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Historia e Verdade Paul Ricoeur

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Academic year: 2021

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HISTóRIA E VERDADE

PAUL RICOEUR

PAUL RicOEUR, professor de Filo­ sofia na Faculdade de Letras de Paris, foi um estudioso de GABRIEL MARCEL JASPERS e HusSERL e, presentemente, é um ,dos mais autorizados intérpretes da nossa estrutura cultural e do entendi ... m·ento que o homem moderno possui da própria vida. Ao longo de mui­ tos anos de labor constante e tendo publicado os seus resultados em revis_. tas como Esprit e a Reuue lnternatio_. nale de Philosophie, o autor reconhe ... ceu o relativo encadeamento dessa obra dispersa e resolveu reuni-la em livro a que deu o título de História e Verdade,

· que foi editado em 1955. Oúze anos

depois, aumentou a primeira edição com seis novos ensaios e fêz algumas alterações na ordem de apresentação. Foi esta nova edição que a Editôra Forense traduziu e apresenta agora ao público brasileiro.

Segundo pa1avras do autor, o rea� grupamento dos ensaios foi feito em tôrno de dois pólos: o pólo metodo­ lógico e o ético. A primeira parte con� têm os artigos consagrados à signif!� cação da atividade histórica e vão desde os que se ocupam do ofício d� historiador no seu sentido estrito, com

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Primeira edição brasileira: 1968 traduzido de HISTOIRE ET VÉRITÉ Copyright © 1955, by Editions du Seuil

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Tradução de: F. A. RmEIRO

Reservados os direitos de propriedade desta tradução pela COMPANHIA EDITõRA FORENSE mo Braga, 299 - 1.0-2.0 - Rio de Janeiro de São Francisco, 20 -Loja - São Paulo

\ Impresso no Brasil Printed in Brazil .. I

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PREFACIO DA PRIMEIRA EDIÇAO (1955)

Todos os estudos aqui reunidos são escritos de ocasião: não procedem do desenvolvimento interno de uma reflexão que do­ mina os temas e, sobretudo, o respectivo encadeamento; têm todos por origem determinado acontecimento:· uma discussão em grupo de trabalho, um colóquio ou congresso, um aniversário comemorado na dor ou na alegria. E todavia êsses textos de­ sarmônicos I a mim me parecem suscetíveis de certa ordem,

graças ao parentesco de ritmo e 'tema, e graças, sobretudo, a certa consonância involuntária cuja .... regra procuro aqui desco­ brir, criticando-me a mim mesmo.

Foi possível reagrupar êstes textos em tôrno de dois pólos: um pÓlo metodológico e um pólo ético (no sentido mais amplo da palavra). Contém a primeira parte os artigos consagrados à significação da atividade histórica e que se escalonam desde o ofício de historiador no sentido estrito, com sua exigência de objetividade. - até o problema filosófico-teológico ae uma sig­ nificação total ou final da história. Os estudos da segunda parte vinculam-se àquilo que eu denominaria uma crítica çla civiliza­ ção; procuro nêle um reexame reflexivo de certas propulsões civilizadoras de nossa época; orientam-se todos êsses textos para uma pedagogia política cujo sentido determino nas páginas con­ sagradas a Emmanuel Mounier.

Se foi todavia possível dividir em dois grupos êsses diversos ensaios, o que mais importa a meu ver é, antes de mais nada, aquilo que chamei de início o parentesco de ritmo; um ritmo

1 Deixamos de lad.o três espécies de textos: em primeiro lugar os estudos de caráter filosófico muito técnico, um dos quais, aliás, se refere diretamente ao tema central desta coletânea: Husserl e o sentido da História (Revue de Métaphysique et de Morale, 1950); em seguida, as crônicas filosóficas que apresentam de modo manifesto o caráter de c!"ítica de livros ou obras contemporâneas; e por fim, os ensaios rela­ CiOnados com minha Philosoplzie de la volonté, e particularmente com o preparo do segundo tomo: Finitude et Culpabilité.

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umco mantém com efeito unidas as duas preocupações acima evocadas e cuja proporção apenas se inverte na primeira e na segunda partes. Recuso-me energicamente a dissociar a eluci­ dação dos conceitos diretores segundo os quais procuramos

pensar na linha da verdade nossa inserção na história, da preo­ cupação de intervir ativamente na crise de nossa civilização, por um testemunho na linha da verdade, da fôrça e da eficácia

da reflexão. Nada mais estranho à (/maneira" dêstes ensaios que a alegada oposição entre o pensamento comprometido e o pensamento desembaraçado; cada qual tomado isoladamente, e todos, tomados em conjunto, desejam êstes ensaios dar teste­ munho contra a futilidade de tal querela; seria preciso riscar essas duas expressões e riscá-la ao mesmo tempo; a oposição, não tão em moda, porém mais radical, introduzida por Marx entre o pensamento que apenas observa e contempla e uma

praxis que transforma o mundo, parece-me deva ser repudiada ainda com mais vigor. Como se procura exprimir de muitas ma­ neiras em diversos dêstes textos, a própria aparição de um pen­ samento contemplativo à maneira de Parmênides, de Platão e do neoplatonismo (para tormarmos um exemplo extremo), trans­ formou o mundo dando-nos, com a denegação das aparências sensíveis e das manipulações, a matemática euclidiana, em se­ guida a física matemática, e, por intermédio da medida e do cálculo, o mundo das máquinas e a civilização técnica.

A unidade de ritmo à qual faço alusão aqui parece bastante explicitada no ensaio intitulado Trabalho e Palavra. Busco na própria operação do dizer esta alternância de contato e afasta­

mento que torno a encontrar em todo comportamento respon­ sável dum "intelectual" em face de qualquer problema. Eis por que a reflexão de cunho mais metodológico dos três pri­ meios ensaios é inseparável da percepção ético-política das rela­ ções humanas para a qual tendem os estudos da segunda parte; em sentido inverso, a maneira filosófica de me achar presente à minha época parece-me vinculada a uma capacidade de rein­ terpretação das intenções remotas e dos pressupostos radicais de ordem cultural subjacentes aquilo que há pouco eu denomi­ n-awi propulsões civilizadoras de nossa época. Assim a reflexão sôbre o acontecimento me recambia a essa pesquisa das signifi­ cações e encadeamentos nacionais que ocupa os primeiros textos. em outras palavras, é preciso não ter vergonha de ser l(intelec­ lúal", como o Socrates de Valéry em Eupalinos, votado ao pesar

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de nada haver jeito com suas próprias mãos. Creio na eficiên­ cia da reflexão, pois creio que a grandeza do homem está na dia­ lética do trabalho e da palavra; o dizer e o fazer, o significar e

0 agir estão por demais misturados para que se possa estabelecer oposição profunda e duradoura entre theoria e praxis. A palavra é meu reino e disso não me envergonho; ou, melhor, envergo­ nho-me na medida em que minha palavra participa da culpabi­ lidade de uma sociedade injusta, que explora o trabalho; não me envergonho originàriamente e, sim, tendo em vista o seu destino. - Creio, na qualidade de universitário, na eficácia da

palcvra docente; como alguém que analisa a história da filoso­ fia, creio na fôrça esclarecedora, mesmo para uma política, du­ mr palavra consagrada à elaboração de nossa memória jilosó­ ji< !; como membro do grupo Esprit, creio na eficácia da palavra

c re retoma de modo reflexivo os temas geradores de uma civili­

, JÇão em marcha; como ouvinte da pregação cristã, creio que a Jalavra pode transformar o "coração", isto é, o núcleo de onde brotam nossas preferências e nossas atitudes decisivas. De certo modo, todos êstes ensaios são a glorificação da palavra que re­ flete com eficácia e que age mediante reflexão.

