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As Novas Formas de Solidariedade no Mundo Contemporâneo

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 107-114)

2. BASES ANTROPOLÓGICAS DA SOLIDARIEDADE

2.4 As Novas Formas de Solidariedade no Mundo Contemporâneo

A defesa da solidariedade como fundamento ético para o trabalho voluntário em ONGs e em programas de saúde e assistência social se sustenta no argumento de que a sociedade civil brasileira precisa participar das soluções para os problemas sociais, pois é certo que o Estado não dá conta disso sozinho. Para quem defende essa posição, não há riscos

de a solidariedade que fundamenta as ações do voluntariado ser de origem caritativa e benevolente, só pelo fato de já estarmos no campo dos direitos e não dos privilégios e concessões, desde a constituição federal de 1988. Selli e Garrafa (2006) se dão conta de que os conceitos de solidariedade mecânica e orgânica de Durkheim (1987) são insuficientes para os seus propósitos e trazem um conceito novo: solidariedade crítica. Para os autores esse tipo de solidariedade é o fundamento para outro tipo de voluntariado, que escapará às críticas e aos preconceitos que existem acerca tanto da solidariedade quanto do voluntariado. Os autores marcam historicamente o valor da atividade voluntária na Europa que, como vimos acima, nasce para amenizar as mudanças drásticas no campo econômico e social trazidas pelo capitalismo industrial e aproveitam para defender o voluntariado como meio de participação cidadã. Em nenhum momento do texto lhes ocorreu perguntar por que o Estado não dá conta de solucionar os problemas sociais e partem da constatação de que é assim e pronto! O trabalho voluntário teorizado como “orgânico” pelos autores (em analogia ao conceito de “intelectual orgânico” de Gramsci) é defendido não só como necessário e complementar à insuficiência do Estado, mas também como fonte de cidadania e canal de participação.

Em momento algum os autores fazem alusão aos canais de participação popular instituídos pela Constituição brasileira através dos Conselhos, presentes nos três níveis de Estado e em todas as políticas públicas. Pelo contrário, eles apenas citam da Constituição o Artigo 5º (incisos XVII e XVII), que trata da liberdade de associação e da criação de associações e cooperativas, como se essa fosse a única maneira de participação, para destacar a ação voluntária como a mais ética.

Selli e Garrada (2006) apresentam dados demográficos de 1950 a 2000 para demonstrar que os serviços públicos essenciais são incapazes de acompanhar o crescimento da demanda pela política pública, criticando um tipo de Estado que se propõe ser onipresente e centralizador. Eles dizem que, é quando o Estado mostra seus limites e possibilidades, que se amplia o espaço para a sociedade civil.

Depois desta afirmação, os autores se preocupam em desmentir a possível impressão de que a proposta que fazem de aumentar “em quantidade e qualidade o voluntariado” aponte para a defesa de uma retirada do Estado e de suas políticas sociais, mesmo deixando claro em seu texto que a função do voluntariado é complementar as ações do Estado. Quando dizem que temos no Brasil um grande potencial de recursos, aludindo à “população jovem” e de “aposentados de alta qualificação”, eles já deixam claro sobre qual é o público e a classe social desses voluntários, ou seja, pessoas que não estão pressionadas a ganhar a vida. Isso

evidencia bem a repetição histórica da ação solidária de uma classe que pode dá à outra, que só sobrevive, se receber.

Ora, um Estado que arrecada um determinado volume de impostos, prometendo com aquele dinheiro oferecer serviços públicos de boa qualidade, não pode deixar de cumprir o que prometeu sem mostrar suas contas. Talvez tenhamos que deixar claro que o Estado que é descrito no texto de Selli e Garrafa (2006) é o Estado liberal e, a partir disso, toda a argumentação dos autores passa a fazer sentido. A visão desses autores está alinhada com o que o Papa Bento XVI diz no item 28 da parte II de sua encíclica,: que não precisamos de um Estado que burocratize todas as ações e sim que “generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda.” Os argumentos de Bento XVI nessa encíclica justificam a existência de um empreendedorismo social compreendido pelo que conhecemos como Terceiro Setor, quando diz que essa ajuda pode se viabilizar “na maior parte dos casos através de subsídios ou descontos fiscais [...] pondo à disposição verbas consideráveis.” O Papa diz que as ações da Igreja nunca poderão ser equiparadas com a assistência social porque vem do amor de quem quer ajudar.

