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A Ontologia Psicanalítica Da Solidariedade

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 137-146)

3. A SOLIDARIEDADE COMO SINTHOMA DO CAPITALISMO FINANCEIRO

3.4 A Ontologia Psicanalítica Da Solidariedade

A ontologia é um ramo da filosofia que procura responder as perguntas sobre o ser: se algo é ou não é.82 De acordo com Brodsky (2004, p. 26), esse tema chega a graus incríveis de significado, não há adequação entre as palavras e as coisas, não há proporcionalidade entre o universo da linguagem e o campo dos efeitos que a linguagem desencadeia. Eles são completamente desproporcionais. Mesmo o código linguístico, com a infinita riqueza das palavras, é desproporcional aos efeitos que produz. Como as relações entre o simbólico e o real são desproporcionais, homens e mulheres têm que fazer suplência a essa relação que não há.

82 Badiou (1996, p. 12) diz que, para a filosofia contemporânea, a doutrina do sujeito não é mais a de um sujeito fundador, centrado e reflexivo, que se inicia com Descartes, permanece legível em Marx e Freud e vai até Sartre. O sujeito contemporâneo é vazio, clivado, a-substancial, irreflexivo e pode apenas ser suposto no tocante a processos particulares cujas condições são rigorosas. Badiou (1996, p. 13) nos lembra de que perguntou a Lacan, em 1964, sobre qual era sua ontologia e recebeu uma resposta sobre o não-ente que em sua opinião era apropriado, mas limitado. O fato de Lacan tomar a lógica pura como a “ciência do real” faz do real uma categoria do sujeito. No capitulo “O um e o múltiplo: condições a priori de toda ontologia possível”, Badiou (1996, p. 29-34) diz que o ser é múltiplo, ou seja, o Um não é, mas esclarece que essa afirmação não desmente a de Lacan de que “há Um”, tomando o símbolo como seu princípio. “A rigor, dizer “há Um” é excedente, pois o “lugar de haver”, tomado como localização errante, já concede ao Um um ponto de ser. O Um que não é existe somente como operação matemática, ou seja, a conta-por-um. Badiou (1996, p. 30) chama “situação toda multiplicidade apresentada”, e aposta que a ontologia seja uma situação. Para isso, Badiou (1996, p. 32) teve que resolver dois grandes problemas: “o da apresentação, a partir da qual pode-se falar racionalmente do ser- enquanto-ser, e o da conta-por-um, sem fazê-lo desaparecer na promessa de uma exceção”. Badiou (1996, p. 30) defende em seu livro “O ser e o evento” a tese de uma ontologia da presença, “posto que a presença é o contrário exato da apresentação”.

especulação que retornam a interrogação da escola de Platão, em particular de Plotino: o Um é ou não é? Esse debate, que atravessa o pensamento filosófico durante séculos, acaba criando diferentes escolas, uma das quais interessa a Lacan ([1959-1960] 1988, p. 261), a saber, a que sustenta a “necessidade de um ponto de criação ex nihilo”, ou seja, para ele as coisas só existem depois de um ato. A dialética entre ato e potência implica a dimensão da mudança, o que implica uma dimensão temporal: o que estava antes para o que advém depois.

Portanto, em Psicanálise tudo depende de uma questão de perspectiva, o que vale dizer que trabalhamos com um objeto cujo estatuto costuma mudar conforme o modo que o olhamos. Por isso, é bom deixar claro que, quando fazemos alusão a uma ontologia psicanalítica, estamos assumindo o avesso do que teoriza a metafísica clássica, segundo a qual os entes são vistos como possuindo uma essência fixa e acabada que pode ser apreendida integralmente pelo pensamento. Não é de uma ontologia da presença e da subsistência, a qual estaria na base das noções ocidentais de substância e de sujeito, que aludimos, pois esta seria incompatível com o conceito de sujeito como parlêtre (ser falante), tal como teorizado por Lacan.