O título dado a êstes ensaios parece ambicioso, se se espe­ ;·asse uma abordagem sistemática dessas duas noções capitais:

/erdade e História. A êle, entretanto, me apeguei, porque per­ <ebi ali não tanto um programa a ser aprofundado pelo pensa­ ·Jento, quanto uma intenção e um sentido de pesquisa; êste :onjugado verbal - história e verdade - acompanha todos êsses , ··tudos, a deslocar lentamente seu próprio sentido e a

erique-lo de contínuo com novas significações.

História e verdade querem dizer antes de tudo: aquela his­ - ·.ia que ocorreu e que interessa ao ofício de historiador, pres­ ''�r-se-á a um conhecimento da linha da verdade, de acôrdo com

'" postulados e regras do pensamento objetivo postos em junção

.. ns ciências? Fizemos questão de colocar no princípio da cole� ·!ea o texto em que mais se patenteia essa questão critica; ,<.?sejou�se apoiar todos os outros ensaios a essa muralha de rigor ,. de modéstia da disciplina histórica; a medida "de objetividade"

· :: me ensina o historiador acompanha-me como advertência

c; ica no arriscado empreendimento das interpretações globais

da '1istória.

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É portanto em relação a essa verdade limitada da hist

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a dos historiadores que se situa �a t�refa de �ompor umc: hzstona filosófica da filosofia. Já no termmo do pmn_e1ro ens�w _mostro como essa iniciativa acompanha a do hzstorzador proprzamente dito· a história da filosofia surge-nos como uma repetição da hist

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ria dos historiadores, guiada por uma tomada de consciên­ cia filosófica; eis por que ela pertence à filosofia e não à his­ tória. É essa problemática peculiar à procura da verdade na história da filosofia que ocupa por sua vez todo o segundo estu­ do, 0 estudo ce/!lral, a meu ver. Ali se caracteriza a verdade principalmente pela paixão da unidade, em contraste com o es­ quartejamento de fato que a filosofia sofre em muitas filosofias; mas essa paixão seria inútil se não conseguisse fazer surgir uma série de determinações provisórias tanto da verdade quanto da própria história; o método das aproximações sucessivas que aqui se pratica permite uma redução conjunta das noções de verdade e de história, até o desdobramento em profundidade dos planos de significação, a partir dessa espécie de proscénio constituída pela objetividade no ato de historiar. (Esse método de redução de sentido é igualmente pôsto em prática em Verdade e Mentira

e em Verdadeira e Falsa Angústia.)

Assim a verdade da história da filosofia surge ali como um princípio de possibilidade da pesquisa histórica em filosofia, prin­ cípio que se perde sem cessar e se recupera à medida que se transforma a própria significação da história.

Termina êsse ensaio por um tema difícil que anuncia o

Cristianismo e o Sentido da História e que canta nestas palavras tôdas as vêzes que me entrego à verdade do outro: "Suponho que êle esteja com a verdade". Com a verdade: essa relação de dependência, de inclusão que assimila tôda figura histórica a um contorno nimbado de luz, só é acessível a um sentido regulador, capaz de purificar o ceticismo historizante, um sentimento que é razão mas não saber: o sentimento de que tôdas as filosofias se acham finalmente na mesma verdade do ser. Ouso denominar esperança êsse sentimento; é a êle que coloco sob o signo da pregação cristã em ensaio ulterior; é também a êle que deno­ mino afirmação originária em Verdadeira e Falsa Angústia

(quando tomo de empréstimo a M. Nabert sua admirável ex­ pressão). Mas se a pregação cristã refere a esperança como um

éschaton que julga e completa a história sem pertencer-lhe, essa esperança de intenção escatológica causa impacto na reflexão

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filosófica sob a forma de um sentimento racional presente; recebo o "penhor da esperançd' quando percebo de maneira fugidia a consonância dos múltiplos sistemas filosóficos ainda que irredu­ tíveis a um único sistema coerente; é nesse sentido que faço meu o admirável teorema de Spinosa: "quanto maior nosso conheci­ mento das coisas singulares, tanto maior nosso conhecimento de Deus"; não ignoro ser a escatologia incuràvelmente mítica aos olhos da consciência filosófica do verdadeiro e que por sua vez tôda referência à racionalidade acabada do todo da história é aos olhos do pregador do último Dia queda e recaída numa culposa teologia natural; não ignoro ser difícil, senão impossível, superar essa mútua exclusão; entrevejo, não obstante, que é

possível converter em tensão viva essa mortal contràdição; viver filosàficamente a esperança cristã como razão reguladora da re­ flexão, pois a convicção da unidade final do verdadeiro é o próprio Espírito da Razão. Daí me vem talvez a coragem de praticar a história da filosofia sem filosofia da história, de res­ peitar indefinidamente a verdade alheia sem me tornar esquizo­ frênico. Ver-se-á mais longe o equivalente ético e político des­ tas fórmulas. Talvez seja essa a "verdade na caridade" de que fala São Paulo; talvez também seja essa a história da filosofia. Hesitei em manter o ensaio intitulado O Cristianismo e o Sentido da História, porque vai mais longe que os outros (à exceção talvez do estudo intitulado O "Socius" e o próximo) na direção de uma profissão de fé cristã precisa, e que dêsse modo rompe um certo pudor que me parece essencial ao diálogo filo­ sófico (faço alusão a tal pudor no fim de Verdadeira e falsa angústia a propósito do silêncio do homem religioso em face do sofrimento dos pequenos); mas a probidade exigia aqui que eu pusesse "cartas na mesa"; é jato que o sentido por mim atribuído ao meu mister de historiador da filosofia define-se por essa dupla vizinhança da disciplina crítica do historiador (simplesmente con­ siderado) que não sou e da profissão de um sentido escatólogico

que resulta de uma teologia da história a cuia elaboração não me considero qualificado e que, talvez, não o possa ser por falta de critérios. Não dissimulo qualquer das dificuldades que esta última vizinhança suscita. Não obstante, o rigor metodológico da história da filosofia não me parece enfraquecido por essa arti­ culação da racionalidade do mister de historiador com o mistério da escatologia; pois uma coisa é a motivação subjetiva de um mister e outra a estrutura metodológica que lhe assegura a

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nomia. O duplo ajuste pelo qual defino aqui a situação mediana ou intercalar da história da filosofia diz respeito apenas à econo­ mia espiritual do homem atormentado por seus problemas; essa dependência na linha da motivação espiritual não impede que a história da filosofia conquiste sua independência pela elabora­ ção de sua própria problemática e seu método próprio; dêsse segundo ponto de vista pode surgir outro sistema de ajustes, con-forme se depreende da curta nota sôbre a História da Filosofia e a Sociologia do Conhecimento que antecipa trabalhos futuros mais rigorosos; a história da filosofia, diz-se lá, constitui-se no espaço intermediário entre uma sociologia do conhecimento (que é a disciplina científica, e não filosófica), e uma filosofia da his­ tória (que é uma disciplina filosófica, e não histórica). IJ:ste sis­ tema de ajustes e intercalações, diferentemente daquele de que se tratou até o presente, não diz mais respeito à motivação sub­ jetiva do autor da história da filosofia, mas à arquitetônica e à disciplina do seu objeto. Isto basta para mostrar que uma disci­ plina pode ser dependente na economia espiritual do homem que a exerce e autônoma quanto ao seu problema e método.

