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E por que, não obstante, constitui a guerra um problema? Porque ela não é sOmente o homicídio institucionalizado; mais

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 124-126)

exatamente porque o homicídio do inimigo coincide com o sa­

crifício do indivíduo à sobrevivência física de seu próprio Es­

tado. É com efeito nesse ponto que a guerra propõe aquilo

que eu chamaria o problema de uma "ética de angústia". Se

a guerra só me pusesse em face de um problema: matarei o

inimigo ou não o matarei? - só o mêdo e a idolatria de um

Estado divinizado explicariam minha submissão ao Estado ma­

léfico e êsses dois motivos me condenariam totalmente; meu

dever estrito seria ser objetante de consciência. Mas a guerra

também me propõe uma outra questão: deverei arriscar minha

vida para que meu Estado sobreviva?

A

guerra é essa situação­

-limite, essa situação absurda, que faz coincidir o homicídio com

o sacrifício. Promover a guerra é, para o indivíduo, ao mesmo

tempo matar o próximo, o cidadão de o�tro Esta.do, e pôr. sua

vida em jôgo para que o Estado respectivo contmue a existir. :E:sse problema não coincide com o da legitimidade da guer­ ra para o Estado; conforme vimos, semelhante justificação mo­ ral da guerra como operação punitiva é mendaz; o problema da sobrevivência física do Estado, de sua conservação material com risco de minha vida e ao preço da vida de meu inimigo, eis o monstruoso enigma diante do qual me situa a existência do Estado. É um fato que até o presente - digo até o presente, porque a guerra está talvez em via de mudar tão radicalmente de caráter que o problema da sobrevivência física do Estado estaria a pique de perder todo sentido - até o presente os Estados têm sobrevivido graças à guerra; essa violência injus­ tificável tem permitido, através do sofrimento e da ruína, a per­ petuação não sàmente de uma grandeza, mas de valôres de civi­ lização; indo mais longe: a história mostra de sobra que as mais cruéis tiranias, os regimes mais totalitários não foram que­ brantados senão do exterior e como que por arrombamento; em ,suma, existem guerras conservadoras, guerras libertadoras, guer­

ras de instauração, e no entanto a guerra como tal permanece algo de injustificado e de injustificável.

Precisamente porque ela surge na linha de ruptura das duas éticas, a da caridade e a da coerção, ela condena o indivíduo a uma "Ética de angústia". O único motivo para se obedecer ao Estado em armas e em guerra, é que êle continue a existir e

que assim exista o "magistrado")· minha obediência mantém-se

no terreno não ético da existência pura e simples de meu Es­ tado; não constitui ela o respectivo fundamento, de vez que, sem ser um ato de magistratura, sem ser de modo algum o exercício de uma justiça punitiva, ela é a condição existencial de todos os atos de magistratura; que meu Estado exista, tal é

a verdadeira e única motivação do cidadão armado e homicida. Eis por que não me posso sentir contente de obedecer, pois mi­ nha obediência consagra o crime de meu Estado; sua sobrevi­ vência física, com a qual coopero, é sua culpabilidade; não con· , tribuo para sua existência pura e simples senão ratificando sna malignidade pelo homicídio.

Desobedecerei, então? Sim, se sou capaz de assumir as conseqüências e o sentido respectivos. As conseqüências, sem dúvida, a saber, um outro risco de morte para mim; mas iguahnente o sentido, pois a desobediência também

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é nma ética de angústia; porque, ao mesmo tempo que ela testemunha a unidade oculta da moral do irmão e do magis­ trado, minha desobediência, ao mesmo tempo, põe em perigo meu Estado; pois não basta dizer que em vista de sua raridade, o testemunho radical da desobediência não enfraquece ponde­ ràvelmente o Estado; devo agir dentro da idéia de que a má· xima de minha ação se poderia tornar uma idéia universal; o sentido de meu ato de desobediência, estendido a todos, é pois justamente uma ameaça para meu Estado, cuja probabilidade de sobrevivência enfraqueço; eis o "sentido" que devo aceitar e mesmo reivindicar, se desobedeço: a saber que, na situação­ -limite da guerra, o testemunho que alço ao absoluto do manda­ mento que proíbe o homicídio, põe em perigo meu Estado e, através dêle, meus concidadãos. Não tenho o direito de dar tal testemunho se não assumo, além do risco, o respectivo sentido, ou seja, a ameaça e, na situação-limite, o sacrifício de meu Estado.

Pode acontecer que, em certos casos extremos, o sacrifício de meu Estado se torne um dever político e não apenas um

testemunho absoluto; é em face de tal decisão que certos anti­ nazistas se acharam na Alemanha; pode acontecer que eu tenha um dia de desejar a derrota de meu Estado, se é que em abso­ luto êle não merece sobreviver, se não pode mais ser de todo o Estado da justiça e do direito, em suma, se êle não é mais absolutamente Estado; essa decisão é algo de terrível e tem por nome o dever de trair. Mas tal decisão, menos que qualquer outra, não pode permanecer no registro da não-violência; cedo ou tarde ela se inscreve de nôvo em um sistema da violência; pois não posso querer, com um querer positivo e deliberado, a morte de meu Estado, sem querer ao mesmo tempo, pela con­ junção dêsses dois cataclismas maiores, a guerra e a revolução, a instauração violenta de um nôvo Estado, de uma nova legiti­ midade, de um nôvo poder, o qual fará apêlo, também ê!e, a minha obediência armada e homicida. Ora, a objeção de cons­ ciência é outra coisa: recusa-se ela a situar-se na perspectiva do derrotismo político, cujo sentido completo só se realiza em uma outra violência, à qual o derrotismo entrega as chaves da cidade; a objeção de consciência quer continuar puro testemu­ nho; é isso justamente; mas então sua impotência em assumir tôdas as conseqüências políticas, tôdas as incidências sôbre a dis­

tribuição das fôrças no mundo a começar sôbre o destino físico,

existencial de meu Estado, essa impotê�cia é sua falha. Eis

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