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A Vertente Real do Amor no Seminário da Ética

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 157-172)

4. SOBRE O AMOR E SUAS DIMENSÕES NA FILOSOFIA E NA PSICANÁLISE

4.6 A Vertente Real do Amor no Seminário da Ética

Se abordamos essa dimensão do amor na sequência dos outros dois registros, não foi para aludir a uma progressão ou a uma depuração do amor. A busca de Lacan pelas diferentes maneiras de situar o amor visou nos mostrar a falta de consistência do Outro em nossa época, buscou, assim, encontrar respostas para a questão do amor indo para além da resposta dada por Freud.

Lacan, em todo O seminário, livro 20, investiga qual a função de Deus no campo do pensamento e dá a esse ser da significância o lugar do Outro que ele designa com o A maiúsculo. O Outro, teorizado por Lacan ([1973-1972] 1985, p. 93) como lugar da fala, era em sua opinião uma maneira de laicizar, ou melhor, de exorcizar o velho e bom Deus. Lacan ([1972-1973] 1985, p. 62) diz que esse Outro como lugar da verdade é o único lugar que podemos dar ao termo ser divino, para chamá-lo pelo nome de Deus. “Deus é propriamente o

lugar onde se produz o Deus-ser – o deuzer – o dizer.” Por um nada, o dizer faz Deus ser, e, enquanto se disser alguma coisa, a hipótese de Deus estará lá no lugar do grande Outro (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 65).

Segundo Le Brun (2002, p. 9), um dos últimos debates teológicos sobre o amor puro aconteceu no final do século XVII, já que os ulteriores serão eclesiásticos, ou seja, de interesses específicos da Igreja. Em 1699, o Papa Inocêncio II condenou em sua encíclica 23 proposições tiradas do livro de Fenelon, chamado “A explicação das máximas dos santos”, publicado em 1697. Sua encíclica tinha o objetivo claro de barrar as ações de santos e místicos que davam o testemunho de um amor totalmente desinteressado, que era sentido como muito perigoso. O movimento “quietista” atribuído a Molinos e seus seguidores, por exemplo, traria importantes consequências para a doutrina do julgamento final, essencial ao cristianismo. A posição de Ágape é a de um amor puro, cujos critérios de validade seriam uma perfeita indiferença à recompensa, assim como a aceitação e até mesmo a espera da perda de seu objeto (LE BRUN, 2002, p. 26). Esse amor que coloca seu gozo na ruína de todo gozo põe em questão a ideia de retribuição do Deus, e com isso a perspectiva do julgamento final é anulada. Esse tipo de amor é tão adverso ao poder da Igreja sobre os homens que esta corre o risco de desmoronar, já que nada pode ser demandado dela.

Lacan se lembra dos cátaros que, ao que tudo indica, eram bons cristãos e foram dizimados com a Reforma. “Eles tinham uma ideia da salvação que levava a sério a mensagem do cristianismo o que fez com que discordassem do que dizia a igreja. Isso os levou para além do limite das leis da Igreja, em direção à verdadeira palavra de Deus.” (LACAN, [1959-1960] 1997, p. 263).

De acordo com Le Brun (2002, p. 12), a teoria platônica de um amor puro foi reconduzida nas obras de Kant, Schopenhauer, Sacher-Masoch, Freud e Lacan. O autor lembra que Kant opera uma verdadeira passagem da teologia à filosofia nos textos “Fundamentação da metafísica dos costumes” e “Crítica da razão prática.” Sua análise se estende a Schopenhauer no livro “O mundo como vontade e representação”, no qual o autor restabelece as relações com uma tradição que, a partir da querela do amor puro e a obra de Jansenius Gandavensis Cornelius, remonta a Antiguidade cristã.

No começo do século XX, o abade Pierre Rousselot consagra uma síntese no livro “Problema do amor na idade média” que, apesar ou por causa de suas características sistemáticas, clareou os debates modernos sobre a pureza do amor. As contribuições do protestante Anders Nygren, com seu livro “Eros e Ágape”, e a elaboração apresentada por Henri Bremond na “Metafísica dos santos”, aparecem de alguma forma no livro de Denis

Rougmont, intitulado “O amor e o Ocidente.” Em todos eles encontramos uma tentativa de síntese teórica, sempre revelando um paradoxo constitutivo do amor puro, pois a teoria não é o resultado de uma operação intelectual. A teoria é ela mesma uma das formas de uma experiência (LE BRUN, 2002, p. 26).