Assim se destacam vivamente em conjunto as significações do conceito da história e do conceito da verdade. Sua dupla aventura não termina lá, porém. A história é a história aconte­ cida, que o historiador retoma na linha da verdade, isto é, da objetividade; mas é também a história em curso que sofremos e realizamos. Como a realizaríamos nós na linha verdade? A se­ gunda série de estudos opera esta mudança da frente do problema. Fiz questão de colocar à frente dessa segunda parte a ho­ menagem que outrora juntei às prestadas por meus companhei­ ros de Esprit a nosso amigo Emmanuel Mounier. Esta homena­ gem, recolocada em nôvo contexto torna-se a confissão de minha dívida. Essa maneira de vincular a reflexão filosófica aparente­ mente mais apartada da atualidade dos problemas vivos de nosso tempo, esta recusa em dissociar uma criteriologia da verdade de uma pedagogia política, êste gôsto de não separar o "despertar da pessoa" da "revolução comunitária", esta recusa em cair no preconceito antitecnicista a pretexto de inferioridade, essa des­ confiança em face do "purismo" e do catastrofismo, êsse "ti­ mismo trágico" enfim, tudo isto considero minha dívida a

Em-1 2

manuel Mounier. Minha nota própria é aquilo que dou nos ensaios seguintes.

O problema da verdade da história - não mais no sentido de um conhecimento verdadeiro da história ocorrida - mas no sentido de um cumprimento verdadeiro de minha tarefa de obreiro da história - atinge seu ponto culminante na questão da unidade fundamental do movimento histórico da civilização. Esta questão, faço com que de certo modo se volte sôbre si mesma em tôda a série de estudos a partir de Verdade e Men­ tira. Ora, ela é focalizada do ponto de vista daquilo que se po­ deria chamar uma história da cultura; e vê-se então o perceber, o agir, o saber ramificarem-se em atitudes que, cada qual por sua vez se supõem uma à outra, tentam absorver-se mUtuamente, excluem-se, rivalizam umas com as outras,· o movimento da civi­

lização aparece, então, como fenômeno de pluralização indefini­ da, compensada sem cessar pela emergência de instt2ncias e po­ t�ncias unificadoras, por exemplo, a teologia medieval, a política moderna. Ora, a questão brota como questão crítica num pro­ jeto de ucivilização do trabalho''; será possível reagrupar tôdas as potencialidades humanas em tôrno do pá/o do homem ope­ rário? E é então a dialética do dizer e do fazer que se explicita. A mesma questão exibe outra face quando nos acreditamos obri­ gados a escolher entre duas leituras das relações humanas; con­ forme a primeira, o outro é meu próximo despeito de qualquer mediação social e a intersubjetividade autêntica é um encontro sem qualquer critério imanente à história; conforme a segunda, o outro homem é uma função social, fruto precioso de tôdas as

mediações dolorosas de ordem econômica, política e cultural; e

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então uma nova dialética que se explícita, uma dialética das relações ((curtas" e das relações "longas", dos encontros de pes­ soa a pessoa e dos liames sociais consolidados em instituições, uma dialética do íntimo e do social. Enfim, a mesma questão nasce do debate entre a exigência profética - como se disse, não sem perigo de abuso - e a exig8ncia política; e vê-se surgir o debate entre.duas ueficácias'' históricas, uma eficácia violenta

e uma eficácia inerme, sem que nos sintamos no direito de excluir

uma em nome da outra.

No fundo essa questão de múltiplas faces, é aquilo mesmo diante de que me achava ainda há pouco a propósito da história da filosofia; então eu me perguntava se minha memória da Hu­ manidade - ou pelo menos êsse setor da memória pelo qual é

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responsável o historiador da filosofia - possula uma unidade sistemática, através da sucessão de "figuras" onde a filosofia morre e se transforma; agora eu me pergunto se êsse projeto de Humanidade a que chamamos nossa civilização tem uma uni­ dade sistemática, através da multidão das atitudes culturais que se desenvolve e a multidão dos vínculos inter-hunumos que en­ trecruza. Em resumo, essa questão é a da verdade da história e na história, abordada de cada vez como a dialética do Uno e do Múltiplo.

Mas ao passar do registro epistemológico ao registro ético, o problema da verdade e da história enriqueceu-se de múltiplos harmônicos.

Antes de mais nada, a questão da unidade, ao tornar-se uma questão prática - no sentido forte do vocábulo, em oposição a teorético - torna a cortar a questão da autoridade sob tôdas as suas formas. Não creio ter jamais cedi do ao denegrimento anarquizante da autoridade; tôdas as vêzes que surgiu o problema da autoridade, êle foi abordado positivamente; reconhece-se no fenômeno da autoridade uma função autêntica de instauração da ordem e unificação que compensam a dispersão em todos os sentidos das aptidões humanas. Mas a autoridade é a tentação, a armadilha das paixões do poder; a história da autoridade é en­ tão uma história onde grandeza e culpabilidade se encontram inextricàvelmente misturadas; a culpa vinculada ao exercício da autoridade ora se chama mentira, ora violência; mas é a mesma, conforme a tomemos em sua relação a conteúdos de afirmação feridos ou em sua relação aos homens esmagados pelos demônios do poder.

Em Verdade e Mentira, aborda-se o problema da mentira em função da busca de unidade pela qual se pode definir a Razão; e se é verdade que os demônios freqüentam de prefe­ rência os átrios dos deuses, é no âmago da Razão, no centro de seu desejo de unidade que nasce a mentira mais alta, a da uni­ dade presumida e pretendida; aqui consideramos a êsse respeito duas figuras históricas fundamentais: a "síntese clerical do ver­ dadeiro" e a ((síntese politica do verdadeiro". Mas estas unifi­ cações mentirosas do reino da verdade, que são também unida­ des violentas �m relação à vida dos homens e de seu direito ao êrro, não são sem dúvida senão modalidades particularmente visíveis duma culpabilidade histórica de mil cabeças; na verdade muitas análises da primeira parte se aclaram sob luz nova, se

as aproximarmos de tais visões sôbre a proximidade da verdade e da mentira, da verdade e da violência; assim, a unidade que recuso na história da filosofia, a unidade eclética ou a unidade dialética, participa do mesmo universo de culpa da violência clerical e da violência política.

Eis por que um ensaio aparentemente tão circunstancial -Gary Davis, ai de mim! - como O homem não violento e sua presença na história, tem ligação direta, por assim dizer, com o mais central dos temas desta coletânea; nesse artigo procurava eu compreender de que maneira obscura, indireta, descosida, o homem não violento age na história, quando dá testemunho, por um gesto presente, das metas longínquas dessa história, e quan­ do identifica os meios que usa aos fins que espera; Ora, essa presença do homem não violento na história atesta a meu ver quão rica ela é e que há muitas maneiras de exercer nela efi­ cácia; esta, entretanto, do "discípulo de Jeová", por exemplo, que se deixa fazer em postas antes de pegar em armas, aclara de súbito aos meus próprios olhos o sentido do meu próprio trabalho; o respeito da discontinuidade das "figuras" históricas da filosofia não seria uma forma de não-violência? E esta não­ -violência, em comunicação subterrânea com qualquer outra não-violência, acaso não se articula, por outro lado, como tam­ bém qualquer outra não-violência, com a violência inevitável que conduz a história mais clarividente, a dos Estados e das Igrejas, a dos poderios do dinheiro, da espada e da toga, para compor êste movimento de conjunto da história que nenhum saber con­ segue totalizar?

