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mem com o homem; mas seria também o fim do Estado; porque seria o fim da história.

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 126-128)

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O PARADOXO POLíTICO *

O evento de Budapest, como todo evento digno dêsse no­ me, tem um poderio indefinido -de abalo; tocou-nos e comoveu­ -nos em diversos de nossos níveis: o nível da sensibilidade, feri­ da pelo inesperado; o nível do cálculo político a meio têrmo; o nivel da reflexão duradoura sôbre as estruturas políticas da ex;s­ tência humana. Seria preciso ir e vir sempre de uma a outra dessas potencialidades do acontecimento.

Não nos cabe lamentar têrmos man;festado de inicio sua potencialidade de choque, sem preocupação de reajuste por de­ mais rápido da tática; por mais que os hábeis, os que nunca se deixam apanhar desprevenidos, tivessem dito que ela era espe­

rada, a revolta foi uma surprêsa, porque ela aconteceu:

as Cha­

mas de Bndapest.

. . Não se deve ter pressa de reabsorver os acontecimentos, se dêles quisermos tirar algum ensinamento.

E depois, êsse acontecimento que deixamos falar por si só, é preciso avaliá-lo, pô-lo no devido lugar em uma situação de conjunto, tirar-lhe o caráter insólito, colocá-lo em· confronto com a guerra da Algéria, a traição do Partido Socialista, o depere­ cimento da Frente Republicana, a resistência do comunista fran­ cês à desestalinização; em suma, é preciso passar da emoção absoluta à consideração relativa. Outros, neste número, prolon­ garão essa linha.

No que me toca, o evento de Budapest, juntamente com a Revolução de outubro de Varsóvia, deu nôvo impulso, confir­ mou, in/lectiu, radicalizou uma reflexão sôbre o poder político que não data dêsse acontedmento, uma vez que tinha sido oca­

sião de diversos estudos ;néditos, pronundados no

Colégio Filo­

sófico,

em

Esprit

e alhures. O que me surpreendeu nesses acon-

* �ste texto é especial para a segunda edição.

tecimentos, é que êles revelam a estabilidade, através das revo� luções econômico-sociais, da problemática do poder. A surprêsa é que o Poder não tenha, por assim dizer, história, que a história do poder se repita, marque passo; a surprêsa, é que não haja surprêsa política verdadeira. Mudam as técnicas, evoluem as relações entre os homens no que diz respeito às coisas, o poder entretanto desenvolve o mesmo paradoxo, o de um duplo pro­ gresso, na racionalidade e nas possibilidades de perversão.

Tôda corrente de pensamento que não crê na autonomia relativa do político em relação à história econômico-social das sociedades se recusa liminarmente, a admitir que o problema do poder político em regime de economia socialista não seja fuudamentalmente diferente do mesmo problema em economia capitalista, que êle oferece possibilidades comparáveis, senão agravadas, de tirania, que exija contrôles democráticos tão estri­ tos, senão mais rigorosos.

Essa autonomia do político me parece situar-se em dois traços contrastantes. Por um lado, realiza o político uma rela­ ção humana que não é redutível aos conflitos de classes, nem em geral às tensões econômico-sociais da sociedade; o Estado mais marcado por uma classe dominante é Estado precisamente pelo fato de exprimir o desejo fundamental da nação em con­ junto; dêsse modo, não é êle radicalmente afetado, enquanto Estado, pelas transformações ainda que radicais na esfera eco­ nômica. Por essa primeira característica, a existência política do homem desenvolve um tipo de racionalidade específica, irre­

dutível às dialéticas de base econômica.

Por outro lado, gera a política males específicos, que são

justamente males políticos, males do poder político; tais males não são redutíveis a outros, por exemplo, à alienação econô­ mica. Por conseguinte, a exploração econômica pode desapa­

recer e o mal político persistir; mais ainda, os meios estabele­ cidos pelo Estado para pôr fim à exploração econômica podem ser ocasião de abusos de poder, novos em sua expressão, em seus efeitos, mas fundamentalmente idênticos na respectiva ener­ gia passional, aos dos Estados do passado.

Racionalidade específica, mal específico, tal é a dupla e paradoxal originalidade do político. A tarefa da filosofia política

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é, ao meu ver, explicitar essa originalidade e elucidar-lhe o pa­ radoxo; pois o mal político só pode brotar da racionalidade espe­ cífica do político.

Ê preciso resistir à tentação de opor dois estilos de refle­

xão política, um que supcrvalorizaria a racionalidade do político, com Aristóteles, Rousseau, Hegel, e outro que acentuaria a violência e a mentira do poder, segundo a crítica platoniana do "tirano", a apologia maquiavélica do "príncipe" e a crítica mar­ xista da "alienação política".

Ê mister sustentar êsse paradoxo, de que o maior mal adere

à maior racionalidade, que existe alienação política, porque o

político é relativamente autônomo.

Ê, portanto, essa autonomia do político que é preciso exa­ minar em primeiro lugar.

I . A AUTONOMIA DO POLÍTICO

O que permanece para sempre admirável no pensamento político dos gregos, é que nenhum filósofo dentre êles - senão talvez Epicuro - se tenha resignado a excluir a política do campo do racional que pesquisavam; todos ou quase todos sa­ biam que se se proclamasse a política algo de maléfico, estra­ nho, alheio em relação à razão e ao discurso filosófico, se a política fôsse a mensageira do diabo, literalmente seria a própria razão que soçobraria. Porque então ela não seria mais razão da realidade e na realidade, tal o grau em que é política a rea­ lidade humana. Se nada é racional na existência política dos homens, a razão não é real, flutua no ar, e a filosofia exila-se nos confins do Ideal e do Dever. A tal jamais se resignou qual­ quer das grandes filosofias, mesmo (e sobretudo) se ela se inicia pelo processo da existência cotidiana e decaída e liminarmente se desvia do mundo; tôda grande filosofia quer compreender a realidade política, a fim de se compreender a si mesma.

Ora, a política só revela sentido se sua meta - seu te/os puder vincular-se à intenção fundamental da própria filosofia, ao Bem e à Felicidade. Os antigos não compreendiam que uma Política - uma filosofia política - pudesse começar por coisa diferente de uma teleologia do Estado, da "coisa pública", que

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 126-128)

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