Efetivamente, o sintoma é da ordem do costume, do automaton, enquanto eterno retorno do mesmo, e foi por isso que, para explicitá-lo, Lacan o concebe como uma cadeia de significantes, estabelecendo uma diferença entre um significante e outro para pensar a questão do sentido.83 Em contrapartida, quando pensa o sinthoma como sem sentido, ele o faz como um significante, um outro e outro mais, sem que nada o distinga nessa cadeia do mesmo. A nosso ver, o sinthoma possui um estatuto ontológico radical, ou seja, é nossa única substância, único esteio positivo de nosso ser, o único ponto que dá consistência ao sujeito que, ainda assim, é evanescente, pontual e raro. Assim, somos levados a abordar o sinthoma justamente como um ponto de soldagem entre o Um e o Ser, ponto onde o sujeito e o Outro não se separam (S1, a). Para se pensar essa noção de sinthoma como a de um resto irredutível, impossível de dialetizar, é preciso fazer uma inversão de perspectiva na concepção de como o sujeito se constitui, ou seja, é preciso tomar outra posição teórica.

Vamos desenvolver essa questão nos capítulos seguintes, mas é importante antecipar aqui as duas maneiras que Lacan apresentou ao longo de seu ensino para pensar a constituição do sujeito. Uma maneira advém do primeiro ensino, na qual é a partir do simbólico que se

83 Desse ponto de vista, o sintoma não tem nenhuma afinidade com a ordem da surpresa ou com o acontecimento imprevisto. Entretanto, cabe assinalar uma exceção referente ao que podemos chamar desencadeamento, cuja verdadeira dimensão talvez possa ser vista na psicose e, às vezes, no desenvolvimento de uma fobia. Embora a fobia tenha pontos em comum com a psicose, é bom ressaltar que essa é uma estrutura solidária com a foraclusão do Nome-do-Pai, ao passo que não é seguro afirmar que a fobia seja uma estrutura.

aborda o real mediado pelo imaginário e a última, que faz uma inversão radical e toma o real como o que causa o sujeito. Para entender essa inversão de perspectiva, precisamos partir do afeto (afeckt) na sua dupla dimensão de ser, pois ao mesmo tempo em que é corpo bruto, ser puro, gozo inespecífico (G) é ele humanizado pelo significante para se tornar gozo identificado (G barrado) parcial e contável no sintoma.

Miller ([1997-1998] 2003) extrai a noção de insígnia – (S1, a) – como uma redução do discurso do mestre ao seu osso, isto é, aquilo que não se deixa reduzir por um processo analítico.

a

S

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S

1 2

Coelho dos Santos ([2004] 2005, p. 194) nos diz que a tese de Lacan que nos permite pensar essa inversão de perspectiva trata da noção de primariedade de S1, não como traço, mas como enxame – essaim: originariamente Isso, fala dele. A autora explica que, no primeiro ensino de Lacan, alguém grita e alguém responde, mas no segundo a resposta se antecipa em relação a qualquer pergunta. O sujeito está mergulhado nesse mar de respostas, indiferenciado no campo do Outro, ou seja, o ponto de partida é a indiferenciação do sujeito no campo do Outro. Na perspectiva do ultimo ensino, o campo do S1 se especificaria em duas vertentes:

1- A vertente do inconsciente, que podemos entender do seguinte modo: a partir do momento em que o sujeito começa a falar, o significante é o que representa o sujeito para um outro significante. Então, é preciso que se pense que, no seio desse enxame, em algum momento, o sujeito advém sujeito que fala e começa a contar, um por um, os seus gozos.

2- Ao mesmo tempo, S1 é também uma referência à resposta originária, anterior à pergunta. É S1 como letra, como marca, que se repete, escandindo a constituição subjetiva por meio de um termo fixo, que se manifesta como repetição.

Então, de um lado, temos uma repetição diferenciada na sucessão dos enunciados e, de outro, uma repetição imóvel, na qual S1 exibe mais claramente a sua face de a, de resto irredutível, inassimilável, que não se deixa dialetizar, tal como o esquema abaixo vem demonstrar.

(S1, S2)

S1 (S1, S1) ∑

a

É muito interessante destacarmos essa diferença no campo de S1. Há o S1 no campo do inconsciente estruturado como linguagem – no qual o significante é o que representa o sujeito para um outro significante, mas há também o S1 como letra e, quando ele funciona como letra, é idêntico a . Penso que a noção (S1, a) seria melhor escrita se pudéssemos grafar os caracteres S1 e a um sobre o outro, onde o Um é idêntico ao Ser. Aqui entramos no âmago da nossa questão: a solidariedade é um sintoma social ou um sinthoma?