Falei de início da consonância {(involuntária" dêstes en­ saios. Por que adjetivo tão insólito? Designo dêsse modo uma estrutura de pensamento menos aparente que o ritmo que faz alternar a preocupação epistemológica e a preocupação ético-cul­ tural através de< todos êsses textos. A o reunir êsses textos, ob­ servo que, do simples ponto de vista literário, êles apresentam uma semelhança de composição que por certo não foi proposital; procuram todos, com maior ou menor felicidade, atingir certo ponto de tensão não resolvida; preocupam-se de um lado com um

�seja de reconciliação, seja na linha metodológica, seja na linha e�zco-cultural, e por outro lado estão munidos de forte descon­ fzança em face das soluções prematuras. Essa estrutura não pro-15

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•ur: wna espécie ·de dialética de síntese protelada. se. vt: u•• modo ainda mais claro nas oposições a dois

palavra, socius

-

próximo; violência pro­ não-violenta; história da filosofia - his­ Mas a mesma dialética anima as análises por sucessivas ou níveis sobrepostos: objetividade de - subjetividade do historiador - subjetividade real; em história da filosofia, ecletismo - pluralismo da luz do verdadeiro; em filosofia e em teologia da · .·· ' · · progresso - ambigüidade - ·esperança; angústia vital

. · :__ angústia psíquica angústia histórica angústia ética -angústiq metafísica, etc ...

Esse comportamento comum poderia não ser senão um pro­ cesso de exposição se não exprimisse diretamente, no plano retó­ rico, um comportamento da própria reflexão e se não traísse finalmente, ao mesmo tempo no plano da expressão literária e no plano do encadeamento reflexivo, aquilo que acima denomi­ nei o impacto 'filosófico da esperança. Uma simples observação · sôbre a composição formal nos conduz assim, de um só golpe,

ao essencial. ·

Não desejo retornar aqui às dificuldades de ordem propria­ mente metodológica suscitadas pela inserção na reflexão filosó­ fica de um momento escatológico; com referência desta vez an­ tes dos textos ·da segunda parte, estaremos talvez melhor arma­ - dos para .explicitar a função teórico-prática dêsse tema e para

precisar o sentido daquilo que denominei um sentimento racional regulador e purificador tanto do ceticismo quanto do fanatismo, do ceticismo que renuncia à procura do sentido, do fanatismo que o confere prematuramente.

Digo que o impacto filosófico da esperança é o próprio -comportamento da reflexão, que por sua vez se imprime no com­ portamento da composição; entendo dêsse modo que aquilo que

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escatológica denomina esperança se recupera refle-na própria espera de tôda síntese, no adiamento do de tôdas as dialéticas; o Oltimo Dia, para a filosofia, -

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o sonho de qualquer happy end no horizonte fan­ _:t nossos combates; é nesse sentido que 110 Reino de

v<•l!-8 ·•o•mpróximo"; é essa proximidade que mantém aberta a Na dimensão filosófica, que é a minha, essa idéia de aber­ tura apresenta: duas faces, uma face negativa e uma positiva.

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Dum lado, o conceito de 0/timo Dia-funciona como idéia-limite iw sentido kantiano, isto é, como limitação ativa da história fec - nomenal por um sentido total, apenas "pensado", embora não ''conhecido". 2 Esta fixação de um limite quebra a pretensão dos filósofos de declarar o sentido coerente de tudo quanto vai - _acontecer. Estou sempre dêste lado do Juízo Final; ao estabe­ ,_: · lecer o limite do 0/timo Dia, destituo-me de minha cátedra de

último. Assim, a última palavra não é dita- em lugar algum: sei ainda como concordam o Dizer e o Fazer, de que modo

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a verdade de percepção, a verdade científica, a ver­ ética, etc . • . . ; não sei de que modo Platão, Aristóteles,

Kant, Hegel estão na mesma verdade. É comodo, por-descer dessa função de idéia-limite até aquilo que deno­ comportamento da reflexão: a idéia-limite de fim da his­ tória protege "a descontinuidade" das visões singulares do mun­ do; mantém "circuitos" entre as diversas atitudes culturais e as diversas pulsações civilizadoras (o Dizer recambia ao Fazer e ao Dizer; a verdade de percepção recambia à verdade recambia à verdade ética, que recambia à verdade etc .... ); existem H circuitos" mas não uma '�hie-' não há infra-estrutura e supra-estrutura no movimento

da história: tudo pode ser considerado infra-estrutura ponto de vista. Para resumir numa palavra essa função �g<ltil•a da idéia escatológica, eu diria que ela é a categoria do

não,,

o impacto filosófico da esperança do Oltimo Dia não a esta destituição de nossa hybris racional. Ela é fonte '""'firmtzcã'n no próprio núcleo dessa espécie de agnosticismo '}nQU'ria de filosofia da história que transpira desta coletânea.

po·de;rio de afirmação é o que o último ensaio intitu-�'Verdad<,ira e Falsa Angústia tenta fazer emergir pelo pró­ de uma reflexão sôbre a emoção negativa por exce­ àngústia. Refletir, em verdade, sôbre a angústia, é, a ""'""'"· usar dela como se fôsse um detetar da afirma-'iHi'ná,ria que sempre já a venceu; os próprios graus da

a reflexão percorre, desde a angústia vital da con­ da morte, até a angústia metafísica -da radical au­ são tl)mbém os graus de uma espécie de vec·

sôbre a significação central da idéia de limite et Kant, Kantstudfen, t. 46, fase. 1.

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emência de existir que salta de cada ofensa. Se, pois, refletir é superar aquilo mesmo que se compreende, o benefício filosófico de uma meditação sôbre a liberdade da angústia é de tornar a colocar-nos no centro do problema da verdade da história.

Neste ensaio, a angústia histór�ca é antes de mais nada reposta em seu lugar no contexto de uma economia espiritual mais vasta; ela figura assim entre, de um lado, a contingência do vivente e a fragilidade do psíquico, e, do outro lado, a an­ gústia existencial da opção e da culpabilidade e a angústia mais radical ainda do Fundamento; tem por aguilhão próprio a possi­ bilidade tremenda de haver na história o puro resíduo - pelo menos em face de tôda filosofia da história - o negativo que aparentemenÍe não mediatiza nada e permanece rebelde a tôda inclusão na imanência de qualquer Lagos.