Tal como vimos, no primeiro capítulo, a estratégia do Estado neoliberal de usar o dinheiro público para interesses corporativistas, sempre foi a de fazer falhar as políticas sociais. No espaço aberto pela carência de serviços, candidatos da sociedade civil se instalaram na conformação do terceiro setor, hoje assumidamente reconhecido como de empreendedorismo social. Se o Estado estivesse democratizado e se, de fato, fosse público e não privado, os impostos iriam para a execução das políticas sociais, que inclusive estão muito bem formuladas, por exemplo, na lei orgânica da saúde (Lei Federal 8.080, de 19/09/1990) e da assistência social (Lei Federal 8.742, de 07/12/1993).

No caso do Estado, a carência de pessoal necessário à execução desses serviços deveria – seguindo o planejamento de uso dos recursos financeiros que arrecada – ser solucionada através de concursos públicos. Assim, não seria necessário contar com o voluntariado, mesmo ele sendo conceitualizado por Selli e Garrafa (2006) como “orgânico.” Os autores pensam que esse tipo de participação “é um sinal de maturidade política que deve ser saudado”, mas sabemos que não podemos pensar assim, até porque são muitos os motivos pelos quais se atua voluntariamente, já que a solidariedade não tem o mesmo sentido para todos. Aliás, a intenção de muitas pessoas que estão em idade produtiva e que se envolvem com trabalho voluntário é, muitas vezes (mesmo que não admitam no primeiro momento), a de se qualificarem para serem contratadas ou pelo Estado ou pelo Terceiro Setor. Por outro

lado, o texto é temeroso quando se verifica o quanto os autores apostam na solidariedade crítica de quem pratica o voluntariado, já que ela precisa preencher uma série de requisitos extraordinários, a saber:

É exercida na sociedade civil, não tendo como finalidade o poder político, direta ou indiretamente, nem qualquer outra forma dele; é na condição de pessoa que o agente se dirige aos demais membros da coletividade e a seus potenciais beneficiários; é um compromisso unilateral e personalíssimo, que não se liga a nenhuma forma de ativismo (político, social, religioso) que busque no voluntariado uma função instrumental para seus desígnios; não possui, ao menos conscientemente, um conteúdo utilitário; não vê em sua prática a criação de uma moeda de troca ou uma forma de barganha psicológica ou religiosa; é uma busca da reciprocidade e da alteridade; uma abertura ao outro e ao fato de participar de um mesmo universo existencial; denota um inconformismo individual para com o status quo que leva a uma ação positiva em favor de mudanças sociais concretas; caracteriza-se por ser uma busca pela justiça dos destinatários da conduta voluntária livre de paternalismo ou de qualquer outra forma de autoritarismo; deve partir de uma postura democrática radical, que vê no outro um igual tanto em dignidade quanto em autonomia para buscar seus fins; deve ver na tolerância o pluralismo ético indispensável à realização, por todos os membros da coletividade, dos fins que considera relevantes para sua existência; busca a ruptura dos antigos parâmetros imobilizantes. (SELLI; GARRAFA, 2006).

A nosso ver, a solidariedade crítica de Selli e Garrafa (2006) funciona como uma benção ou uma ascese e, embora não digam, está ancorada em uma visão cristã, pois:

Possibilita aos destinatários da atividade voluntária orgânica, que se tornem capazes de exercerem seus direitos políticos e civis, de liberdade e igualdade [...] a solidariedade crítica tem o papel de tornar o destinatário da ação solidária consciente de si mesmo, de seus direitos e deveres, como pessoa integrada na sociedade e como cidadão integrado na vida política. (SELLI; GARRAFA, 2008).

