os iluministas Locke e Adam Smith, que justificavam a pobreza pela preguiça de trabalhar, como veremos mais detalhado a seguir.

1.2 Como Começou o Feudalismo?

Sabemos que foi no período do século V ao século IX D.C., conhecido como Alta Idade Média, que se inicia o processo de ruralização da sociedade e da economia na Europa, inaugurando assim o Sistema Feudal. A origem do trabalho compulsório sob relações ditas

3 Os negros capturados em suas terras e levados para o trabalho escravo tinham sua desumanidade como pressuposto. Por muitos séculos a justificativa racional, legal e teológica pra o cativeiro do negro africano foi sua indelével impureza, seus cost

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“servis” se instaurou basicamente por causa do declínio das cidades, na parte Ocidental da Europa, devidos às constantes invasões bárbaras. Enormes contingentes de trabalhadores, arruinados pela guerra e desprotegidos do poder Estatal, emigraram para o campo, submetendo-se à proteção dos chefes locais, que representavam o poder político imediato. O governo era despótico, mas certamente eficaz na garantia da paz pública, mesclando os modos de produção oriundos dos bárbaros, que eram tipicamente tribais e militares, com o modo de produção escravista (OLIVEIRA, 1995, p. 46, p. 85).

O senhor feudal, muitas vezes, não passava de um nobre que havia recebido as terras de um Rei, quando, como chefe militar, defendia os interesses do monarca nas guerras contra seus inimigos, tais como os bárbaros. É importante observar que a hierarquia feudal teve origem nesses tempos, quando um grande chefe militar recebia terras como recompensa e as distribuía para seus auxiliares mais próximos, tornando-os, assim, seus vassalos. Eram eles que administravam as terras e, ao mesmo tempo, tinham a obrigação de dar apoio militar ao seu suserano, pagando os resgates exigidos pelo inimigo, referente aos aliados capturados numa batalha.

O feudo era, antes de tudo, uma grande propriedade rural, um grande latifúndio, onde o trabalho era todo realizado pelos camponeses servos. Pelos motivos explicados acima, entendemos que os servos não eram propriedades do senhor e, por isso, não eram comercializados. Mas, embora fossem pessoas livres, seu trabalho era forçado, porque eles, por trabalharem nas terras do senhor feudal, eram obrigados a pagar pesados impostos.4

O raciocínio para se cobrar os impostos do camponês pelo seu trabalho na terra era o de tomá-la como “fator de produção”,ou seja, era a terra que produzia efetivamente a riqueza pelo milagre natural da reprodução. Como a terra é propriedade do aristocrata, seria natural que o produto retirado dela pertencesse a ele. Essa concepção vem de Locke, que elaborou uma teoria para explicar a origem e o valor da propriedade privada. A “propriedade”, para Locke (1998, p. 87, p. 123, p. 173), é um termo polissêmico, no sentido mais amplo, implica a “vida, a liberdade e a terra” e, num sentido mais estrito, implica os bens, o direito à herança, e a capacidade de acumular riquezas.

De acordo com Varnagh (2006), o liberalismo de Locke é uma apologia da moral burguesa e capitalista, afirmação que teve influência em teóricos posteriores como Adam Smith que em seu livro A Riqueza das Nações, de 1776, analisou fatores de produção para

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além dos encontrados na agricultura, argumentando em defesa de uma participação maior da burguesia capitalista, contra o poder da aristocracia. Ele escreveu que a terra de qualquer país tornou-se propriedade privada, os senhores da terra, que, como todos os homens, gostam de colher onde nunca araram, exigem uma renda por este produto natural. Adam Smith define que a renda que deve ser paga pela terra sirva como uma dedução do produto do trabalho que é empregado na terra. (SMITH apud BALBACHEVSKY, 1999).