Da mesma forma, o ato pelo qual me fio num sentido oculto,-que nenhuma lógica da existência histórica esgota, parece por sua vez aparentar-se ao ato pelo qual quero viver, diante da iminência da minha morte, do ato pelo qual êsse querer viver se justifica numa tarefa ética e política, ao ato pelo qual a liber­ dade serve se arrepende e se regenera, ao ato pelo qual invoco com o côro trágico e o salmo hebraico a bondade da totalidade do ser. Este ato em cadeia, êste ato hierarquizado, é a afirma­ ção originária. A reflexão sôbre a angústia não é mais sàmente uma crítica de autenticidade; ela recupera, através da ameaça total, o poder de afirmar que constitui a reflexão e lhe concede

estabelecer um limite à sua própria hybris; esta reflexão recupe­ radora é justamente o impacto filosófico da esperança, não mais apenas na categoria do "ainda não'', mas na do "desde agora". E, entretanto, nenhum uentusiasmo" seria capaz de dissi­ mular a precariedade filosófica do momento escatológico: quer a filosofia "desmitologizá-lo", como bem parece ser de seu de­ ver? Ela deixa logo de receber dêsse momento escatológico a dupla virtude de limitação e de afirmação originária e recai nas racionalizações mentirosas e violentas. Aqui bem parece que a filosofia é protegida contra si mesma pela não-filosofia; 3 isto

ocasiona perplexidade quanto à possibilidade de identificar a filç­ sofia à procura de um "ponto de partida", parece que para ser independente na elaboração de seus problemas, de seus métodos,

3 Nas fronteiras da filosofia: Esprit, novembro de 1952. Sôbre o trágico: Esprit, março de 1953.

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.. , de seus enunciados, a filosofia deve ser dependente quanto às

suas fontes e sua motivação profunda. Isto não deixa de ser perturbador.

Nos confins do rigor filosófico, do qual nunca se pedirá o suficiente, na vizinhança das fontes não filosóficas, da filosofia, deve o pensamento, sem dúvida, contentar-se com a "tímida" esperança de que falo nas últimas linhas e que me parece pro­ longar a docta ignorantia que o pré-socrático X enófanes profes­ sou pela primeira vez, quando da passagem dos Iônios aos Eleatas.

Claro saber, nenhum homem teve nem terá jamais No tocante aos deuses e às coisas de que falo; · E se por fim acontece-lhe dizer algo perfeito

Não é que tenha chegado ao saber dessas coisas; a todos [porém ocorre alguma aparência.

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO (1964)

Os onze textos que compunham a primeira edição (1955) foram reeditados sem alteração. Não julguei possível nem au­ têntico retirar aquilo que envelhecera, o que foi desmentido pelos acontecimentos e o que conserva, dez anos mais tarde um inte­ rêsse atual ou um valor duradouro. Limitei-me a

d

crescentar seis textos que me pareceram suscetíveis de completar a cole­ tânea anterior sem lhe ferir o tema nem o tom.

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onservei a divisão primitiva dos textos em dois grupos; os dozs tztulos que lhes foram atribuídos - Verdade no Conheci­ mento da História, Verdade na Ação Histórica - designam as

duas relações, epistemológica e prática, que se verificam entre a verdade e a história.

A primeira parte -Verdade no Conhecimento da História - est_á mais nltidamente articulada em duas seções: crítica e

teol6gtc?; um só texto antigo - o "Socius" e o Próximo - foi tr�n�fendo da segunda parte para a primeira por causa de sua afzmdade com o tema teológico; dois textos novos foram

colo-4 DIELS, Die Fragmente du Vorsokratiker (XENOPH. B 34).

(10)

< .

i

i:

cados no fim de cada uma dessas duas seções (a mesma regra de composição aplicou-se na continuação da coletânea).

A segunda parte -Verdade na Ação Histórica -apresenta

à guisa de introdução o ensaio sôbre Emmanuel Mounier. A segunda seção se dedica às relações gerais entre Palavra e Praxis.

A terceira parte, a mais nova (foi aumentada com três textos), gira em tôrno dos enigmas do poder político para a reflexão filo­ sófica e para a ação no mundo da cultura. Quis dar na quarta seção uma idéia da filosofia implícita que anima êstes ensaios e que se desenvolve de maneira mais rigorosa e mais sistemática na continuação dos volumes de minha Filosofia da Vontade; um texto nôvo reforça essa ação e encerra o volume; denominei essa seção Poderio da Afirmação, em memória de Jean Nabert, de quem não cessei de me aproximar de dez anos para cá.

20

'

PRIMEIRA PARTE

VERDADE NO CONHECIMENTO DA HISTORIA

(11)

! -:

�:

I

!

I. PERSPECTIVAS CRITICAS

OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE EM HISTóRIA

O problema que se propõe é antes de tudo um problema de metodologia que permite retomar desde os fundamentos as questões pràpriamente pedagógicas de coordenação das discipli­ nas de ensino; mas atrás dêsse problema podemos surpreender e retomar filosàficamerite os interêsses mais importantes postos

em jôgo pelo conhecimento histórico. Vou buscar em Kant essa expressão interêsse: no momento de resolver as antinomias da

razão - entre as quais a da causalidade necessária e a da cau­ salidade livre - detém-se o filósofo a sopesar os interêsses lançados na balança por uma ou outra posição; trata-se, bem en­ tendido, de interêsses pràpriamente intelectuais ou, como diz Kant, "do interêsse da razão no conflito consigo mesma".

Precisamos proceder da mesma maneira com a aparente alternativa que nos é proposta; os interêsses diversos são figu­ rados por duas palavras: objetividade, subjetividade, expectati­ vas de qualidade diferente e direção diferente.

Esperamos da história uma certa objetividade, a objetivi­ dade que lhe é conveniente: é daí que devemos partir e não de outro têrmo. Ora, que esperamos nós sob tal título? Deve a objetividade ser aqui tomada em seu sentido epistemológico es,trito: é objetivo aquilo que o pensamento metódico elaborou, pos em ordem, compreendeu, e que por essa maneira pode fazer �om1-:re�nder: Isto é exato quanto às ciências físicas, quanto as ctenctas biOlógicas; também é exato quanto

à história. Espe­

ramos por conseguinte da história que ela proporcione ao

(12)

.�(cllls

SCICic:da�e:s: b.UDIÍI�t.aS O ácesso a essa dignidade da O\JJe• não quer dizer que essa objetividade seja .á da biologia: há tantos níveis de objetividade quantos ''\-�[C)C�'�

W:

n.'_:�t�� metódicos. Esperamos, portanto, que a história ....

uma nova província ao império variado da objetividade. 'tal expectativa envolve outra: esperamos do historiador

uma certa qualidade de subjetividade, não qualquer subjetivi­

dade mas uma subjetividade que seja precisamente apropriada

à o

b

jetividade que convém à história. Trata-se, pois, duma

subjetividade exigida,. exigida pela objetividade que se espera.

Pressentimos, por conseguinte, que existe uma subjetividade boa e uma subjetividade má, e esperamos que se faça uma separa­ ção entre a boa e a má subjetividade, pelo próprio exercício do mister historiador.

Não é tudo: sob o título de subjetividade, esperamos algo de mais grave do que a boa subjetividade do historiador; espe­ ramos que a história seja uma história dos àomens e que essa história dos homens ajude o leitor, instruído pela história dos historiadores, a edificar uma subjetividade de alta categoria, a subjetividade não só de mim mesmo, mas do homem. Mas êsse interêsse, essa expectativa de uma passagem pela história -de mim mesmo ao homem, não é mais exatamente epistemoló­ gica, mas propriamente filosófica: pois é exatamente uma subje­ tividade de reflexão que esperamos da leitura e da meditação

das obras do historiador; êsse interêsse já não mais diz respeito ao historiador que escreve a história, mas ao leitor - e singu­ larmente o leitor filosófico -, o leitor no qual se completa, por conta própria, todo livro, tôda obra.

.. . Tal será nosso itinerário: da objetividade da história à sub­

jetividade· do historiador; de uma e de outra à subjetividade .filOsófica (para empregar o têrmo neutro que não prejulga a

análise posterior).