Em momento algum os autores dizem como os voluntários operam para conseguir tamanha potência, de maneira que nos parece acontecer como por milagre religioso. Não desprezamos a contribuição dos autores, mas achamos que a solidariedade da qual tratam está em um campo mais religioso e místico ligado à subjetividade dos agentes e, por isso, não pode ser generalizada como eles o buscam fazer.71

Esse é o mesmo argumento utilizado pelos defensores do voluntariado orgânico, ou seja, o de que a Responsabilidade Social não é exclusiva do Estado, mas também da sociedade civil. Por definhamento do Estado, as políticas públicas de proteção e seguridade social de atendimento às causas sociais ficaram limitadas e contribuíram para o surgimento de um novo

71 Os autores não se declaram cristãos, mas a base de seu pensamento pode ser encontrada no item 28 da II Parte da primeira encíclica do Papa Bento XVI quando ele discute “Justiça e Caridade”. Ai pode-se ler o Pontífice advogar sobre a necessária função complementar da Igreja em relação à realização de uma sociedade justa. Na opinião do papa, só a Igreja “pode contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais, sem as quais não se constroem estruturas justas, nem estas permanecem operativas por muito tempo”.

ator na década de 1990 do século XX: as organizações civis e comunitárias, sem finalidade lucrativa, qualificadas como Organizações Não Governamentais (ONGs), por oposição às instituições governamentais.

As ONGs aparecem nesse cenário como garantidoras do acesso aos direitos básicos da constituição brasileira, que infelizmente o Estado capitalista não consegue cumprir, fazendo com que se configurassem em um grande setor de “empreendedorismo social.” Se a princípio estavam em oposição ao Estado, fiel à pressão que os movimentos sociais faziam para forçá- lo a melhor funcionar, elas ocuparam os espaços esvaziados com a execução de projetos complementares aos oferecidos pelo poder público, aprofundando sua precariedade.

Foi uma surpresa descobrir no item 30 da II Parte da Encíclica do Papa Bento XVI, quando o pontífice discute “As múltiplas estruturas de serviço caritativo no atual contexto social”, sua simpatia pelas ONGs. Ele usa o argumento neoliberal bem conhecido que é o de que “não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda.” O Pontífice reitera o argumento dizendo que tanto o Estado quanto às associações humanitárias devem apadrinhar iniciativas com a finalidade de socorrer o próximo. Ele explica que o primeiro o faz na maior parte dos casos através de subsídios ou descontos fiscais, e as associações pondo à disposição verbas consideráveis: “assim a solidariedade expressa pela sociedade civil supera significativamente a dos indivíduos.”

As ONGs não cumprem mais a função que as originou, que era a de cobrar do Estado serviços públicos de qualidade e, agora, com legislação específica para se tornarem Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs),72 entraram na lógica de concorrência para estabelecer com o Estado as Parcerias Público Privadas (PPPs). Como OSCIPs, passaram a administrar, por exemplo, na área da Saúde, hospitais, equipamentos e novas instalações de média e alta complexidade. Julgamos que se trata de um detalhe que fere o Sistema Único de Saúde (SUS) e ameaça a universalização do serviço, ou seja, coloca em risco a garantia do direito dos usuários. Tal situação coloca também em xeque os mecanismos de controle público do SUS, que são baseados na existência dos Conselhos de gestão, com

72 Assentadas sobre o falso argumento de que, para tornar a administração e os serviços públicos mais eficientes os governos neoliberais dos anos 90 propuseram reformas do setor público nas quais optaram por soluções de esvaziamento do Estado com o discurso do Estado mínimo. O Estado, portanto, se reduz, não para melhorar sua eficiência administrativa, mas por exigência das mudanças históricas, políticas e tecnológicas das relações de produção. Na sequencia dos fatos, o governo federal editou uma Medida Provisória, n. 1.591,em 1997, que depois virou Lei Federal, n. 9637/98, criando as OSCIPs e terceirizando os serviços públicos da área da saúde para o setor privado.

presença paritária de usuários em relação ao conjunto dos demais segmentos, incluindo profissionais e gestores em instâncias instauradas nos três níveis da Saúde pública.