Embora de uma maneira geral todo sintoma, com ou sem th, remedie algo estruturalmente defeituoso na estrutura do sujeito, que é a falta de inscrição no inconsciente de um parceiro sexual, eu estaria tentada a fazer como Askofaré (1997, p.182) e retomar a oposição einsteiniana de uma teoria geral e de uma teoria restrita. Do lado do sintoma geral situarei o sintoma social, já que seu conceito conota a universalização da função do sintoma como função de ex-sistência do inconsciente no real do simbólico e do reino do Discurso do Mestre. Estamos no momento da teoria lacaniana em que o Inconsciente, enquanto lugar do Outro, como tesouro ou bateria de significantes que marcaram a vida de um sujeito, deve emergir na análise para que o sujeito perca os efeitos indesejáveis de seu sintoma. Do tratamento desse sintoma, do atravessamento da fantasia e da redução de seu gozo poderemos chegar ao final de uma análise em direção ao sinthoma (esse com th) com o qual devemos nos identificar, por ser incurável.

Considerando que Lacan ([1975-1976] 2007, p. 163) disse que o sinthoma “é o mais singular em cada individuo”, eu o inscreveria na fórmula universal da função do sintoma: ∑ (x), que Lacan ([1975]), na aula de 18 de fevereiro de 1975 do Seminário “R.S.I.”, define pela “maneira como cada um goza do inconsciente considerando que o inconsciente o determina.” Miller ([2007] 2009, p. 136) observa que a afirmação de Lacan no final de O seminário, livro

24,“L’Une-bévue”, de que “a neurose tem a ver com as relações sociais” confirma que o Inconsciente não é o que há de singular em cada indivíduo. Foi por isso que Lacan ([1975- 1976] 2007, p. 163) alojou o sinthoma no Um, definindo inclusive o Um pelo sinthoma.84

84 Digamos que, em um segundo tempo lógico, o Inconsciente vem se atar a esse sinthoma pertencente ao Um. De acordo com Miller ([2007] 2009, p.79), quando Lacan recusa o Inconsciente coletivo, ele não o faz com as

Lacan (]1972-1973] 1985) estava nesse momento questionando o Inconsciente estruturado como um saber. Ele fala de enxame de significantes que não formam cadeia, demonstrando um estatuto de inconsciente em que os significantes são todos 1, não havendo mais o que distinga um do outro. É um inconsciente que não se dirige ao Outro e não instala qualquer suposição de saber. A esse respeito, Lacan estabelece um estatuto peculiar de sujeito: o de desabonado do inconsciente, o que nos remete a um sujeito impossível de ser analisado. Sabemos que o único exemplo que Lacan nos dá de um sujeito como esse é Joyce, de quem se serve para demonstrar que o inconsciente é um gozo repetitivo, que só goza dessa repetição, sem produzir nenhum efeito de sentido.85

Ora, se considerarmos o sintoma como aquilo que do real vem para impedir que as coisas andem, não poderíamos nomear a solidariedade como um sintoma, já que sua função sempre foi a de tamponar a verdade do sistema capitalista, que é a de produzir uma fratura na promessa liberal de universalizar a liberdade e a igualdade burguesas. O sintoma, nesse caso, seria então a incessante produção de pobreza e de desigualdade social. No entanto, quando Lacan ([1975-1976] 2007, p. 148) nos apresenta a função do sinthoma como um quarto nó que corrige a falha da estrutura, fazendo as vezes de Nome-do-Pai, nos dá a chave para entender porque no texto intitulado “A terceira” (1974) cita as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), que representadas por mulheres são consideradas como “sintomas bons.”

Para se entender em que Lacan se apoia para nomear sintomas tidos como “bons”, devemos nos lembrar de que Freud, em 1915, teoriza sobre os destinos da pulsão, dizendo que a sublimação é uma de suas vicissitudes. No texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, capítulo “A sexualidade infantil”, de 1905, Freud já havia associado a sublimação às realizações culturais e, em “Dois verbetes de enciclopédia”, capítulo B, intitulado “A teoria da libido”, Freud ([1922] 1996, p. 309) a coloca como a vicissitude pulsional mais importante, porque “o que originalmente era um instinto sexual encontra

preocupações segundo as quais se deveria distinguir o coletivo e o transindividual, como no início de seu ensino. Quando ele recusa o inconsciente coletivo é para dizer: não há mais inconsciente particular, é cada um por si. 85 Para aprofundar sobre as bases lógicas da diferença entre sintoma e sinthoma, sugiro o seminário de Tania Coelho dos Santos (2005) intitulado “Sinthoma: corpo e laço social”, ministrado no PPGTP/IP/UFRJ e na Seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise no primeiro semestre de 2005, publicado pela SEPHORA/UFRJ em 2006. Disponível em: <http://www.nucleosephora.com/laboratorio/aulas/sinthomacorpoelacosocial.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2010. O seminário localiza na obra de Lacan o avanço conceitual que prenuncia seu último ensino, que é a noção de insígnia e a de sinthoma. A autora diz que a tese de que “não há relação sexual” não é um predicado do lado direito das fórmulas da sexuação e, portanto, é uma completa reformulação da teoria que já implica a disjunção entre o inconsciente e o real.