O MISTER DE HISTORIADOR E A OBJETIVIDADE EM HISTÓRIA ·Esperamos da história uma certa objetividade, a objetivi­ clade que lhe convém: a maneira pela qual a história nasce e r!)nasce ,nô-lo atesta; procede ela sempre da retificação da arru­

mação oficial e pragmática feita pelas sociedades tradicionais çoin relação a seu passado. Tal retificação não é de espírito

24

d�ere!lte . da retifi�ação opera.da . pela ciência física em relação­ ao• pnmeiro arranJo das aparenc�as na percepção e nas cosmo­ logias que lhe são tributárias. '

Mas quem nos dirá o que seja essa objetividade específica? Aqui não compete ao filósofo dar lições ao historiador é sem­ pre o próprio exercício de um mister científico que

i

nstrui 0

fil

sofo. É-nos, pois, nece!sário ouv

n:

em primeiro lugar 0 his­

ton�dor, qua�d� !eflete sobre se? �ster, pois é êste que é a medida da obJetiVIdade que convem a história, como também é êste mister que constitui a medida da boa e da má subjetividade que tal objetividade exige.

. "Mister de historiador": sabemos todos que foi êsse o título JUntado por Marc Bloch à sua Apologie pour l'histoire. Esse

livro, inf�J!zmente inaca.ba?o, contém, não obstante, tudo 0 que

é necessano para consl!turr o ponto de partida de nossa refle­ xão. Os títulos dos capítulos metodológicos - observação his­ t

?

ric�, - crítica, - análise histórica - não nos permitem he­ Sitaçao: marcam as fases de uma objetividade a construir-se. . Devemos ser gratos a Marc Bloch por ter chamado "ob­

. �ervação" a redescoberla do passado pelo historiador: retoman­ d,o a expressão de Simiand, que chamava a história um "conbe­ : . Cimento pelos vestígios", mostra êle que essa aparente servidão

;1. �--:

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i

t

s

t

oriador .de não se achar jamais em face de seu objeto mas diante do respectivo vestígio, de modo algum des-,a. história como. ci�ncia: a apreensão do passado por vestlgws

?

ocumentais e uma observação no sentido pleno

palavra; pois observar não significa nunca registrar um fato ;•

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tR��ec�o;�n:

�s:tituir um acontecimento, ou antes uma série de

.';" .

1

ou uma situação, ou uma instituição com base

J

���

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o

c�ufument�s, é elaborar uma conduta de objetividmas .Irrecusável; pois essa reconstituição supõe que o

de de tipo seJa perscrutado, obrigado a falar; que o historiador

�:

t����:�

t

,o de seu se�tido, arr.emessando-lhe uma hipótese

\!:

e essa pesqmsa que stmultâneamente eleva o

(13)

cígio ·à dignidade de documento significativo, e eleva o próp;ib passado à dignidade de fato histórico. O documento não .éra

documento antes de o historiador cogitar de perscrutá-lo, .� as-. ' sim o historiador institui, se assim podemos dizer, o documento

como documento após sua intervenção e sua observação; simul­ tâneamente, institui êle os fatos históricos. Dêsse ponto de vista o fato histórico não difere fundamentalmente dos outros fatos científicos dos quais dizia G. Cangnilhem, em confrontação pa­

recida com a nossa: "fato científico é aquilo que a ciência produz ao construir-se. "Nisto se constitui precisamente a obje­ tividade: uma obra da atividade metódica. Eis por que essa atividade tem o belo nome de "crítica".

Também precisamos agradecer a Marc Bloch o ter chama­ do "análise", e não de início síntese, à atividade de historiador que procura explicar., Tem êle mil vêzes razão .ao negar que

seja a tarefa do historiador restabelecer as coisas "tais quais elas se passaram". Não é ambição da história fazer reviver,

; mas recompor, recot;tstituir, isto é, compor, constituir um encaM ' deamento retrospectivo. Consiste a objetividade da história pre­

.. cisam.ente na renúncia à coincidência, à revivescência, nessa aro·

·, bição de elaborar encadeamentos de fatos ao nível de

inteli-gência historiadora. E Marc Bloch sublinha quão grande é a parte de abstração suposta por tal trabalho; pois não existe

explicação sem constituição de "séries" de fenômenos: série

econômica, série política, série cultural, etc .... ; se com efeito J!ão se pudesse identificar, recmihecer uma mesma função nos

eventos outros, nada haveria passível de compreensão; só exis­

te história porque certos "fenômenos" continuam: "na medida em que sua determinação se opera do mais antigo para o mais recente, são os fenômenos humanos comandados antes de tudo por cadeias de fenômenos semelhantes; classificá-los por gêne­ . r os, é pôr a nu linhas de fôrça de capital eficácia" ( 7

4)

. Só

existe síntese histórica porque a história é antes de tudo uma análise, e não uma coincidência emocional. Como qualquer ou-'-tro sábio, ,procura o historiador relações entre os fenômenos

cuja distinção estabeleceu. Insistir-se-á quanto fôr necessário,

a partir dêsse ponto, sôbre a necessidade de compreender os

conjuntos, os liames orgânicos que superar tôda .causalidade ana­ lítica; opor-se-á,. portanto, na medida em que se tornar neces­ sário, o oompreender e o explicar. Não se pode entretanto fazer

26

distinção· a chave da metodologia histórica; como diz Marc

... ·

, . ":Bsse trabal�o_ de rec?mpo!iç�o só poderia vir depois da an��se. Melhor dma�os: ele nao e senão o prolongamento da ,anahse como sua razao de ser: Na análise primitiva, antes contemplada que observada, de que modo se teria podido dis-cernir as ligações, se nada era distinto?" (78).

Não

�'

pois, a compreensão o oposto da explicação. É quanto mmto seu complemento e contrapartida. Traz a marca : ,da análi�e ---;- das análises - que a tornaram possível. E con­

serya ate o fuu ess� marca: a consciência de época que 0 his­

tonador, em suas s mteses mais vastas, tentará reconstituir nu­ . tre-se de tôdas as interações, de tôdas as relações em tod�s os . se�tidos que o historiador conquistou pela anáiis�. O fato his­

�ónc� total, o. "passa�o integral", é pràpriamente uma Idéia, 1�to e, no. sentido_ kantiano, o limite jamais atingido de um

es-forço �e mtegraçao sempre mais vasto, sempre mais complexo.

A noçao de "passado integral" é a idéia reguladora dêsse es­

fôrç�. Não ,é algo de imediato: nada mais mediato que uma totaJ!dade: e � produto de uma "concepção ordenadora" que

exprl!ll� .o esforço mais alto de estabelecimento duma ordem h1ston.a P?r ��rte do historiador; é, para usar outra lingua­

(mrus Científica), o frpto da "teoria" no sentido em que fala de "teoria física". '

�a mes�a, f�rma nen,huma "concepção ordenadora" a bar­ . to�a � h1s�ona: uma e�o':a é ainda um produto de análise;

·histó�m Jamais apresentara a nossa compreensão senão "par­ totrus" (para falar como Leibniz),.isto é, "sínteses analíticas" ··. •.\:pa1ra retomar uma expressão audaciosa da Dedução transcen­

·'·'·"'"""" de Kant).

