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da culpabilidade não é a consciência de ter pecado, que é dor moral e não angústia, mas a consciência de ser potência de

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 153-163)

4 "Culpabilidade trágica e culpabilidade bíblica", Rev. d'Hist. et de Phil. rei., 1954.

5 É !saias a exclamar, na visão do Templo: "Ai de mim! estou perdido, pois sou homem de lábios maculados e vivo no meio de um povo também de lábios maculados, e nossos olhos viram o Rei, o Eterno dos exércitos!"

pecado; o que é angustiante na culpabilidade, é a vertigem da sedução. Jean Wahl, nos seus Études kierkegaardiennes, acla­

rava essa angústia pela expressão de Schelling: "o mal não é jamais, mas esforça-se por ser". Essa angústia gira, pois, como tôda angústia, em tôrno do possível: mas um possível que afeta no segundo grau essa possibilidade que sou, enquanto liberdade.

É possibilidade iminente de me degradar enquanto possibilidade

de ser livre. Voltamos a encontrar aí, elevada de um grau, a ambigüidade da história; via com efeito Kierkegaard na angús­ tia de culpabilidade uma mistura de atração e repulsão, uma simpatia antipática, dizia êle, ou uma antipatia simpática· essa ambigüidade, transformada em ambivalência, é precisam

;

nte a da vertigem, a da sedução.

Essa ,angústia também descobre o nada - ou do nada. Mas qual esse nada? É aqui que se deve, creio eu, desmembrar

a por demais s�dutora negatividade hegeliana, decompondo-a :onforme as art1eulações mesmas da angústia: êste nada não e nem a morte, nem a loucura, nem o contra-senso nem mesmo essa ativa negação do ser-lá que constitui a liberda

d

e é a vacui­ dade da própria liberdade, o nada de uma liberda

d

e escrava.

Q�e compete, pois, à reflexão, face a esta nova angústia?

É. p�eCIS_? antes de .mais nada afirmar fortemente que essa an­

gus!Ja .. na? s� esqmva a� campo de uma reflexão possível; a ex)lene�ci� smgular. de Kierkegaard pode ser universalizada pela mais classica das filosofias. Platão, no Crátilo, evoca aquelas

almas entregues à vertigem que inventaram, com a linguagem

do movente, a própria ilusão do movente· de modo mais forte

no Fédon, revela que a alma só está "pre

ada" ao corpo por s

ter tornado "o carrasco de si mesma"; é o cativeiro normal da alma que faz do desejo uma prisão: "o espantoso dessa clau­ sura, descobriu-o a filosofia, é que ela é obra do desejo, e é

talvez êle próprio que mais concorre para sobrecarregar o pêso de suas cadeias". Encontram-se em Plotino páginas impressio­ nantes. sôbre a fascinação e o enfeitiçamento da alma quando, sucessivamente, esta parece deixar-se invadir pelo exterior ab­ so

uto, ou se torna a fonte dêsse impulso para fora e para bmxo.

Assim a reflexão, ao universalizar as experiências mais sin­ gulares, procede a essa crítica de autenticidade que não tem

7ssado .de nos preocup�r; engloba nessa crítica as ciências mais !Versas, penso em particular no processo da idéia de culpabi-

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]idade de autoria do Dr. Hesnard em L'Univers Morbile de la

Faute: ' é excelente que a experiência da falta seja assim lavada

pela psicanálise; pois a verdadeira culpabilidade surge para além do temor de si mesmo, da autopunição, para além da fuga impulsiva para a neurose; surge naquele ponto de nós mesmos, que Kant chamava Wilkür e não Freiheit, no cerne dessa liber­

dade subjetiva definida pelo nascimento das intenções, das "má­ ximas" do querer, hoje diríamos do projeto. A crítica psicana­ lítica da culpabilidade ajuda assim a reflexão a distinguir uma angústia sadia de uma angústia simplesmente neurótica que nos traz de volta a um dos níveis já superados da dialética da an­ gústia. A essa crítica científica deve juntar-se uma crítica pro­ priamente existencial, que distinguiria a angústia autêntica dessa complacência na servidão que os clássicos chamavam de bai­

xeza e cujo processo Sartre retoma nas Mouches e alhures.