satisfação em alguma realização que não é mais sexual, mas de uma valoração social ou ética superior.”86

Freud, em 1930, no “Mal estar na civilização”, relaciona como características principais do que seria a civilização (ou cultura) a valorização e o incentivo às realizações intelectuais, científicas e artísticas, e o fato de atribuírem às ideias (e aos ideais) um valor fundamental na vida humana. Todos esses fatores seriam correlacionados entre si, sendo difícil estabelecer os limites entre um e outro. Logo a seguir em seu texto, Freud acrescenta como outra característica básica da civilização o estabelecimento de laços que permitam a constituição da comunidade (ou Estado), laços afetivos do homem para com a humanidade, para com o próximo e para com a pessoa que será também o alvo de seus impulsos sexuais. Encontramos, então, aqui no texto de Freud, lado a lado com a ciência e a arte, o amor e a política.

Para aprofundar a função dessas três virtudes teologais como significantes capazes de capturar o sujeito em um processo de verdade (política, arte, ciência e amor), vale conferir o livro “São Paulo”, no qual Badiou (2009, p. 19) analisa o cenário político da contemporaneidade. O autor nos diz que “a lógica capitalista e a lógica identitária e cultural das comunidades ou das minorias formam um conjunto articulado” que é duplamente hostil aos processos de verdade. Visando construir uma ruptura com tudo o que está posto (nem homogeneidade monetária, nem reivindicação identitária; nem universalidade abstrata do capital, nem particularidade dos interesses de um subconjunto), Badiou toma como exemplo a militância de São Paulo para teorizar as três condições de uma “singularidade universal” que possibilite pensar uma política verdadeira que não esteja presa à ideia de “gestão.” Uma das condições apresentadas por Badiou é a fidelidade. Para explicar sua função em um processo de verdade, curiosamente descobrimos que, tal como Lacan, ele apresenta as três virtudes teologais como conceitos necessários à compreensão dessa condição. Ele diz que o conceito que nomeia o sujeito no ponto da declaração, que é geralmente traduzido por “fé”, seria mais bem compreendido como “convicção.” O que nomeia o sujeito no ponto da intenção militante de sua convicção, que é geralmente traduzido por “caridade”, seria mais bem nomeado como “amor.” E, por último, o que nomeia o sujeito na força do deslocamento que lhe é conferida

86 Freud lançou mão do termo sublimação para teorizar a relação entre o singular e o universal, ponto onde o desejo de um sujeito se constituiria face ao social. Porém, na sublimação, na medida em que se começa a delinear com mais precisão o que seria singular e o que seria universal, começamos também a perceber a interdependência que esses dois campos possuem, e a distinção conseguida de início começa a se tornar tênue e imprecisa. Sugerimos o livro de Oswaldo França Neto “Freud e a Sublimação: arte, ciência, amor e política” (2007), no qual o autor fez esforço considerável para manter lado a lado Lacan e Badiou no que concerne a correlacionar os quatro “procedimentos genéricos” do primeiro com a teoria da sublimação do segundo.

pela suposição do caráter acabado do processo de verdade, que é geralmente traduzido por “esperança”, em sua opinião, seria mais bem nomeado como “certeza.” (BADIOU, 2009, p. 22).

Para Lacan (1974), a fé, a esperança e a caridade são sintomas que mantêm perfeitamente a neurose universal, destacando a função da fantasia humana submersa na crença de que a comunidade igualitária exista. Ele confessa que sonha que essas três virtudes possam estar no mundo, na feira/fórum, como ele diz, e por isso pensamos que os sintomas bons estão no campo da sublimação.87 Não é sem razão que Lacan destaca aí a função da igreja, e não deixa de apontar para o fato do sintoma não se reduzir ao gozo fálico, ou seja, a sublimação, apesar de se mover sob a égide da esperança de constituir Um, e apesar de implicar a totalidade da corrente sexual em um movimento unitário, está marcada pela inadequação (sexual) e, portanto, impossibilitada de deixar de existir enquanto busca sua construção. Nesse ponto podemos nos lembrar da afirmação de Lacan ([1960] 2005, p. 35) em seu “Discurso aos católicos” de que, embora Freud tenha dado um peso correto à moral, não é seu desígnio fazer da psicanálise algo como o esboço da honestidade de nossa época.