Lacan ([1960-1961] 1997, p. 23, p. 140) se refere ao livro “Eros e Ágape” de Anders Nygrem, publicado em Lund na Suécia em 1930, como sendo um dos importantes estudos cristãos para entender as faces do amor divino. Lacan trabalha com outros autores tais como René Nelli e os acima citados ao longo dos seminários 8, 9 e 20. Entretanto, se em 1960-1961 Lacan se referencia a eles como se nos recomendasse a leitura, em O seminário, livro 20, o mesmo Lacan ([1972-1973] 1985, p. 102) os desdenha dizendo que “o cristianismo acabou por inventar um Deus tal, que é ele quem goza.”

Le Brun (2002, p. 305) diz que Kant, Freud e Lacan representam as três marcas essenciais rumo à desteologização, ou seja, a laicização do amor puro, de maneira que a filosofia e a psicanálise sempre buscaram se desfazer da influência religiosa que cerca a questão do amor depois do nascimento do cristianismo. Lacan ([1972-1973] 1985, p. 55) nos permite interpretar e analisar o amor através de uma série de figuras, tais como a transferência, o gozo, o desejo da Coisa e o Outro. Tomaremos os seminários “A Ética da psicanálise”, “A Transferência” e o “Mais ainda” para abordar essas figuras, buscando responder a questão que nos interessa: um amor “puro” totalmente desinteressado é pensável? Qual justificação teórica pode ser dada a esse amor já que, para Lacan ([1959-1960] 1992, p. 235), a ética da psicanálise se choca com uma posição pastoral?

O ponto de partida desse seminário sobre a ética da psicanálise é a reflexão sobre a felicidade e o prazer, destrinchando a maneira como essa reflexão já tinha sido elaborada pelos moralistas antigos e modernos. Se Lacan ([1959-1960] 1991, p. 15-35) adota esta problemática clássica, é para apresentar uma torção completa na perspectiva a partir do que encontra de revolucionário no texto de Freud O mal estar na civilização, a propósito das diferenças operadas no conceito de felicidade e prazer de Aristóteles em sua Ética a

Nicômaco. A permanência através dos séculos de um interesse sobre o problema do amor fez Lacan encontrar aí algo da estrutura, dando-lhe oportunidade de teorizar sobre a questão do gozo, conceito que tomará importância capital no seu ensino.

A teorização sobre o campo do gozo está estreitamente ligada à reflexão sobre “A Coisa”, mais precisamente sobre o termo alemão das Ding. Na aula de 9 de dezembro de 1959, Lacan comenta a oposição freudiana entre o princípio do prazer e o princípio da realidade introduzindo o termo das Ding, mas retoma o assunto na aula de 16 de dezembro,

assim fazendo ao longo de todo o ano de 1960. O alemão das Ding lhe parece melhor que a tradução em francês la Chose, que permite dissipar as ambiguidades que o termo das Ding, em oposição a die Sache, contém. Le Brun (2002) observa que dificuldades semelhantes são encontradas quando se traduz em francês a res agostiniana, e não é por acaso que é dessa res que Lacan desenvolveu das Ding. Lacan ([1959-1960] 1991, p. 61) distingue Sache como sendo um produto da indústria ou da ação humana enquanto governada pela linguagem, coisas que estão sempre ao alcance de serem explicitadas, de maneira que Sache e Wort estão ligados, formando um par, enquanto “Das Ding situa-se em outro lugar.”

Uma das ocasiões explicitadas pelo próprio Lacan ([1959-1960] 1991, p. 71) da introdução de das Ding em seu ensino foi sua leitura do “Projeto para uma psicologia

científica”, escrito por Freud em 1895, quando ele retoma a questão freudiana do “mais além do princípio do prazer.”

De acordo com Le Brun (2002, p. 309), o termo das Ding aparece no Projeto cinco vezes, a propósito da relação entre a percepção e o desejo. Em uma destas passagens é um julgamento sem objetivo prático que é colocado sobre o outro – o próximo, uma experiência na qual alguma coisa caracteriza a alteridade do outro enquanto tal, alguma coisa que faz parte do outro, mas que não é nomeável e que no texto trata-se do que escapa ao julgamento.