Na realidade, o argumento da terra como fator de produção passível de remuneração não foi visto de todo como absurdo por nenhum filósofo jusnaturalista5, pois não é difícil aceitar que a terra contribui para fazer a planta, tal como também contribuem o sol que fornece energia, o ar que fornece o carbono e, ainda, a água. Mas, na medida em que não é possível uma minoria apropriar-se da força do sol ou do ar para monopolizá-los, não existe “ainda” teoria sobre o seu caráter de “fator de produção.”6

Vale lembrar também que, como fatores técnicos de produção, não eram eles os remunerados e sim o proprietário do feudo. Resta-nos dizer que essa terra pertencia a alguém que também não a tinha produzido, mas dela se apropriou. Lembramo-nos de Lacan ([1968-1969] 2008, p. 39) quando dizia não acreditar em propriedade intelectual e associá-la justamente ao roubo, por onde toda propriedade começa.7

Não podemos nos esquecer de que o argumento a favor dos fatores de produção apenas inaugurou uma geração de justificativas legais para a apropriação do excedente, embora muitos outros tenham sido produzidos ao longo dos tempos. Vamos citar pelo menos dois argumentos que são apresentados por Adam Smith no livro I de A Riqueza das Nações, quando justifica o lucro do capitalista. O primeiro é que o lucro seria um prêmio pelo “risco” que o capitalista assume quando faz um empreendimento. Para dizer a verdade, esse risco só pode ser o dele vir a se tornar um trabalhador comum, como os outros, sem privilégios. Outro argumento muito conhecido é também de que o lucro do capitalista seria uma remuneração por seu “espírito de empreendimento”, por sua capacidade de inovação, isso sem falar da compensação justa a ele conferida pelo peso das responsabilidades que carrega. Mas a verdade escondida é que há um curioso processo de transferência dos recursos da poupança

5 De acordo com a escola dos direitos naturais ou jusnaturalista, “todos os homens, indiscriminadamente, têm por natureza e, portanto, independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade de alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade [...].” (BOBBIO, 1988, p. 11)

6 É curioso observar que no caso da água, isso já acontece, pois há gente se apropriando e privatizando deste recurso natural, para, quem sabe um dia, usar do mesmo argumento de que ela seja de fato, um “fator de produção”. Aí sim a teoria econômica estaria subindo literalmente para as nuvens!

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extraída do trabalho conjunto da população, para as mãos de quem frequentemente só fez manter boas relações de amizade com as fontes de financiamento.8

De acordo com Anderson (2001), o Senhor feudal não fazia nenhum investimento e até mesmo os instrumentos de trabalho e os bois que movimentavam o arado pertenciam aos servos que, no final, após terem pagado todos os impostos, acabavam ficando apenas com uma parte do que haviam produzido artesanalmente. Os impostos foram inicialmente pagos sob a forma de valores de uso (galinhas, porcos, trigo, e outros produtos), ou ainda sob a forma de dias de trabalho, mas, com o tempo, passaram a ser pagos em moedas, dando mais liberdade ao senhor de comprar os bens que quisesse.

Zizek (1996, p. 307) diz que a produção era artesanal e que tanto os camponeses como os proprietários dos meios de produção trabalhavam e vendiam seus produtos no mercado, não se verificando uma divisão social do trabalho, tal como se estruturou depois na lógica capitalista. Concordamos com Poulantzas (2000, p. 17) que nos modos de produção pré-capitalistas, embora os produtores diretos (os camponeses e os servos no feudalismo) não fossem proprietários do objeto de trabalho e dos meios de produção, eles estavam a eles ligados, porque conservavam um domínio relativo do processo de trabalho, acionando-os sem a intervenção direta do proprietário (o Senhor feudal). Fica claro que esse tipo de liberdade deu à burguesia chances de acumular dinheiro e de se insurgir contra a monarquia. Mas, ao mesmo tempo em que podiam gozar de alguma liberdade no processo de produção, as leis do Estado exerciam uma violência legítima para que houvesse extorsão do excesso de trabalho em favor dos proprietários detentores da posse do objeto e dos meios de trabalho.