Sem anular a importância política das ONGs e dos movimentos sociais de onde elas vieram, é necessário reconhecer que o Terceiro Setor tem usado da ciência e da tecnologia para defender uma propalada capacidade de criar soluções inovadoras e criativas para os problemas sociais de caráter local. A solidariedade que daí emana não é contrária à linguagem utilitária e capitalista que se organiza para maximizar os recursos, minimizando custos operacionais das “empresas sociais.”

O apelo por uma “ética da solidariedade”, como uma das grandes saídas para o mal estar contemporâneo, apenas repete o sintoma do sistema capitalista na sua versão neoliberal globalizada, que privilegia a saúde da economia em detrimento da saúde das pessoas. Não é sem razão que temos produzido patologias novas, novos remédios e tratamentos de acordo com o freguês.

Temos observado que uma nova modalidade de campanhas que apelam para solidariedade se instalou em nosso cotidiano através da mídia, como estratégia de “marketing” para arrecadação sistemática de recursos financeiros destinados à realização de “projetos sociais” ou para manutenção de serviços essenciais. Essas campanhas dividem a atenção com as que acontecem especialmente em ocasião de crises humanitárias emergenciais, prestadas às vítimas de catástrofes naturais e de guerras, nas quais vemos a sociedade civil participar de boa vontade fazendo doações de toda a natureza.

Por causa dos problemas ecológicos, durante os primeiros meses do ano de 2010, a população pobre do mundo vem sofrendo com as catástrofes naturais, como se o clima do planeta estivesse “de marcação” com ela. Sem refletirmos os motivos pelos quais a destruição atinge sempre os mais pobres, sejam eles países ou indivíduos, vimos em todas as ocasiões pessoas de todos os níveis sociais diante da permanente surpresa do Estado responder solidariamente.

Essas campanhas acabam por colocar em um mesmo patamar as intenções nobres do cidadão que doa e trabalha voluntariamente para ajudar o próximo, junto com os interesses daqueles que lucram com as desigualdades sociais. De acordo com Comte-Sponville (1997), em nome da solidariedade, somos capazes de fazer convergir interesses opostos, ligados aos diferentes corporativismos e lobbies de todo o tipo, ainda que sejam planetários e/ou legitimados por grupos de respeito público.

Uma observação importante, mas pouco comum, a se fazer sobre a solidariedade diz respeito a quando se trata de partilhar a crueldade, a dominação, a discriminação, a xenofobia,

o racismo. Quero dizer: a solidariedade existe também a partir de mecanismos coletivos associados a sentimentos e comportamentos destrutivos e mortíferos. Isso acontece, por exemplo, na economia, quando grupos econômicos (os cartéis da indústria ou de serviços) se unem para consolidar seu monopólio ou sua exploração, em relação aos concorrentes ou aos consumidores. Acontece também quando os membros de uma “gang” se “solidarizam” para agredir alguém, para assaltar ou roubar, para queimar um índio ou um mendigo ou bater em prostitutas e, quando legisladores (senadores, deputados, vereadores), legislam em causa própria, aumentando seus próprios soldos. Enfim, há uma solidariedade e uma fidelidade obrigatórias, baseadas no terror entre os membros de toda organização estruturada na violência, que popularmente nomeamos como “máfias.”

No próximo capítulo apresentaremos o conceito de sintoma para a psicanálise e os aspectos ontológicos da solidariedade a partir de Freud e Lacan.

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 107-114)