As�im, d� p!rte .a p�e é a história fiel à sua etimologia: '

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a ,

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Is , 0 a�:

' hz�torta segundo a expressão grega. Não é

uma.mte�r?gação silenciosa a propósito de

nos-, . histonc1dade, a propósito de nossa maneira

' .. VIV��

�e .r��alar pelo tempo, mas uma resposta a essa con­

.. , histonca :. uma resposta pela escolha da história pela

, . , dum certo conhecimento, duma vontade de compr�ender

de edificar aquilo que Fustel de Coulanges. cha­ "ciiência das sociedades humanas" e que Marc B!och

"empreendimento raciocinado de análise".

(14)

,_ .

-,,,,,,,.cs:.a intenção de objetividade não se limita à crítica doeu­ o julgaria um �treito posi�ivismo; c

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ega, a animar

••

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sínteses; o racionalismo que msto se atmge e da mes­ ' que o da moderna ciência física, e a história não . tem motivo para nutrir em face dela qualquer complexo de mfe­ rioridade.

A OBJETIVIDADE DA HISTÓRIA E A SUBJETIVIDADE DO HISTORIADOR

g em relação a êsse mister de historiador - e, portanto, em relação a essa intenção e a êsse empreendimento de obje­ tividade - que se deve agora situar a crítica contemporânea que, faz meio século, tanto vem insistindo sôbre a função da subjetividade do historiador na elaboração da história.

Parece-me com efeito que se pode considerar essa subje-, tividade em si mesmasubje-, sem saber preliminarmente qual sua fun­ ção: ou seja, precisamente um empreendinlento raciocinado de

análise. Quer, pois, a prudência que se proceda à maneira da tradição reflexiva, isto é, que se procure essa subjetividade em sua intenção, em sua emprêsa, em suas obras. Da mesma forma não física sem físicos, isto é, sem experiências e sem erros, sem tentativas, sem desvios, sem achados singulares. A revolução coperniciana de Kant não consistiu numa apoteose da subje­ tividade dos sábios, e sim na descoberta dessa subjetividade que faz com que haja objetos. Refletir sôbre a subjetividade do historiador é procurar da mesma maneira qual a subjetividade posta em cena pelo mister de historiador.

Mas se existe um problema próprio ao historiador, isso se deve aos traços de objetividade aos quais ainda não nos referi­ mos, e que fazem da objetividade histórica uma objetividade in­ completa em face daquela que é atingida, ou pelo menos avis­ tada,, nas demais ciências. Apresentarei êsses traços sem pro­ curar atenuar, paralelamente, os contrastes aparentes entre essa nova etapa da reflexão e a precedente.

1) Refere-se o primeiro traço à noção de opção histó­ rica; de modo algum lhe exaurimos o sentido ao dizer que o historiador opta pela própria racionalidade da história. Essa opção da racionalidade acarreta outra opção, no próprio

traba-28

, , do historiador; tal outro tipo de opção se vincula àquilo ' que se poderia chamar o julgamento de importtincia, tal como

• êle preside à seleção dos eventos e fatôres. A história através

do historiador não retém, não analisa nem encadeia senão os eventos de inlportância. :fl aqui que a subjetividade do histo­ riador intervém em um sentido original em relação ao do físico, sob a forma de esquemas interpretativos. :fl aqui, por conse­ guinte, que a qualidade daquele que perscruta é importante para a própria seleção dos documentos a perscrutar. Melhor ainda, o julgamento de importância que, pela elinlinação do acessó­ rio, cria a continuidade: é o vivido que é descosido, lacerado

· pela insignificância; é a narrativa que se mostra encadeada, car­

regada de significação graças à continuidade. Assini; a própria

·

racionalidade da história vincula-se a êsse julgamento de ini­ portância que, entretanto, carece de critério seguro. Nesse par­ ticular tem razão R. Aron, ao dizer que "a teoria precede a história".

. 2) Por outro lado, é a história tributária em graus diver-sos de uma concepção vulgar da causalidade, segundo a qual a · caus� designa ora "o fenômeno que vem em último lugar, e . que e o menos permanente e o mais excepcional na ordem geral

· do mundo" (Marc Bloch), ora uma constelação de fôrças de

evolução lenta, ora uma estrutura permanente. Sob êsse aspecto, a obra de Braudel- La Méditerranée et /e monde mé­ .diJterr·an.!en à l'époque de Phi/ippe li-uma data do ponto de

do método, pelo seu esfôrço no destrinçaniento e ordena­ das causalidades:. situa em primeiro lugar a ação perma­

i

.��:e

:�d

o quadro medllerraneano, e em seguida as fôrças parti­

•.: mas relativamente constantes da segunda metade do ,secw.o XVI, e, por fim, ·o fluxo dos acontecimentos. Esse es­

hierarquização das causalidades acha-se perfeitamente da emprêsa de objetividade da história. Mas êste ato

•���:��:���1

será sempre precário, pois a composição total de pouco homogêneas, que a própria análise instituiu faz aflorar um problema quase insolúvel. De qual­ é pr�ciso_

i;'

cluir entre as causalidades componentes i)IIibtivacõ,,. psxcologicas, sempre marcadas por uma psicolo­

senso comum.

próprio sentido da causalidade empregado pelo b1sto­ permanece freqüentemente em estado involnído,

pré-crí-29

(15)

I

!

�-·---tico, oscilante entre o detenninismo e a probabilidade: a his­

tória é condenada a

usar,

simultâneamente, vários esquemas de

explicação, sem ter refletido sôbre êles e sem talvez os ter dis­

tinguido: condições que não são determinações, motivações que

nã-o são causas, causas que não passam de campos de influência,

adjutórios, etc.

Em suma, o historiador "pratica" modos de explicar que

transbordam da reflexão; o que é natural: a explicação sofre

operação e atuação antes de a atingirmos pela reflexão.

3 )

Um nôvo traço dessa objetividade incompleta vincula­

-se àquilo que se poderia denominar o fenômeno de "distância

histórica"; compreender racionalmente é tentar reconhecer, iden­

tificar (Kant chamava à síntese intelectual uma síntese de reco­

nhecimento no conceito). Ora, a história tem por tarefa dar

nome àquilo que mudou, àquilo que foi abolido, que foi

outro.

A velha dialética do

mesmo

e do

outro

ressurge aqui; o historia­

dor de profissão encontra-se sob a forma assaz concreta de

dificuldades de linguagem histórica, sobretudo da nomenclatura:

c-omo denominar e inserir na linguagem contemporânea, na lín­

gua nacional atual, uma instituição, uma situação hoje abolida,

senão pelo emprêgo de semelhanças funcionais, em seguida cor­

rigidas pela diferenciação? Baste-nos lembrar as dificuldades

vinculadas a têrmos como

tirania, servidão, jeudalidade, Es­ tado,

etc. Cada qual atesta a luta do historiador em prol de

uma nomenclatura que permita ao mesmo tempo identificar e

especificar; eis por que a linguagem histórica é necessàriamente

equívoca. É

o tempo histórico que vem aqui opor à inteligência

assimiladora sua obra própria desassimiladora, sua disparidade.

Não pode o historiador escapar a essa natureza do tempo, na

qual, desde Plotino, temos reconhecido o fenômeno irredutível

do afastamento em relação a nós próprios, do estiramento, da

distensão, em suma, da alteridade original.

Eis-nos face a uma das fonte do caráter

in exato

e mesmo

não-"rigoroso" da história; jamais se encontra o historiador na

situação do matemático, que designa, e designando, determina

o próprio contôrno da noção: "Chamo linha a interseção de

duas superfícies . . .