De acordo com Zizek (1996, p. 310), nessa época pré-capitalista as relações de “dominação e servidão” eram a mesma relação fetichizada do senhor e do escravo, tal como a formaliza Hegel em sua Fenomenologia do Espírito. Não restam dúvidas de que a relação entre senhor e servo fosse investida de obrigações distintas para as duas posições que ocupavam. Os servos sentiam dever muitas obrigações ao senhor, por serem ameaçados pelo

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fantasma da fome e do desamparo, já o senhor, depois de usar da força de seu trabalho, cuidava do servo até o fim de seus dias, quando este ficava velho ou fraco para trabalhar.

É importante também analisar a função ideológica da Igreja como formadora de opinião e como coerção, pois quem contrariasse as suas leis era considerado um inimigo do cristianismo e acabava atirado numa masmorra ou numa fogueira, como aconteceu na Inquisição. Nos sermões dos padres os camponeses ouviam que era preciso se conformar com a pobreza, pois teria sido de Deus o desejo de que “uns rezassem (a Igreja), outros combatessem (os nobres) e outros trabalhassem (os servos)” (ANDERSON, 2001). De acordo com Anderson, é por isso que muitas revoltas sociais contra a exploração feudal foram consideradas heresias. Desse modo, os trabalhadores não tinham saída: estavam subjugados tanto pela espada quanto pela cruz.

Marx (1988, p. 251-252, p. 265-256) fez uma analogia entre o pecado original teológico e o pecado original econômico, se referindo ao roubo de riquezas e à extração forçada de trabalho, para explicar o que ele chama de “acumulação primitiva do capital.”

Essa acumulação primitiva desempenha na economia política um papel análogo ao pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e, com isso, o pecado sobreveio à humanidade. Explica-se sua origem contando-a como anedota ocorrida no passado. Em tempos muito remotos, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e, sobretudo, parcimoniosa, e, por outro, vagabundos dissipando tudo o que tinham e mais ainda. A lenda do pecado original teológico conta-nos, contudo, como o homem foi condenado a comer seu pão com o suor de seu rosto; a história do pecado original econômico, no entanto, nos revela porque há gente que não tem necessidade disso. Tanto faz. Assim se explica que os primeiros acumularam riquezas e os últimos finalmente, nada tinham para vender senão a sua própria pele. E, deste pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo o seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma e a riqueza dos poucos, cresce continuamente, embora há muito tempo tenham parado de trabalhar.[...] Na história real, como se sabe, a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma a violência, desempenham papel principal. Na suave economia política reinou desde sempre o idílio. [...] Na realidade, os métodos de acumulação primitiva são tudo, menos idílicos. (MARX, 1988, p. 251-252, p. 165-166).

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Entre os séculos IX e XIII, a Europa viveu o apogeu do feudalismo, estando dividida em inumeráveis feudos. Cada “minimundo” estava isolado com suas próprias leis, cobranças de impostos e força armada, seguindo a vontade dos seus proprietários nobres, que chegavam à nobreza pelos meios já comentados acima. Como a lógica de obtenção de títulos e de benefícios era interminável, esta corrente sem fim unia desde os senhores feudais mais poderosos até a pequena nobreza. Goff (2008) nos chama a atenção para o fato de que os servos eram, de certa maneira, o grau mais baixo da hierarquia da vassalagem e que dessa lógica irrompeu a fundamentação do capitalismo, já que os futuros proprietários dos bens de produção privada haveriam de estar no alto da pirâmide social.

1.3 O Capitalismo Mercantil

No século XIV, a transição do modo de produção feudal para o capitalismo mercantil ainda estava de modo prioritário no estágio agrário. Os senhores feudais não investiam em tecnologia e, por causa disso, o aumento da produção agrícola vinha sendo conquistado principalmente pelo desbravamento de novas terras. No entanto, é chegado um momento em que não havia mais terras disponíveis para ampliar o cultivo, sobrevindo a fome. Para piorar, os nobres e os reis aumentaram os impostos, mas simplesmente, a economia feudal não conseguiu mais produzir o suficiente para alimentar a população que crescia cada vez mais.