No entanto, não é difícil de ver contemplada como um “sintoma bom” a solidariedade que, travestida de caridade, pode ser sustentada como sinthoma por alguns sujeitos que dão a sua vida às obras da Igreja ou ao trabalho voluntário. Mas não podemos nos esquecer também de que Lacan ([1960] 2005, p. 39) nos alerta do perigo de se utilizar “do altruísmo, seja ele educativo ou familiar, filantrópico, totalitário ou liberal” como algo diferente do amor em si mesmo. Lacan ([1959-1960] 1991, p. 228) nos diz que o egoísmo se satisfaz muito bem com certo altruísmo, aquele mesmo que se coloca no nível do útil, já que é da natureza do bem ser altruísta. Portanto, desse ponto de vista, a solidariedade está no campo da “gestão do necessário” ou do “serviço dos bens”, tal como ela vem sendo chamada atualmente pela grande mídia.

Ora, Freud (1974, p. 174) nos ensina que “a solidariedade só se realiza quando existe “uma importante qualidade emocional comum”, isto é, um laço libidinal que leva a uma identificação entre iguais, como também a identificação desses mesmos iguais com um líder, tomado como ideal do eu grupal. Teríamos assim um “eixo horizontal” de identificação dos

87 Lacan ([1959-1960] 1991, p. 160) cita o amor cortês como “paradigma de sublimação” ou como “uma obra de sublimação em seu mais puro alcance”. ([1959-1960] 1991, p. 158). No amor cortês, a mulher adquire o valor de representação da Coisa. Ela não se transforma na Coisa em si, mas a representa. Lacan ([1959-1960] 1991, p. 200) identifica o objeto (mulher) com a Coisa. Ao fazer isso, a mulher passa a ocupar um lugar ambíguo e Lacan ([1959-1960] 1991, p. 188) chega, inclusive, a aproximar a Dama do amor cortês ao nebenmensch freudiano. Ao mesmo tempo em que ela se tinge com a coloração do ideal humano, da beleza assexuada, inatingível, a Dama também remete ao horror, ao inexprimível da Coisa. Esse assunto retornará no capítulo sobre o amor.

membros de um grupo entre si e um “eixo vertical”, que faria com que os membros se identificassem a uma “causa” ou a um “líder” comum, ou seja, um grupo de iguais se une em torno de um “desigual”, o líder ou o chefe que serve como um Ideal do Eu. Os vínculos são, portanto, constitutivos do sujeito e o definem de imediato como um ser essencialmente político. Mas, enfim, nos parece que a psicanálise reitera o que todas as outras teorias postulam, ou seja, não existe solidariedade entre desiguais.

O texto freudiano “Totem e Tabu” ([1912-1913] 1996) nos mostra que há uma violência originária contra cada um dos membros que pertencem a uma sociedade e que ela está presente em qualquer organização social, de maneira que toda cultura contém em seu cerne a segregação dos desiguais. Portanto, vale a pena perguntar, a partir do que nos ensina a psicanálise, qual podem ser os traços identificatórios comuns entre a classe de pessoas que pratica a “solidariedade” com os milhões de brasileiros excluídos de seus direitos sociais básicos. Mesmo argumentando que esse traço seja a busca pela justiça, não podemos garantir que a justiça de uns seja a mesma que a de outros, e poderemos estar confundindo solidariedade com a caridade que cala nossos sentimentos de culpabilidade ou de piedade pela situação dos desfavorecidos.

Vale ressaltar que, considerando esse aspecto, sabemos que se abre um espaço abissal entre quem dá e quem recebe, pois, afinal, quem recebe está sempre no lugar de uma vítima, um dependente, um humilhado e, portanto, a doação não deixa de ser uma forma de dominação, pois vem da potência de quem pode dar. A inclinação para ajudar o outro, valorizada como um elemento constitutivo da cidadania responsável, carrega, portanto, a

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