Das Ding faz parte da estrutura, mas consiste em uma pura exterioridade no interior do sujeito, nas percepções em ligações com o objeto desejado uma fração é “não assimilável.” Para aludir a isso, Lacan ([1959-1960] 1991, p. 45) retoma o que Freud insiste quando trata do grito. O grito é este “exterior-íntimo” do sujeito que toma lugar da Coisa, que a associação de um som com uma percepção confere sua característica ao objeto, enquanto que sem isso nós não teríamos nenhuma noção clara. “O grito .[...] cumpre a função de descarga e desempenha um papel de uma ponte no nível do qual algo do que ocorre possa ser pego e identificado na consciência do sujeito.” (LACAN, [1959-1960] 1991, p. 45).

Há duas influências manifestas segundo a qual se operou a introdução por Lacan da noção de das Ding. Uma delas foi a sua leitura atenta e próxima no tempo da Conferência de Heidegger intitulada na tradução francesa como La chose, a qual ele faz alusão em 27 de janeiro de 1960. O fato de essa tradução ter aparecido um ano antes do seminário sobre a ética e as numerosas aproximações que se pode fazer entre o texto de Heidegger e os desenvolvimentos de Lacan, com citações, às vezes literais, nos mostram o quanto está aí uma fonte direta de inspiração para esse seminário. A outra influência foi a da filosofia transcendental de Kant, já que o seminário da ética antecede dois anos a redação de “Kant com Sade”, que também gira em torno de das Ding.

Bass (2001, p. 42) faz uma comparação entre a teoria kantiana e a teoria lacaniana visando equivaler dois pontos: o primeiro diz respeito ao incondicionado absoluto de Kant, que é Deus e a imortalidade da alma, equivalente ao incondicionado absoluto lacaniano, que é

das Ding, a Coisa; e o segundo é a equivalência entre a faculdade de conhecer kantiana e a faculdade de desejar, que é o desejo em Lacan, pois além do desejo, enquanto desejo articulado a um objeto desejado, há a Coisa, das Ding. Lacan ([1959-1960] 1991, p. 131) reconhece que das Ding não é completamente elucidado, embora lhe sirva para abordar o gozo do Outro.

Para além do princípio do prazer, delineia-se o Gute, das Ding, introduzindo, no nível do inconsciente o que deveria forçar-nos a recolocar a questão propriamente kantiana da causa noumenon. Das Ding apresenta-se ao nível da experiência inconsciente como aquilo que desde logo constitui a lei. Trata-se de uma lei do capricho, arbitrária de oráculo também, uma lei de signos em que o sujeito não está garantido por nada em relação a que ele não tem nenhuma Sicherung, para empregar ainda um termo kantiano. (LACAN, [1959-1960] 1991, p. 93).

O encaminhamento de Lacan visa deixar claro que das Ding, a Coisa, é a pura falta que ocupa na teoria kantiana o lugar do “incondicionado absoluto”, impossível de se conhecer, sendo somente uma ideia que se pode pensar. De maneira perfeitamente homóloga, Lacan (1963, p. 785) diz da Coisa que ela está articulada no desejo, mas que ela não é articulável nele. O paradoxo é apenas aparente: significa que embora o desejo seja sustentado pela Coisa, ele não tem como objeto a Coisa.

Com esse das Ding, a única questão é esta: a perda é anterior ao que é perdido, pois se há o desejo, e se ele faz todos os desvios do processo substitutivo da metonímia do significante, não é em virtude da perda de qualquer origem que seja, mas justamente porque a perda é ela própria a origem. Portanto, não há nada anterior a das Ding, na medida em que este é a própria perda, só o engodo das aparências do fantasma e do mito.

Sabemos que Lacan tirou muito da conferência de Heidegger, em particular tudo o que diz respeito à etimologia de das Ding e de res, de chose, bem como às reflexões sobre a função do vaso naquilo que contém o vazio. De acordo com Bass (2001, p. 49), a designação enigmática de objeto a teria vindo a Lacan de seu encontro com o a priori kantiano. O autor explica que a queda do “priori” para deixar somente o “a” é explicável, já que Lacan sempre segue os filósofos (como seguiu Heidegger e Kant na abordagem da Coisa) para, de propósito, interpretá-los a sua maneira, se colocando “extimo” à filosofia, embora sua pesquisa proceda disso exatamente.