De acordo com Goff (2008), era necessário expandir os domínios da Europa, e isso se deu concomitantemente com a formulação do ideário do Regime Absolutista, dando surgimento ao Estado Nacional Moderno no século XV. Inicia-se a passagem da Idade Média para a Idade Moderna com o advento do chamado capitalismo mercantil e com as expedições marítimas. Nessa fase, os Estados incentivaram a descoberta e o domínio de novas áreas de exploração econômica por meio do processo de colonização do sul do planeta. Os comerciantes e a nobreza estavam à procura de ouro, prata, especiarias e matérias-primas não encontradas em solo europeu. Novamente vimos se repetir, na era das grandes navegações, a legalização do roubo na transformação de piratas em nobres, com o apoio moral e financeiro dos seus governos “reais.” É bom reconhecer que quando a transferência permanente de riqueza das colônias do sul para os países do Norte se deu através da extração e do comércio de trabalho escravo, já estávamos em pleno sistema de acumulação do capital.9

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norte-No auge do feudalismo o Estado Medieval era descentralizado, ou seja, com diversos centros de poder dispersos. Quem detinha o poder local (nobres, proprietários de terra, alto clero, corporações de ofícios e de mercadores), confiava a representação de seus interesses a uma pessoa sábia, que estivesse habitualmente nos ambientes que cercavam o rei. Bobbio (1994) diz que essa primeira representação política era feita mediante um pagamento pelos serviços prestados, o que deixa clara a natureza particular do interesse que o representante “representa”, pois a causa que defende é a do grupo que o patrocina.

Tal como já dissemos acima sobre a função ideológica da Igreja na “naturalização” das desigualdades sociais, é importante saber também que, além dos “homens da Igreja” serem as poucas pessoas que sabiam ler, a Igreja era dona de vastos feudos, muitos deles recebidos de nobres que deixaram seus dotes em testamento para ela, por causa de sua fé cristã. Com isso, os altos postos eclesiásticos eram preenchidos por filhos da nobreza, de maneira que a coroa, a cúpula da Igreja, os nobres e os intelectuais pertenciam à mesma classe dominante.

No século XVII aconteceram avanços na agricultura, como a implantação de charruas e uso de técnicas de irrigação para aumentar as colheitas. As descobertas tecnológicas oriundas do uso do vapor permitiram o crescimento da produção, estimulando ainda mais o desenvolvimento econômico. Muitos feudos começaram a produzir excedentes, ou seja, mais do que precisavam para manter sua sobrevivência física. O excedente produzido era vendido e, com o dinheiro obtido, compravam-se outros produtos, vindos de outras regiões. O uso das moedas10 fez com que o os mercadores se reunissem em grandes feiras para trocar mercadorias, informações e acumular dinheiro. Os lugares de realização dessas feiras medievais se tornaram tão permanentes que deram origem aos burgos e futuras cidades. Elas se localizavam à margem da unidade feudal, habitando uma região externa. Ali passaram a americanos, convencidos de obter grandes lucros, estão investindo em compra de terras férteis na África para a produção de monoculturas de alimentos e biocombustíveis, exclusivamente para exportação. Os investidores estrangeiros assinam acordos vantajosos sem que os lideres africanos consultem os respectivos parlamentos, de maneira que a África não tem imposto condições aos investidores estrangeiros que sejam favoráveis aos seus pais tais como desenvolvimento da infra-estrutura ou a reserva de pelo menos metade da colheita para os mercados locais. “Quando a comida é escassa, os investidores procuram um Estado fraco que não imponha suas regras”, comentou cinicamente Philippe Heiberg, presidente do banco nova-iorquino Jarch Capital (BAXTER, 2010, p.26).

