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conj1mt:o de condições que' teriam sido as mesmas, se o sido outro, nem que produziriam mecânicamen�e

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 36-40)

cultural, e que nos permitiria�, por conseguinte, Ir

ao ideológico; devo, ao oontráno, colocar-me na obra

a situação, como aquilo mesmo que que ela exibiu. Sartre mostrou-o de maneira seu artigo dos Temps modernes intitulado:

méthode: é sempre do artista que é preciso partir, para brir qual a situação que êle fêz ao produzir tal obra.

Tentemos precisar mais o argumento: é coisa mais fácil com o filósofo do que com o artista. De que modo manifesta o filósofo sua situação? É deveras notável que a situação social, política, de um grande filósofo não surge de modo algum clara em seu texto; não é referida, não é declarada em lugar algum;

é, entretanto, manifestada. É manifestada de certa maneira, muito indireta, através dos problemas propostos pelo filósofo;

em -outras palavras, sua situação sofreu uma espécie de trans­ mutação, de "transvaliação"_; de situação vivida, tornou-se pr-o� blema declarado, problema pronunciado, enunciado. Que quer isto dizer? Façamos uma primeira observação, à primeira vista anódina, mas, na realidade, absolutamente decisiva: é num . discurso, e unicamente num discurso que o filósofo pode fazer surgir sua época. A obra do filósofo é obra de expressão e uni­ camente de expressão, de tal forma que nosso problema apre­ senta o aspecto mais extremo, e talvez mais claro, da relação que pode existir entre a história efetiva e o discurso, a história efetiva produzida pelos homens e o discurso que êles consti­ tuem. Parece evidente que a filosofia é expressão, mas isto basta para que se escape à relação causa-e-efeito e realidade-re­ flexo. Nenhum discurs-o, nessa qualidade, pode ser reflexo. Se o vocábulo tem sentido, o reflexo é uma coisà, um objetO!, o - reflexo num espelho, por exemplo; não conhecemos reflexos que sejam discursos. Há algo de especifico na relação entre uma situação e um discurso, e essa relação é simplesmente signifi­ cada. É nesse sentido que o caso do filósofo é mais esclarei cedor que qualquer outro, porque o discurso ao qual visa exige que se proponham questões universais. Coisa que nos introduz no centro da dificuldade e do paradoxo, pois uma filosofia sin­ gular, ao surgir, manifesta sua época, exprimindo-a no elemento do universal: é fazendo a pergunta: "Que é um julgamento sin­ tético a priori?", que Kant inaugura sua filosofia, e a pergunta

que faz, é questão universal; e é nessa questão universal, qué êle

az aparecer a estreiteza de sua situação singular, que a manifesta.

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A obra filosófica dá, de início, forma à questão de que procede; ora, a forma universal da questão é o problema. O filósofo exprime propondo de modo universal, em forma de . problema, a dificuldade que lhe é própria e que o constitui. Exprime dando forma.

Vê-se ao mesmo tempo quão difícil é encontrar uma rela­ ção direta entre uma filosofia e um ambiente econômico, social e político; é preciso, dizíamos, reencontrar essa situação na pró­ pria obra, mas é típico da obra filosófica a transposição de todos êsses problemas muito singulares, vividos pelo filósofo, numa questão universal. Chega-se a dizer que a obra filosófica dissi­ mula sua situação social e política. Apenas dissimular uão quer absolutamente dizer mentir. Tal dissimulação só seria falsidade se justamente pretendesse enunciar sua situação. · Ela "dissi­

mula", por não querer dizer em que época nasceu! qual o meio social que exprime; o que quer dizer é outra cmsa. Sua per­ gunta é: que é real? que é a physis? que é uma idéia? que .é a transcendência? Nisso a filosofia emudece a respeito de sua si­ tuação, e é o mutismo do filósofo sôbre sua própria situação - de classe ou outra - que constitui o desinterêsse de sua ques­ tão. É porque sua situação foi como que transmudada em ques­ tão desinteressada, que sua questão lhe dissimula a situação. Ela dissimula por ultrapassar, por transcender.

Por conseqüência, é sempre de maneira indireta que se pode estabelecer a relação que vincula uma obra filosófica à sua época, de vez que essa relação só pode ser procurada na própria obra, e que a obra mais perfeita é a que mais dissimula. Se existe um problema de falsa consciência, no sentido de Marx e de Lukàcs, é porque uma relação inverídica pode vir inse- rir-se nessa relação fundamental de tôda obra de expressão re­ ferida a uma situação, porque uma obra de expressão supera

· a própria situação e a dissimula, superando-a: é essa dissimu­

. primitiva que pode se tornar falsa consciência, mentira, ao reconhecimento de sua situação: partilhará o filósofo me:nti.ra de sua época quando, amparando-se no discurso uni- que tem uma classe, pretender ter feito sem gran- o movimento da história, de manumissão e de quando era apenas na intenção que êle superava sua s_ttUa•;ã<>: continua, no entanto, a ser verdade que, pela sua ma- formular as questões, êle efetivamente superava sua ainda que apenas em intenção.

