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Do Sintoma ao Sinthoma

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 132-137)

3. A SOLIDARIEDADE COMO SINTHOMA DO CAPITALISMO FINANCEIRO

3.3 Do Sintoma ao Sinthoma

Que o sintoma seja enodado ao social é uma evidência. Sem o Outro, sem prescrições e sem proibições, parece difícil conceber a quase totalidade das condutas dos pensamentos, até mesmo das manifestações corporais (atingindo a função dos órgãos, por exemplo) que fazem sintoma pelo sujeito. Resta, entretanto, fazer valer, segundo as perspectivas lacanianas, a articulação do sintoma segundo os dois polos: do Outro (social) e do sujeito.

Que o sintoma seja o “ser de verdade”, que ele seja mobilizável no saber no qual ele pode eventualmente se dissolver, não deveria nos fazer perder de vista que o sintoma – como desordem ou déficit social –só existe lá onde existe falta subjetiva de domínio, quer dizer, lá onde a impotência imaginária triunfa, inclusive, revestindo as tessituras do impossível. Ora, a mestria como instauradora da ordem e como regulamentando o campo do gozo notadamente sexual é uma função do social. Uma sociedade histórica – no sentido em que se pode distinguir das sociedades não históricas, seja em razão da ausência de Estado ou da propriedade privada, seja em razão da escritura – é sempre dominada por uma ou várias figuras da mestria/domínio (política, econômica, religiosa, epistemológica, etc.). Que as figuras do Mestre moderno, ou que sua figura dominante gire, não ajuda a sair demasiado do laço social do Discurso do Mestre ou da dissimetria que o funda.

É em consequência disso que as formas históricas e culturais do sintoma e as funções que o impelem variam segundo as coordenadas do Discurso do Mestre, das figuras e dos dispositivos de mestria. Para ilustrar essa afirmação, nós podemos colocar de frente os significantes mestres que ordenam nossa existência – trabalho, escola, gozo sexual, saúde, beleza física, etc. –, algumas formações do sintoma – estresse, repetições de acidentes de trabalho, absenteísmo, sintomas escolares, impotência, frigidez, ejaculação precoce, anorexia,

78 Bachelard ([1938] 2003, p. 25) e Canguilhem (1977) nos ajudam a não cair na ilusão de continuidade. Existem quebras, rupturas, ultrapassagens, formalizações que superam e incluem, e, por outro lado, existem formalizações que superam e se destacam das formalizações antigas. Quando trabalhamos com a obra de Freud e a de Lacan, não estamos dispensados de fazer o mesmo trabalho que qualquer outro pesquisador ou cientista faria.

bulimia, TDAH, etc. –, do qual nós temos razões de pensar que eles não existiriam independentemente da função que os significantes aos quais eles remetem asseguram na economia do DM, que hoje em dia nos domina.

Cada sintoma torna visível que ele é no fundo um modo de objeção, de recusa ou de insubmissão do sujeito ao que prescreve ou proscreve o DM, sob suas formas moral, religiosa, jurídica, ideológica, etc. De fato, o sintoma é essa recusa, essa objeção ou insubmissão ao valor de um “dizer que não”, de onde talvez se opere a aproximação que Lacan faz entre sintoma e função paterna. Assim, a homologia de estrutura entre o pai e o sintoma (metáfora) se encontra redobrável por uma homologia da função do Pai enquanto metáfora. Digamos que essa função topológica em seu estatuto é uma função do enodamento, quer dizer, assim, de capitonagem.

Zizek (1990, p. 154) já nos alertava que a dimensão do sinthoma teorizada por Lacan no final de seu ensino supera completamente a teoria do sintoma como mensagem codificada que precisa ser decifrada por meio de sua interpretação. Lacan universalizou a função do sintoma a partir do seminário de 1975-1976 sobre Joyce, a partir do que Joyce lhe ensina. Lacan é conduzido a reconsiderar o essencial de sua doutrina, não somente em relação à psicose, mas também em relação ao conceito de sintoma, já que Joyce lhe ensina que o sintoma é bem outra coisa que aquilo que o reduz a certa psicopatologia psicanalítica (ASKOFARÉ, 2009).