10 Com a necessidade de trocar o que sobrava pelo que faltava, o homem criou desde cedo uma mercadoria de referência, para facilitar as transações. Assim, no estágio do capitalismo agrário em Roma, o boi, o sal, o fumo e

outras “commodities” serviram com moedas. “Boi” em latim é “pecu”, de onde vieram os termos “pecúnia” = dinheiro, “pecuniário”, “peculato” etc. e o sal deram origem à palavra “salário”. Entretanto, os metais (e principalmente o ouro por ser mais raro) se impuseram como mercadorias ideais para serem usadas como moeda, pelo fato de serem indestrutíveis (um boi morre, uma moeda não); inalteráveis (não se desgastam com facilidade); homogêneas (duas moedas são iguais entre si, enquanto bois são sempre diferentes); portáteis

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viver a maioria dos comerciantes e artesãos que vendiam ou faziam as mercadorias que os nobres tanto apreciavam.

A burguesia medieval implantou uma nova configuração à economia europeia, na qual a busca pelo lucro e a circulação de bens a serem comercializados em diferentes regiões ganharam maior espaço. Com a escassez do trabalho escravo, decorrente do crescimento da vida econômica e aumento da população absoluta, passaram os cidadãos romanos a fazer uso do arrendamento dos serviços de escravos alheios e, gradualmente, a locação de serviços passou a ser exercitada também por homens livres das classes mais baixas (OLEA, 1984, p. 80).

Como vimos, havia dentro dos feudos a prática rudimentar do artesanato, que não era, entretanto, especializada por ofício, sendo ainda usualmente combinada com a prática da agricultura. Quando, porventura, necessitavam de trabalho mais elaborado, os camponeses recorriam aos artesãos ambulantes, acostumados a oferecer seus trabalhos de casa em casa. Encontravam-se artesãos ambulantes especializados no ofício de moleiro, tintureiro, oleiro, carpinteiro, ou ainda praticantes de uma “cirurgia elementar” (OLEA, 1984, p. 14). De acordo com Moraes Filho (1998, p. 17), os artesãos funcionavam como uma autêntica empresa familiar que utilizava de aprendizes que, depois de decorrido o tempo necessário para o aprendizado, vendiam sua força de trabalho ao mestre artesão, mesmo sendo os idealizadores e executores do seu trabalho. Eles compravam a matéria-prima dos camponeses para atender a encomendas particulares e vendiam em seguida o produto aos seus clientes, já acumulando excedente em capital financeiro. Os artesãos avançaram técnica e politicamente, pois, com o intuito de se protegerem mutuamente, evitando a concorrência desleal e regulamentando o exercício da profissão, os artesãos criaram as corporações de ofício, que uniam profissionais especializados em determinada arte e mecanismos de controle do exercício profissional (OLIVEIRA, 1995, p. 62-63).

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acima, e, ainda, a superação dos efeitos desencadeados pelas epidemias da peste do século VIII (OLEA, 1984, p. 97).

O aumento gradativo da população, associado ao desenvolvimento dos meios de transporte – carroças, pontes, embarcações resistentes e maiores – e a criação dos primeiros meios de comunicação propiciaram o crescimento da classe mercantil. Já não se limitava a troca aos mercados locais, estendendo-a a mercados cada vez mais distantes. Desenvolvia-se, consequentemente, o poder da classe antes intermediária do comerciante. A distribuição da mercadoria separava-se da sua produção e se fortalecia como processo econômico autônomo (MORAES FILHO, 1998, p. 20).

A prática comercial experimentada imprimiu uma nova lógica econômica na qual o comerciante substituiu o valor-de-uso das mercadorias pelo seu valor-de-troca, deixando de julgar o valor das mercadorias com base na sua utilidade e demanda, ou seja, o valor foi perdendo referência ao objeto físico. Uma mercadoria específica ganha destaque por simbolizar essa própria circulação: o dinheiro.