Essa relação entre uma época histórica e uma obra filosó­ fica - essa relação de manifestação-dissimulação, - é a forma extrema do estatuto da linguagem no mundo. A linguagem com pretensão à maior universalidade revela o que sucede a tôda expressão, a todo discurso em uma sociedade: desde que uma época se represente a si mesma por intermédio de suas obras, é que ela já saiu da estreiteza de sua situação. É exatamente

por isso que não se pode jamais reduzir as obras literárias, e, de modo geral, obra alguma a uma simples camada de apa­ rência, à franja de escuma da vaga que se ergue numa praia.

É uma realidade nova, que tem uma história própria, a história

do discurso, que postula uma compreensão própria, e que só se vincula à sua situação, superando-a. Nesse sentido, a signi­ ficação da expressão excede sempre a função de reflexo. Lem­ bremo-nos do sonho de Constantinopla, entre os muçulmanos, que recentemente se discutiu. Pode-se só ver ali ambição polí­ tica. Mas, uma vez que tal sonho fora "dito" num mito, êle ultrapassava Constantinopla e podia tornar-se um símbolo esca­ tológico; e isto é !auto mais verdadeiro quanto êsse tema da tomada da cidade volta a surgir na mística cristã, no "castelo" de Santa Teresa, e finalmente em O Castelo de Kafka. Volta­

mos a encontrar no tema do Graal, üU na busca do "tesouro", a mesma riqueza de harmônicos míticos e místicos; existe assim um acréscimo de significação na obra, no mito, que excede seu suporte histórico, embora se possa sempre discernir tal suporte histórico, social, econômico; mas, uma vez "dito", sofre êle uma transformação no elemento do Lagos, e essa expressão poderá ser reassumida a partir de entras situações históricas, poderá ser compreendida.

3 . A contradição de tôda historicidade.

Procuremos condensar. Numa primeira parte, tentei mos­ trar que a história da filosofia comportava um estilo estranho de compreensão, de vez que nos propunha dois modelos de ver­ dade, um, que tendia para o sistema e, outro, para a obra sin­ gular. Ora, meu problema era saber o que essa contradição nos ensina sôbre a história em geral. Introduzi, para resolvê-la, uma questão intermediária: de que modo a história da filosofia se refere à história? Vimos que tal referência não se fazia à ma-

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neira de eieito ou reflexo, mas j)ela consti�ui�ão de ull?- univer.so significativo, que sempre excedm sua propna causahdade his-

tórica. .

� .

É pelo fato de haver "mais" no discurso flios�üco, que a

história da filosofia pode revelar aspectos da h1stona que de outro modo não apareceriam:

1 . Em primeiro lugar, essa dupla leitura da história, da filosofia revela um duplo aspecto, virtualmen�e presente em to

a história. Tôda história pode ser compreend1da como e�altaça_o de um sentido e emergência de singularidades. Essas smgul�r.l­ dades são, ou acontecimentos, ou obras: ou pessoas. A h1stona hesita entre um tipo estrutural e um tipo_ baseado em ac.ont�­ cimentos. Mas é unicamente na clanücaçao do d1scurso füoso­ fico que essas duas possibilidades se separam e se mamfesta?.'.

Em que sentido comporta a história essa dupla poss!b!h­ dade? De um lado, empregamos históri� no singular e atestar:'os que existe uma única história, uma úmca Humamdade: "Toda a série dos homens, escreve Pascal, no fragmento de um Tra­

tado do vácuo, deve ser considerada como um mesmo homem

que subsiste sempre e está de contínuo a ap;ender." Temos a convicção que, sempre que se nos .d�para um smal humano,. pode êle, a priori ser referido a um umco c.an;po de Humamd�d�.

Isto eu 0 sei antes mesmo de produzir h1stona, por uma espec1e de compreensão antepredicativa do campo histórico.

as dessa compreensão não pode o h1stonador exphcar o mol!vo. , Para êle, ela permanece "pré-conceito", no _sen

i?o fort� do termo. fl.sse preconceito do historiador não se JUSI!flca, senao p�la ten­ tativa do filósofo de recuperar, num único discurso, os d1scursos parciais. Mesmo sem ser hegelianos e mesmo sem _ser absolu­

tamente filósofos temos o sentimento de que tudo 1sso que os filósofos dissera

, sempre e por tôda a part;o, deve P.oder co?s­

tituir um continente, uma realidade, uma so ��ntmmda

e: e a palavra humana, é o discurso, é o Lagos. Duta eu, po1s, que é o sistema, a possibilidade-limite do. sistema, que revel� ser a história potencialmente una (voltare! dentro em breve a ex-

pressão "potencial"). . ...