Podemos dizer que assistimos Lacan fazer não um retorno à preocupação da escrita enquanto distinta da palavra, preocupação que esteve sempre presente em seu ensino – conferir “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.” ([1957] 1998), “Lituraterra” ([1971] 2003) ou “De um discurso que não fosse semblante” ([1971] 2009) – mas a uma acentuação da função da escrita, e é ai que nos parece acontecer uma reviravolta com relação a Freud (ASKOFARÉ, 2009).

Quando na década de 1950, Lacan introduziu a noção de foraclusão, ela designava o fenômeno específico de exclusão de certo significante-chave (ponto de basta, Nome-do-Pai) da ordem simbólica, desencadeando o processo psicótico. Aqui a foraclusão não é própria da linguagem como tal, mas um traço distintivo do fenômeno psicótico. Lacan, em seu retorno a Freud, propôs de inicio que o que é foracluído do Simbólico retorna no Real sob a forma do fenômeno alucinatório, por exemplo. Mas depois de “Joyce, o sinthoma” ([1976] 2003), Lacan propõe uma dimensão universal para essa função de foraclusão, pluralizando “os nomes do pai”, pois há certa foraclusão própria da ordem significante como tal.

Todas as vezes que temos uma estrutura simbólica, ela é estruturada em torno de um certo vazio, implica a foraclusão de um certo significante-chave. Por exemplo, a estruturação simbólica da sexualidade implica a falta de um significante da relação sexual, implica que “não há relação sexual”, que a relação sexual não pode ser simbolizada, ou seja, que é uma relação impossível. Para apreender a interconexão entre essas duas universalizações, é só aplicar novamente a formula “o que foi foracluído do simbólico retorna ao real (do sintoma)”: a mulher não existe, seu significante original é foracluído, e é por isso que ela retorna como sintoma do homem.

Com efeito, Lacan não situa com Joyce a neurose como o pivô a partir do qual se elucida a psicose. Isto ele fazia ainda em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” ([1957-1958] 1998) com a evidenciação da função da metáfora paterna a partir dos efeitos de sua foraclusão. Com Joyce, ao contrário, ele faz deste último ou a última verdade do sintoma ou o último saber do sintoma. E isso em paralelo com o que é preciso chamar o passe real de Lacan, que é a sua elaboração do real do sintoma como termo último de sua elucidação.

Nos textos “A Terceira” ([1974]) e “R.S.I” ([1975]), que são textos quase contemporâneos, Lacan desloca o acento e o privilégio até então colocado sobre o sintoma como “ser da verdade” para insistir sobre sua dimensão do real. Doravante é o laço social e em particular o DM que se torna o conceito e a referência sobre os quais se apoia e se define o sintoma. Isso porque o laço social, mesmo quando se trata da relação particular do sujeito com o Outro, ainda assim diz respeito ao campo investido por Marx. E o Discurso do Mestre (porque é a estrutura do discurso regida pelo desejo que “isso funcione/marche/ande” e em particular que “isso trabalhe”) apresentaria a razão pela qual o trabalhador se constitui como referência nesse discurso, que se revela como em querer dominá-lo.

No texto “A terceira”, Lacan (1974) define o sintoma como “o que vem do Real.” Isso parece estar em total contradição com a tese lacaniana clássica de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e, para explicar essa aparente contradição, é preciso distinguir as principais etapas do desenvolvimento teórico de Lacan. A princípio, na década de 1950, o sintoma foi concebido como uma formação simbólica, significante, como uma espécie de mensagem cifrada, codificada, dirigida ao grande Outro que supostamente lhe conferiria, retroativamente, sua verdadeira significação. O sintoma surgia onde faltava a palavra, onde o circuito da comunicação simbólica se rompia. Era uma espécie de comunicação por outros meios; a palavra que fora recalcada se articulava de uma forma

codificada, cifrada. Por isso era dirigido ao grande Outro, que supostamente detinha seu sentido, o que significa que não haveria sintoma sem um destinatário.