Segundo Lacan ([1959-1960] 1991, p. 103), está excluído do campo da Coisa tudo que é da ordem da imagem como da ordem do afeto. Lacan ([1959-1960] 1991, p. 103) nota que o segundo mandamento do decálogo “exclui formalmente não apenas todo o culto, mas toda a imagem, toda representação” para “mostrar que o que está em questão encontra-se numa relação totalmente particular com a afeição humana em seu conjunto.” Lacan ([1959-1960] 1991, p. 128-129) aborda sobre o caráter enganador e confuso dos sentimentos na abordagem do real, o que nos leva sempre para algo da ordem do impasse.

Com esse campo que chamo de campo do das Ding, somos projetados para algo que está muito além do âmbito da afetividade, movediço, confuso, mal discernido por falta de organização suficiente de seu registro – algo de muito mais sensível. (LACAN, [1959-1960] 1991, p. 130).

Este é um campo que está além de tudo que pode ser designado como psicologia, para retomar uma noção que por várias vezes Lacan opôs à ética. Não é somente com a Coisa que é realizado um tipo de sacrifício do afeto como também do pensamento conceitual. Fora de todo sacrifício possível, trata-se antes de um processo de purificação, segundo a metáfora da pureza que reenvia ao mesmo tempo à heresia catara. Bass (2001, p. 51) diz que Lacan quase escreveu sua “Crítica do desejo puro” no diálogo que estabeleceu com Kant e Sade. Se seguirmos a fórmula de Kant e excluirmos a referência de qualquer objeto, eliminando da moral todo sentimento e anulando completamente o aspecto da ternura, o mundo sadista é concebível (LACAN, [1959-1960] 1991, p. 101). Lacan ([1959-1960] 1991, p. 98) nos alerta para o caráter insensato deste radicalismo que chega a um paradoxo, em que, no final, somos levados às mais extremadas consequências.

Lacan ([1959-1960] 1991, p. 155-156), tributário da leitura do livro “O amor e o

Ocidente”, de Denis de Rougement, e do “Livro dos dois princípios”, de René Nelli, elabora por acaso os sistemas de um amor puro, já que para o catarismo a “prática da perfeição consistia essencialmente .[...] em visar atingir a morte no mais avançado estado de desprendimento, sinal de reintegração num mundo adâmico caracterizado pela pureza e pela luz.”

Aliás, Lacan ([1959-1960] 1991, p. 324), de maneira explícita, remarcava que o herói da tragédia, longe de ser sem paixão, passa por todas as paixões e se sustentam aí inteiramente, de maneira que, pode-se dizer tal como Antígona, o puro não conhece nem temor nem piedade (LACAN, [1959-1960] 1991, p. 312).

Para Lacan ([1959-1960] 1991, p. 336), Antígona seria a imagem da caridade se conferíssemos à palavra caridade uma dimensão bruta. O apoio que Antígona recebe de Lacan ([1959-1960] 1991, p. 342) acerca de uma teoria do “desejo puro” como “puro desejo de morte como tal” coloca, no primeiro momento, desejo e gozo em um mesmo patamar.

Utilizando-se da “Crítica da razão prática” de Kant, Lacan ([1959-1960] 1991, p. 102) mostrou o papel discriminante da dor no campo da Coisa, fato que justifica o lugar que o sacrifício tinha para o místico do século XVII. “

Kant admite um correlato sentimental da lei moral em sua pureza que é a dor, e em suma Kant tem a mesma opinião de Sade, pois para atingir Das Ding para abrir as comportas do desejo Sade nos mostra o horizonte que é essencialmente a dor, a dor de outrem e igualmente a própria dor do sujeito, pois, são, no caso, apenas uma só e mesma coisa. O extremo prazer, na medida em que consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo. (LACAN, 1959-1960/1991, p. 102)

É possível compreender porque Lacan evoca Kant e Sade a propósito do sacrifício. Na fantasia sadiana, tal como a define Lacan ([1963] 1998, p. 790), a divisão do sujeito “não exige ser reunida num só corpo.” É por isso que o “cálculo” do sujeito sadiano consiste, para cumprir a Lei do Outro (a vontade de gozo), em reduzir-se a ser somente o agente executor da Lei, o objeto-causa-do-desejo (objeto a), transferindo para a vítima os efeitos dessa submissão à Lei. O sacrifício da vítima é o que permitiria ao sujeito sua identificação à Lei. Mas esse cálculo é ainda um engodo, pois como nos mostra Lacan, comentando a passagem de “A

filosofia na alcova”, o acesso ao gozo resta, apesar de tudo, proibido ao sujeito. De maneira análoga, o sujeito kantiano, para cumprir a lei moral racional, só pode transferir sobre seu eu empírico todos os sacrifícios que esse eu deveria efetivamente padecer se a lei for cumprida. Eis porque Lacan ([1963] 1998, p. 776-777) pode dizer que Sade é a verdade de Kant, porque, tanto em um como em outro, a submissão à Lei comanda o sacrifício do objeto patológico, seja, com efeito, “tudo isso que é objeto do amor em sua ternura humana.” (LACAN, [1964] 1985, p. 260).