Tenho sàmente diante de mim uma outra conv!Cçao, que

a

primeira não pode extirpar. Se digo "história", no si?gula;,

a

história é também a história dos homens no plural, 1st? . e,

não apenas dos indivíduos, mas das comunidades e das c�v!l!­

zações. Acha-se, pois, igualmente inscrito um certo pluralismo

na preconcepção do drama hist6rico e do trabalho hist6rico. Não somente coloco os homens no plural, como também coloco no plural os acontecimentos; se existe um acontecimento, exis­ tem acontecimentos. f! a história necessàriamente uma diversi­ dade, uma multiplicidade: existe isto, e depois aquilo. f! o "de­ pois", "e depois então", "e depois ainda", que faz com que haja história. Se não houvesse rupturas, novações, também não ha­ veria história. Onde, pois, se torna perfeitamente manifesto êste outro aspecto latente da história? Na singularidade das obras.

f! lá que o historiador atesta seu caráter, se se pode dizer gra­ nular, seu caráter quântico. Não conhecemos o espírito senão nas obras do espírito, nas obras culturais, que postulam cada qual nossa amizade, e, quanto mais progredimos nessa amizade pelas obras, mais reduzimos as generalidades que a mascaram, mais avançamos na direção do singular e do único.

Assim se manifesta, pelo discurso filosófico, na medida em que êle não é reflexo mas constituição de sentido, o duplo cará­ ter de tôda história, que é ser ao mesmo tempo estrutural e conduzida pelos acontecimentos, de ser unidade da história e multiplicidade dos acontecimentos, das obras e dos homens. Tal é nossa prhneira conclusão: a história da filosofia manifesta a dualidade latente de tôda história; quando ela própria se sub­ divide em dois modelos de inteligibilidade, revela aquilo que se acha subjacente à história.

2 . Essa primeira conclusão invoca uma outra. Essa de­ composição do estrutural e da parte referida aos acontecimentos, operada na compreensão das obras, e singularmente das obras filosóficas, é, de certa maneira, uma destruição da história. Esta segunda conclusão é talvez ainda mais paradoxal que a pri­ meira. Ora, é a dupla· destruição da história que revela a his­ tória como história.

f! da maior importância que os dois modelos-limite da com­ preensão em história da filosofia, o sistema e a singularidade, representem uma certa supressão da história. Antes de mais nada, desde que haje sistema, não há mais história. Na Feno­ menologia do Espírito ainda se encontra uma certa história, aliás "ideal", constituída pelas "figuras" do Espírito; ora, quando se passa à Lógica de Hegel, não há mais "figuras", mas "catego­ rias", não há mais história de nenhum modo. O limite da com­ preensão histórica é, portanto, a ·supressão da história no sis­ tema. Vê-se a mesma coisa na obra de Eric Weil, que muito

admiro : as atitudes ainda estão na história, as categoria� não compõem mais uma história, e sim uma Lógica da filosofza. A passagem da história à ló!>ica_ sigu

fic� a �or

e. da história. Pc:r outro lado na segunda direçao, nao e a histona menos destrui­ da. Quan

d

o se pratica a história da filosofia .confo�e '? se­ gundo método, chega-se a uma espécie de esqmzofrema, VIven­ do-se num filósofo, depois noutro, sem haver passagem dum ao outro; pode-se mesmo dizer 9ue ês�es filósofos não pertencem mais a qualquer época, são smgul�r�dade� que flut�am fora da história, essências singulares anacromcas, m,temporais., T?rna-se a obra uma espécie de absoluto que contem seu pr�pno pas­ sado, mas seu passado essencializado.

J:.

obra de Spm�za, tem tal passado, mas êsse passado, nela inclmdo, torna-se essencia, e esta, por sua ve:i, não pertence a nenhum J?IOmento; pod

:�; dizer dessa obra singular, assim compreendida, que ela e , que ela é "assim"� e, sob êsse título, irrefutável. D

zia Ni�tzsche: "Um som não pode ser refutado", nem com matar razao uma

palavra assim absolutizada. ,

Conforme se vê a história da filosofia não revela o carater fundamental de tôd

;

história, de ser ao mesmo tempo referida aos acontechnentos e estrutural, senão por seu pró�ri? trabal

o, que suprimiu a hist�ricid�de. Se;ia êsse !aly�z o u,mco .senti

o que se poderia dar a noçao de fim da h1stona. Toda fil?sofia é de certa maneira, o fim da história. O sistema é o fim da

h

istória, porque ela se anula na Lógica: a singul�ridad� bém é o fhn da história, de vez que nela se nega toda·

. Chega-se a êsse resultado, absolutàmente paradoxal, que é sem­ -: pre na fronteira da história, do fim da história, que se com- . os traços gerais da historicidade.

3 . Chego assim à minha últhna· conclusão: ' se a hist

ria revela como história na medida em que é superada, na drre­

do discurso ou da obra singular, será preciso dizer que a história não é história senão na medida em que ela não atingiu, o discurso absoluto . nem a singularidade absoluta, na me­ em que seu sentid

d

permanece co

n!'

uso, enredado. A h

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s-·

a história feita, é tudo aqmlo que se passa aquem e dessa supressão. Aquém des�a decompo­ é a história essencialmente equívoca, no sentido de achar

referida aos acontecimentos e ser virtualmente es­ A história é de fato o reino da inexatidão. Não é vã descoberta; ela justifica o historiador. Justifica-o de todos

os seus embaraços. O método histórico não pode ser senão um

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 36-40)

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