Podemos dizer, portanto, que não há sintoma sem transferência, sem a posição de um sujeito que saiba sua significação. O sintoma como se antecipa a si mesmo, antecipa a sua dissolução interpretativa: a meta da psicanálise é restabelecer a rede rompida da comunicação, permitindo ao paciente verbalizar a significação de seu sintoma e, graças a essa colocação em palavras, o sintoma é automaticamente dissolvido. Esse é o ponto fundamental: por sua própria constituição, o sintoma implica o campo do grande Outro como consistente, completo, porque sua própria formação é um apelo ao grande Outro que detém seu sentido.

Mas é ai que começam os problemas: por que, a despeito de sua interpretação, o sintoma não se desfaz? Por que persiste? A resposta de Lacan é, naturalmente: o gozo.79 O sintoma não é apenas uma mensagem cifrada, mas é também um meio do sujeito organizar seu gozo, e é por isso que, mesmo depois de uma interpretação completa, o sujeito não se dispõe a renunciar ao seu sintoma. Enfim, o sintoma não se deixa reduzir ao efeito da rede simbólica: a eficácia do gesto interpretativo tem seus limites, persiste um resto depois da evidenciação do encadeamento significante que rege o sintoma, e esse resto é o real do gozar.

Para esclarecer essa dimensão do gozo no sintoma, Lacan procedeu de duas maneiras. Primeiro isolou essa dimensão do gozo como a da fantasia e contrastou sintoma e fantasia através de um conjunto de traços distintivos: o sintoma é uma formação significante que se adianta em direção à interpretação, ou seja, pode ser analisado, enquanto a fantasia é uma construção inerte que não pode ser analisada, que resiste à interpretação; o sintoma presume e se dirige a um grande Outro não barrado que, retrospectivamente, lhe dá sua significação. Já a fantasia pressupõe um grande Outro barrado, não pleno, inconsciente, ou seja, ela ao mesmo tempo mantém e dissimula um vazio no Outro.

O sintoma (um lapso, por exemplo) provoca mal-estar e descontentamento quando ocorre, mas aceitamos com prazer sua interpretação, explicamos alegremente aos outros o sentido de nossos lapsos, e seu “reconhecimento intersubjetivo” costuma ser fonte de satisfação intelectual. Quando nos deixamos levar pela fantasia (nos devaneios, por exemplo) sentimos um prazer imenso, mas, ao contrário, ficamos constrangidos e temos vergonha de

79 Em seu trajeto, Lacan precisou formalizar o gozo. Ele vinha pensando o inconsciente estruturado como linguagem – o significante que representa um sujeito para outro significante –, mas se deparou com o gozo e precisou pensar a face de gozo do sintoma, ou seja, a inércia, a repetição. Há uma inércia nessa substituição significante. Em tese, o sujeito é desembestado, é livre, é um significante que representa o sujeito para outro significante. No entanto, sabemos que a operação analítica esbarra num obstáculo. Uma maneira de pensar esse obstáculo foi introduzir a dimensão corporal, fazendo uma equivalência entre o movimento de abre e fecha das zonas erógenas e o movimento substitutivo da estrutura de linguagem, isto é, do simbólico.

confessá-la aos outros. Dessa maneira, também podemos articular as duas etapas do processo psicanalítico: a interpretação dos sintomas e a travessia da fantasia.

Mas o que aprendemos com a psicanálise é que os pacientes podem se manter atados ao seu modo de gozo, mesmo depois de terem interpretado seu sintoma e ido além de sua fantasia. Foi com esta realidade que Lacan respondeu com o neologismo “sinthome”80, que é uma formação significante perpassada de gozo, na medida em que o sustenta. Em outras palavras, o sinthoma é a maneira como nós “evitamos a loucura”, a maneira pela qual preferimos “escolher alguma coisa” (uma forma típica de sinthoma) a nada (o autismo em sua destruição do universo simbólico), graças à ligação de nosso gozo com uma formação significante que garante um mínimo de consistência a nosso ser no mundo. Quando o

sinthoma, nessa dimensão radical, se desfaz, isso significa literalmente o fim do mundo, pois a única substituição do sinthoma é o nada: o puro autismo, um suicídio psíquico, o ato de se deixar levar pela pulsão de morte até a destruição total do universo simbólico.