É dinheiro a mercadoria que serve para medir o valor e, diretamente ou através de representante, de meio de circulação. Por conseguinte, ouro (ou prata) é dinheiro. [...] Desempenha o papel de dinheiro diretamente ou por meio de representante, quando configura com exclusividade o valor ou a única existência adequada do valor-de-troca das mercadorias, em oposição à existência delas como valores-de-uso. (MARX, 1988, p. 144).

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manutenção dos privilégios da nobreza se transformava em um empecilho ao desenvolvimento burguês.

Foi nesse período que os princípios da filosofia iluminista defenderam uma maior autonomia das instituições políticas e criticaram a ação autoritária da realeza, dando início à convulsão sócio-política que ganhou espaço na Inglaterra do século XVII. Na ilha britânica observamos a primeira experiência de limitação do poder real em favor de uma maior autonomia da economia, processo desencadeado durante a Revolução Inglesa. A ciência moderna contribuiu significativamente para a vitória do Iluminismo, limpando o terreno para o desenvolvimento prático da Revolução Industrial. Em consequência disso, nasceu um novo tipo de relacionamento entre ciência, tecnologia e indústria que sustentou a realização das potencialidades produtivas da sociedade em uma extensão anteriormente inimaginável.

1.4 O Capitalismo Industrial

Ao mesmo tempo em que uma ciência em seu ideal de neutralidade legitimava ideologicamente o modo de produção capitalista defendendo que o avanço científico e sua aplicação sistemática à produção levariam a um progresso social, também apresentava pela primeira vez na história os problemas e contradições da ordem social estabelecida há séculos com suas evidentes desigualdades.

O capitalismo industrial inicia-se no século XVIII, quando a Europa passava por uma mudança significativa no que se refere ao sistema de produção. Este beneficiou diretamente a burguesia da Inglaterra ao conceder maiores liberdades para empreender acordos diplomáticos e articular os diversos setores da economia britânica ao interesse das atividades comerciais. Pela primeira vez as autoridades monárquicas estiveram submetidas ao interesse de outro poder com forte capacidade de intervenção política.

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produção e acumulação, dará lugar ao capitalismo industrial e a uma sociedade de consumidores.

Com a Revolução Industrial11, houve um enorme impacto sobre a estrutura da sociedade, pois se deu a substituição da energia humana pela energia motriz e do modo de produção doméstico pelo sistema fabril. Esse processo de transformação foi acompanhado por notável evolução tecnológica, o que fez com que a produção agrícola e industrial aumentasse em escala geométrica.

Se no século XVI todas as atividades que não fossem rurais eram consideradas “estéreis” do ponto de vista econômico, na época da Revolução Industrial aparecia outro fator de produção: o capital, aqui entendido como o conjunto do equipamento fixo que permite a produção. Adam Smith (1983 apud NUNES, 2007) é fruto de uma realidade claramente diferente da realidade econômica e social da França dos fisiocratas, na qual só o trabalho agrícola se configura como trabalho produtivo, ou seja, capaz de produzir um produto líquido. Essa extensão do “poder produtivo do trabalho” fez com que Adam Smith se apercebesse de que na agricultura os rendeiros arrecadavam um rendimento que não era um salário, e compreendeu que esse rendimentonão se confinava apenas à agricultura, pois surgia agora de forma clara na indústria, atividade em que o capital vinha encontrando o seu mais amplo campo de aplicação. Isso fez com ele teorizasse outra categoria de trabalho para além das várias formas de trabalho concreto que se encontram na vida real. O trabalho abstrato, “embora possa tornar-se suficientemente inteligível, não é de modo algum tão natural e óbvio.” (SMITH, 1983 apud NUNES, 2007, p. 57).

De acordo com Nunes, Adam Smith se deu conta de que seria necessária uma teoria do valor-trabalho, ligando a teoria do valor ao trabalho em geral, entendido como a origem e a medida do valor.Nunes diz que essa foi uma novidade teórica particularmente importante, reconhecida por Marx como sendo o “ponto de partida da economia moderna” (2007, p. 57).

Referências

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