Lacan ([1959-1960] 1991, p. 156) afirma, então, que a absoluta alteridade da Coisa toma a forma de um insuportável extremo, e que o mal pode estar na Coisa, dado que ela não é o significado nem a matéria da obra, mas está no âmago do mito da criação, sem nenhuma significação prévia. Lacan ([1959-1960] 1991, p. 90) nos lembra que o passo dado por Freud no princípio do prazer é o de mostrar-nos que não há Bem Supremo – que o Bem Supremo é

das Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem. Para além do princípio do prazer, delineia-se o Gute, das Ding, introduzindo, no nível do

inconsciente, o que deveria forçar-nos a recolocar a questão propriamente kantiana da causa

noumenon.

Só se pode relacionar com o objeto que vem de das Ding através da fantasia e do sintoma, e “é por meio disso que temos a indicação do que, no sujeito, marca, para sempre, sua relação com das Ding como mau – que ele não pode, no entanto, formular que seja mau de outra maneira, que não seja pelo sintoma.” (LACAN, [1959-1960] 1991, p. 95).

Lacan ([1959-1960] 1991, p. 118) relembra então da tradição luteriana que ele interpreta como sendo a da descoberta da derrelição do homem, caído no mundo e abandonado como um dejeto. Lutero publica “De servo arbítrio” para acentuar o caráter radicalmente mau da relação que o homem entretém com o homem, e o que encontra no âmago de seu destino é esse Ding, essa causa. Lacan ([1959-1960] 1997, p. 123) inventa um nome baseando-se em Kant para dizer dessa causa: causa pathomenon que é a causa da paixão humana mais fundamental.

Lacan ([1959-1960] 1991, p. 156) acrescenta que o próprio Lutero escreve que “o ódio eterno de Deus contra os homens, não apenas dirigido contra as fraquezas e contra as obras de uma livre vontade, é um ódio que existia mesmo antes que o mundo fosse criado”, revelando a correlação

Que há entre uma certa incidência da lei como tal e uma certa concepção de das

Ding como sendo radical .[...] exatamente aquilo com que Freud lida quando a questão que ele coloca sobre o Pai o conduz a nos mostrar nele o tirano da horda, aquele contra o qual o crime primitivo foi destinado e introduziu, por isso mesmo, a ordem, a essência e o fundamento da lei. (LACAN, [1959-1960] 1991, p. 156). De acordo com Le Brun (2002, p. 312), a relação entre a teologia luterana e as iluminações de Jakob Boehme permite a Lacan se distanciar de uma interpretação inocente da maldade divina pela libertinagem daqueles que a sustentam, e passa a evocar o Ser-supremo- em-maldade de Sade, ser este que o marquês não deixava de ligar a um Deus, inquietante e cruel.

A propósito de Lutero, Lacan ([1959-1960] 1991, p. 364) falava de “derrelição”, que se tratava do “que Freud falando da angústia designou como .[...]”‘hilflosigkeit’”, a desolação, onde o homem, nessa relação consigo mesmo, que é a própria morte, .[...] não deve esperar ajuda de ninguém.” Essa absoluta “derrelição” assinala a abordagem do campo da Coisa, porque se trata aqui de um exílio onde tudo é paradoxo ético. As numerosas alusões em O

do princípio do prazer”, devem ser colocadas em relação com esta invenção ou esta promoção da Coisa no ensino de Lacan, pois dão caráter particular à Ética da psicanálise.

Lacan (1959-1960/1991, p. 69) diz que a Coisa designa o que é por natureza “estranho e podendo mesmo ser hostil num dado momento, levado para um primeiro exterior.”. Se a Coisa tem relação com o nada, é preciso definir o que vem a ser este nada e, por isso, Lacan ([1959-1960] 1991, p. 82) se lembra que Mestre Eckhart91 emprega Ding para falar da alma, que é para ele a maior das coisas. Mestre Eckhart não emprega o termo Sache”, distinguindo bem os diferentes sentidos de “coisas” quando se confrontavam com a natureza do amor

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 157-172)