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monopólio do constrangimento físico; retirou dos indivíduos o direito de fazer justiça pelas próprias mãos; tomou sôbre seus

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 119-122)

ombros tôda a violência esparsa, herdada da luta primitiva do

homem contra o homem; frente a tôda violência, pode o indi­

víduo apelar para o Estado, mas o Estado é a última instância,

a instância sem recurso. Ao abordar a violência do Estado pelo

seu lado penal, punitivo, atingimos diretamente o problema cen­

tral; pois as múltiplas funções do Estado, seu poder de legislar,

* .tste texto é especial para a segunda edição.

seu poder de decidir e de execui':_r, sua lu!'ção ,administratlVà, sua função econômica ou sua funçao educattva, tod�s essas f,u�­

ções são finalmente sancionadas pel5' poder de obngar, em úlll­ ma instância. Dizer que o Estado e um poder e que ele é um poder de obrigar, é a mesma coisa.

Não falo, portanto, de um Estado mau, de um Estado tot�­ litário, falo do Estado, daquilo que faz com �ue o Estado seJa Estado, através dos regimes e das formas dtferente_s . e mest;no opostas. Tudo quanto o Estado acrescenta em matena de VIO­ lência ilegítima não faz senão �gr�var o pro

?

lema. B�sta-nos que 0 Estado considerado o mms JUsto, o mms democratlco, o mais liberal se revele como que a síntese da legitimidade e da violência, isÍo é, como poder moral de exigir e poder físico de obrigar.

I

Por que essa união do direito e da fôrça no Estado. cons­ titui problema? Não teríamos nenhum se a vtda no Estado ·pudesse exprimir inteiramente, mtegralmente, es­ gotar radicalmente tôda a exigência da consciência moral; fica­ ríamos contentes se a política pudesse ser aos nossos olhos a realização da moral; ora, a vida n� Estado pod� acaso :stancar tôda sêde de perfeição? Poder-se-ta pensar asstm, se fossemos seguir certas sugéstões da reflex

o política dos .�:go�, quando . fazem da "Cidade", da sua perfetção, de sua suftcwncta, a meta da conduta dos indivíduos; parece então que tôda moral vem resumir-se na realização· de uma comunidade histórica, próspera, forte e livre segundo uma liberdade coletiva. Mas os mesmos filósofos que fizeram da Cidade o cimo da vida moral renún- ciaram aliás a unificar o ideal "contemplativo" do sábio e o ideal ,;prátic�" do chefe de Estado,

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homem políti�o, do �d­ ministrador de uma casa ou um domm10; sua moral vmha asstm fragmentar-se em duas e permanecia insolúvel a d

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uldade.

e articular um com outro os dois modelos de perfetçao e fehct­ dade o modêlo filosófico e 0 modêlo político, como se . vê em Platão, em Aristóteles e nos Estóicos. Objetar-se-á que o ideal de "contemplação" não é mais nosso ideal e que o cristianismo

o primeiro a liquidar com a distinção entre contemplação e

ação, ao propor o ideal "prático" do amor do próximo e ao unificar sob o signo da "prática" tôda a moral.

Mas o cristianismo voltava a encontrar de outra maneira, e mesmo agravava a contradição que os gregos, animais políti­ cos por excelência, não haviam podido superar. Pois o· cristia­ nismo introduzia uma exigência que, pela radicalização do pro­ blema moral, transformava em enigma o problema político. Essa exigência radical, nós o sabemos, é a interpretação do amor do próximo por Jesus no Sermão da Montanha. Tal como é, êsse

ensinamento propõe uma fórmula de inteiro sacrifício para o amor: "Não resistais ao mau"; "rezai por aquêles que vos per-

seguem" etc. ,

Um tal mandamento introduz uma ruptura mais radical que a oposição entre contemplação e ação; é a própria "prática" que se encontra dividida em si mesma; pois o político como tal não pode ser pensado no quadro dessa ética da não-resis­ tência e do sacrifício.

Temos disto testemunho no famoso Capítulo XIII da Epís­

tola aos Romanos, na qual São Paulo, ao dirigir-se aos cristãos

da capital, tentados sem dúvida por certo anarquismo de cunho religioso, aconselha-os a se submeterem às autoridades por mo­ tivo de consciência e não apenas por temor. Ora, êsse texto é talvez mais interessante como afloramento à consciência do que como resolução de uma contradição, ainda que seja sob êsse ângulo dogmático que êle seja de ordinário comentado.

São Paulo teve perfeita consciência de que, ao introduzir a figura do "magistrado", e com ela a autoridade, a sanção, a obediência, o temor, êle fazia surgir uma dimensão da vida que não se acha contida nas relações diretas de homem para homem suscetíveis de serem transfiguradas pelo amor fraterno de que antes havia falado; é com efeito assaz notável, como o sublinhou O. Culhnann, que os conselhos políticos de São Paulo se inse­ rem em um contexto em que a questão principal é o "amor" que todos os homens se devem uns aos outros; êsse amor acha-se descrito, à maneira do Sermão da Montanha, como um amor

que perdoa, que não resiste ao mau, que responde ao mal com o bem e que finalmente restaura ou mesmo institui de nôvo uma reciprocidade completa entre as pessoas; "Amai-vos uns aos ou­ tros com afeição terna e fraternal", diz o apóstolo.