No final deste item, uma advertência deve ser feita acerca da oposição entre o estatuto do sintoma e do sinthoma com th. Coelho dos Santos ([2005] 2006, p. 88-89) diz que há um avanço conceitual na teoria de Lacan que prenuncia seu último ensino, que é a noção de insígnia e a de sinthoma. Lacan, em O seminário, livro 20 ([1962-1963] 2005), toma a feminilidade como sendo igual ao objeto parcial, e introduz a fórmula da fantasia $<>a. O objeto a é teorizado como os objetos parciais que seriam mascarados pela diferença sexual e pelo falo. Portanto, o que se oculta sob o apelo da mulher na reivindicação fálica e sob a ameaça da castração no homem é uma identificação fantasmática com o objeto parcial. Uma análise teria que avançar para além do plano da identificação, recuperando no sintoma feminino e no sintoma masculino qual é a fantasia fundamental a qual o sujeito estaria aferrado. Nesse tempo, a fantasia analisa o sintoma e o sintoma é o efeito da metáfora paterna que produz um sujeito como significação fálica e um resto com o qual o sujeito brinca. Mas ainda estamos no nível da teoria de O seminário, livro 18, no qual o simbólico impera, determinando inclusive o que sobra, que é o sintoma sem th.

A partir do axioma “não há relação sexual” 81 e das formulas da sexuação apresentadas em O seminário, livro 20, Lacan ([1972-1973] 1985) provoca uma completa reformulação da

80 Lacan estabelece esta grafia com a homofonia, em Francês, entre Saint-homme, Saint Thomas e sinthome, certamente nada casual. O Sinthome, como algo que pede remédio, se enlaça à prática da santidade, tema que vamos abordar adiante.

81 Esse axioma deve ser compreendido como “a impossibilidade de estabelecer [...] o Um da relação sexual”, que é o mesmo que dizer da impossibilidade de escrever como tal a relação sexual. (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 15-22). Em último caso, o que chamamos de relação sexual se refere às relações entre o simbólico e o real, implicando os significantes da linguagem e a materialidade dos corpos. Como não há acordo entre significante e

teoria que implica na disjunção entre o inconsciente e o real. Se o inconsciente tem relação com o real via fantasia, isso não significa que o real se esgote no objeto da fantasia, de maneira que o real é um conceito mais largo que o conceito de inconsciente. Em O seminário,

livro 23, Lacan ([1975-1976] 2007, p. 98) se faz uma pergunta sobre se o inconsciente é real ou imaginário para concluir precariamente que “ele participa de um equivoco entre os dois.” É então, pela via do que é disjunto do simbólico que Lacan reintroduzirá a questão do corpo vivo, forçando-nos a reconhecer que entre o O seminário, livro 22 e o O seminário, livro 20 há uma descontinuidade.

De acordo com Coelho dos Santos ([2005] 2006, p. 130), Miller vem elegendo alguns axiomas da teoria do último ensino de Lacan que permitem marcar a passagem de uma lógica do sintoma a uma lógica do sinthoma, e tem feito isso por meio de uma pesquisa profunda a respeito do “não todo” e da lógica do feminino. Concordo com a autora quando afirma que é preciso ter coragem para fazer essa tarefa, porque só trabalhando a partir do que aparece como descontínuo em relação a tudo o que havia antes do último ensino de Lacan que se pode avançar com a teoria. É bom considerar que Lacan estava num ponto de inacabamento do seu ensino quando morreu, e uma interrupção por morte não é uma conclusão.

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 132-137)