"

Ao contrário, aquilo que faz às vêzes dessa atividade pri­

mordial de designação, pela qual uma ciência exata se coloca

em face de seu objeto, é uma certa aptidão do historiador a

ex-30

patriar-se a transportar-se como que por hipótese para um

outro pr

;

sente; a época que estuda é tida por êle como o pre­

sente de referência, como o centro de perspectiva temporal:

existe um futuro dêsse presente, que se faz da espera, da igno­

rância, das previsões, dos temores dos homens de então, e não

daquilo que nós outros sabemos ter acontecido; existe também

um passado dêsse mesmo presente, que é a memória dos homens

de outrora, e não aquilo que nós próprios

sabemos

do passado

dêles. Ora, essa transferência para um outro presente, vinculada

ao tipo de objetividade da história, é exatamente uma espécie

de

imaginação;

uma imaginação temporal, se quisermos, de vez

que um outro presente é representado, transferido ao fundo da

"distância temporal", - "outrora".

É

certo que essa imagina­

ção assinala a entrada em cena duma subjetividade que as ciên­

cias do espaço, da matéria e mesmo da vida deixam de lado.

Constitui mesmo dom raro saber

trazer

até nós o passado histó­

rico, simultâneamente à recomposição da

distância

histórica, me­

lhor ainda, simultâneamente ao estabelecimento, no espírito do

leitor, de uma consciência de afastamento, de profundeza

temporal.

4) Enfim, último traço, embora não o menor, último tra­

ço decisivo: O que a história deseja em última análise explicar

e compreender são os

homens.

O passado de que nos achamos

afastados é o passado humano. A distância temporal vem, por­

tanto, ajuntar-se a essa distância específica vinculada ao fato

de que o outro é um outro homem.

Voltamos a encontrar aqui o problema do passado inte­

gral: pois aquilo que os outros homens viveram, é precisamente

a9uilo que o historiador tenta reconstituir pela totalidade da

rede de relações causais.

É,

pois, justamente o caráter humano

inesgot

vel do passado que impõe a tarefa de compreensão inte­

gral.

E

a realidade absoluta do vivido humano passado que

tenta, recuperar-se numa reconstrução cada vez mais articulada,

em smteses analíticas sempre mais diferenciadas e ordenadas.

Ora, êsse passado integral dos homens de outrora, dissemos

que .era �ma

idéia,

o limite de uma aproximação intelectual.

É

prec�so d1�er também que é o têrmo antecipado por um esfôrço

e simpatia que é bem mais que a simples translação imagina­

tiva para um outro presente, que é uma verdadeira translação

para uma outra vida de homem. Essa simpatia está no

(16)

: !

l'

I

C!piO e no fim da aproximação intelectual de que falávamos;

atrai o trabalho do historiador à maneira de um primeiro ime­

diato; opera então como uma afinidade favorável face ao ob­

jeto estudado; renasce como um derradeiro imediato, a título de

recompensa, como algo dado por acréscimo, ao cabo de uma

longa análise; a análise raciocinada é como que a fase metódica

entre uma simpatia inculta e uma simpatia instruída.

Eis por que se acha a história animada por um desejo de

encontro

tanto quanto por um deseja de

explicação.

O histo­

riador vai ter com os homens do passado com sua experiência

humana própria. O momento em que a subjetividade do histo­

riador assume relêvo digno de nota é aquêle em que, superada

tôda cronologia crítica, faz a história surgir os valôres da vida

dos homens de outrora. Essa evocação das valôres, que é final­

mente a única evocação dos homens acessível a nós, uma vez

que não se pode reviver aquilo que êles viveram, não é possível,

sem que o historiador esteja vitalmente "interessado" em tais

valôres e não tenha com êles afinidade profunda; não que o his­

toriador deva partilhar a fé de seus heróis; nesse caso êle rara­

mente produziria história, e sim apologética, e mesmo hagio­

grafia; mas deve ser capaz de admitir hipoteticamente sua fé,

o que é uma maneira de ingressar na pr·oblemática dessa fé, em­

bora a mantendo "em suspenso'', embora "neutralizando�a"

como fé efetivamente professada.

Essa adoção suspensa, neutralizada, da crença dos homens

de outrora é a simpatia peculiar do historiador; leva ao auge

aquilo que ainda há pouco denominávamos a imaginação dum

outro presente por translação temporal; essa translação temporal

é, portanto, também uma transferência a uma outra subjetivi­

dade, adotada como centro de perspectiva. Deve-se essa neces­

sidade àquela situação radical do historiador: o historiador faz

parte da história; não apenas no sentido vulgar de que o pas­

sado é o passado de seu presente, mas no sentido de que os

homens do passado fazem parte da mesma Humanidade. A his­

tória é, portanto, uma das maneiras pelas quais os homens

"repetem" o fato de pertencerem à mesma Humanidade; é um

setor da comunicação das consciências, um setor cindido pela

fase metodológica do vestígio e do documento, um setor, por­

tanto, distinto do diálogo em que o outro

responde,

mas não

um setor inteiramente separado da intersubjetividade total, a

qual permanece sempre aberta e em debate.

32

Tocamos aqui nessa outra fronteira em que a objetividade

da história faz aflorar a própria subjetividade da história, e não

mais apenas a subjetividade do historiador.

Antes de dar êsse nôvo passo, voltemos um pouco atrás

para um balanço.

Acaso essas considerações arruínam nosso primeiro ciclo

de análises da objetividade histórica? Acaso essa intrusão da

subjetividade do historiador assinala, conforme se declarou, "a

dissolução do objeto"? De modo algum: temos apenas especi­

ficado o tipo de objetividade que surge do mister de historiador,

a objetividade histórica entre tôdas as objetividades; em suma,

temos procedido à

constituição

da objetividade histórica como

correlata da subjetividade historiadora.

Eis justamente por que, em troca, a subjetividade posta em

cena não é mais uma subjetividade

qualquer,

mas precisamente

a subjetividade do historiador: o julgamento de importância,

- o complexo de esquemas de causalidade, - a translação

a um outro presente imaginado, - a simpatia por outros ho­

mens, por outros valôres, e finalmente essa capacidade de en­

contrar um alguém de outrora, - tudo isto confere à subjeti­

vidade do historiador uma riqueza maior de harmônicos do que

aquela contida por exemplo na subjetividade do físico. Mas

essa subjetividade nem por isso é uma subjetividade

à deriva.

Nada se disse quando só se disse que a história é relativa

ao historiador. Pois

que

é o historiador? Assim como o objeto

percebido é relativo àquilo que Husserl denomina o corpo orlo­

-estético, isto é, a uma sensorialidade normal, o objeto cien­

tífico é sempre relativa a um espírito reto; essa relatividade

�a

a tem a ver com um relativismo qmrlquer, com um subje­

tlV!smo de querer-viver, de desejo de poderio, ou que sei eu?

A subjetividade de historiador, como tôda subjetividade cientí­

fica, representa a vitória de uma boa subjetividade sôbre uma

má subjetividade.

Após o grande trabalho da crítica filosófica que atingiu seu

ponto extremo com o

!

ivro de Raymond Aron, é talvez preciso

formular agora a quest�o: qual a

boa

e qual a

subjetividade?

Como reconhece Henn Marrou, que entretanto tão largamente

acolhe a escola crítica, tornamos a encontrar em nível superior

- no

�!

vel dessa "história ao mesmo tempo ampliada e apro­

fun

ada que

a�c Bloch e Lucien Febvre reclamam

_

os

valores dos quais tmha o positivismo um sentido acanhada,

Referências

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