E de súbito, rompendo êsse apêlo ao amor mútuo, ergue Paulo a figura do "magistrado". Ora, que faz o "magistrado"?

Pune. Pune aquêle que pratica o mal. Eis, pois, a violência que de início evocamos; é aliás bem exatamente na instância penal que São Paulo .re.sume t.ôd�s .as funçõ_es do.

stado, vio­ lência limitada, sem duv1da. V10lencm que nao leg1tima nenhum assassinato e, como o veremos adiante, violência que não jus­ tifica, que não institucionaliza de modo algum a guerra de Es­ tado para Estado; violência inteiramente comedida pela própria instituição do Estado; violência estabelecida, fundada na justiça, que São Paulo chama o "bem". Tudo isso é verdade; e é pre­ ciso recordá-lo contra aquêles que vêem nesse texto a vergonhosa abdicação do cristão diante de qualquer autoridade. A autori­ dade é a do "magistrado"; é a da justiça. A "ordem" que ela cria e mantém não poderia, portanto, achar-se separada da jus­ tiça, e muito menos opor-se à justiça. Mas é precisamente essa violência estabelecida, essa violência da justiça que constitui o problema.

Porque a "autoridade" não parece poder proceder do "amor". Sob a mais comedida de suas formas, a mais legítima, a justiça já é maneira de pagar o mal com o mal. Em sua es­ sência, a punição consuma a mais fundamental das rupturas na ética do amor; ela ignora o perdão, resiste ao mau, institui uma relação não recíproca; em suma, à via curta, à "imediatez" do amor ela opõe a via longa, a "mediação" de uma educação coer­ citiva do gênero humano.

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"magistrado" não é meu "irmão"; e nisso mesmo que êle é uma "autoridade"; é nisso também que êle requer "submissão"; o que não quer dizer que o cristão deve suportar seja o que fôr; mas a relação do Estado ao cidadão é uma relação assimétrica, não recíproca, de autoridade a sub­ missão; mesmo quando a autoridade procede de eleições livres, mesmo quando ela é inteiramente democrática e perfeitamente legítima, o que jamais acontecerá talvez, uma vez constituída, ela me diz respeito como instância que detém o monopólio da sanção; isso é suficiente para que o Estado não seja meu irmão e exija minha submissão.

Dizia eu que o afloramento à consciência do paradoxo é mais importante que sua solução em São Paulo. É com efeito preciso reconhecer que São Paulo nos lega mais um problema do que uma solução. Contenta-se êle em dizer que a autoridade é "instituída por Deus" e que assim é "para meu bem"; isto é o bastante, sem dúvida, para que o cristão esteja submetido por motivo de consciência e não apenas por mêdo das sanções, o que

constituiria motivo totalmente alheio à vida cristã; mas o liame dessa :'instituição" à economia

a salvação acha-se simplesmente enunCiado e permanece para nos fonte de grande perplexidade. Pois essa pedagogia violenta, que anima a história através da sucessão dos Estados, introduz uma nota discordante na peda­ gogia do amor, do testemunho, do martírio. São Paulo nem mesnio tentou deduzir a autoridade política da ética do amor; encontra essa instância do Estado em seu inventário do humano; apóia-se sôbre ela quando reivindica . sua qualidade de cidadão romano; sabe que a tranqüilidade da ordem é a condição da pregação cristã. Entrevê, pois, a convergência das duas peda­ gogias do gênero humano, a do amor e a da justiça, a da não• -re�istência e a da punição, a da reciprocidade e a da autoridade e da submissão, a da afeição e a do mêdo. Entrevê sua con­ vergência, mas não vê sua unidade. De um lado, entrevê sua convergência: é ela que êle enuncia na afirmação pura e simples que a autoridade é instituída por Deus. Mas não lhes vê a uni­ dade; eis precisamente por que emprega uma palavra, a palavra instituição, que não tem raiz na pregação da cruz e da imitação de Jesus Cristo.

Bem o sei: buscou-se um liame sistemático entre a Cruz e a "instituição", entre o amor e a- autoridade; encontraram-se mesmo dois. Invocou-se de início a "cólera de Deus"; a cólera ' de Deus é com efeito mencionada no contexto do Estado (Ro­ manos, 1 2 ) ; êsse tema não parece sem relação com o do Estado, d� vez que. a. cólera de Deus é Deu� enquanto punidor; mais amda, ela e mvocada para recusar as pessoas privadas o di­ reito de pessoalmente se vingarem; a Deus, é recordado, per­ Iene: a retrib�ição; é pois razoável aproximar a instituição da sançao dessa vmgança que Deus reserva para si. Mas essa apro­ ximação entre a instituição do Estado e a cólera de Deus é menos uma explicação que a consagração de um enigma; quem não vê com efeito que a dualidade entre o amor e a coerção apenas se torna mais radical, por ser referida a Deus? Mais se a cólera foi satisfeita na Cruz, é preciso reconhecer que a

ius�

tória do Estado não é a história que a Cruz resgatou, mas uma história irredutível à da salvação, uma história que conserva o gênero humano sem o salvar, que o educa sem regenerá-lo, que o corrige sem o santificar.

A dupla pedagogia do gênero humano consolida-se assim pela dualidade da Cólera e da Cruz no próprio Deus. Não obs-

tante. essa reflexão sôbre a cólera de Deus não era vã; é mesmo

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 119-122)

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