Por essa crítica de autenticidade chega a angústia à sua

verdade; é ela tanto quanto possível pensada; o modêlo de tal reflexão, encontro-o no ensaio de Kant sôbre o mal radical que Karl Barth e Karl

J

aspers concordam, por exceção, em ad­ mirar. Direi que nesse ensaio Kant pensou naquilo que Kier­ kegaard viveu e sentiu; Kant introduz ao conceito a angústia de Kiekegaard e me permite falar em verdade do Conceito de Angústia.

Perscrutar o mal radical é, para Kant, perscrutar uma certa máxima do livre arbítrio que serve de fundamento a tôdas as máximas defeituosas na experiência e na história; êsse funda­ mento, êsse Grund, permite-se reconhecer aqui e ali formas dis­

persas do mal empírico (Kant diz mesmo que êsse Grund torna

inteligíveis as ações más); mas, por sua vez, êsse Grund é ines­

crutável (unerforschbar) quanto à sua origem, pois, diz êle, não

há razão alguma compreensível ( kein begreiflicher Grund) de

onde o mal possa vir em primeiro lugar; eis, pois, perscrutada a angústia: um fundamento de ações más que não tem funda­ mento; um Grund que é Abgrund, diríamos. E o próprio Kant

aproxima dêsse inescrutável a narrativa bíblica da queda; aqui êle se antecipa a Kierkegaard, que sublinhará o caráter de even­ to do mal que começa e recomeça; êsse caráter de evento da falta revela assim sua afinidade com a estrutura da narrativa

que reveste a queda na Bíblia e em Platão.

6 Ver "Moral sem pecado" ou pecado sem moralismo, Esprit, se� lembro de 1954.

Mas a reflexão - como já o dizíamos nos graus prece­ dentes da angústia - a reflexão não se limita a criticar e a perscrutar a angústia; o ensaio kantiano é precisamente o mo­ dêlo de uma reflexão que bem se poderia dizer recuperadora. Refletir sôbre o mal radical da liberdade, é pesquisar ainda além das intenções sucessivas, das escolhas discontínuas que o tempo dispersa até aquela totalidade do eu; ao mesmo tempo des­ cubro aquela origem da ação da qual pode também jorrar a regeneração. A angústia ilimita assim o eu, aprofunda-o até

aquela raiz dos atos que denominamos a afirmação originária. 7

Como é isso possível? Kant estabelece em seu admirável

ensaio que é o mesmo livre arbítrio, o mesmo Willkür, que é ao

mesmo tempo inclinação ao mal -Hang zum Bosen - e des­

tinação ao bem - Bestimmung zum Guten; - sou "inclinado

ao mal" e "determinado ao bem", simul peccator et justus, dizia

Lutero. Creio que é a experiência do arrependimento ou, como diz Kant, da regeneração; a angústia retoma ali o seu impulso. Sem dúvida, o filósofo kantiano como tal nada sabe a respeito de um socorro, de uma graça, que seria como que uma nova criação e que o cristão denomina "remissão dos pecados", mas o filósofo reflexivo sabe ao menos que o ponto delicado em que o dom se pode articular com a liberdade, é justamente aquêle que a angústia desnudou.

Chegamos acaso a bom pôrto? Desejaria, para terminar, recolocar ràpidamente tôda essa dialética da angústia no hori­ zonte de uma última angústia; além da angústia vital da morte, a angústia psíquica da alienação, a angústia histórica do con­ tra-senso, até mesmo além da angústia existencial da opção e da culpabilidade, eis que chega a angústia pràpriamente metafí­ sica, a que mlticamente se exprime no tema da cólera de Deus: porventura não seria Deus mau? Essa espantosa possibilidade está longe de ser ociosa: a bondade de Deus é a última idéia conquistada e talvez ela só o seja como uma esperança, como

têrmo último, como �oxTov de tôdas as tribulações. Muitos

"crentes" chegam muito fácil e familiarmente à bondade do "bom Deus".

7 Manifesto, aqui, uma vez mais, minha dívida para com o Sr. Jean Nabert e seus Éléments pour une Éthique, que começam justa� mente com uma reflexão sôbre a culpa,

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A expenencia decisiva que nos conduz a essa angústia é,

creio eu, a experiência do justo a sofrer. A consciência he­

braica realizou-o após o exílio; o livro de Jó é sua expressãb mais alta. Jó é e malôgro de uma explicação do sofrimento como punição: eis com efeito o inocente (inocente por hipótese; Jó é uma hipótese dramatizada), o inocente entregue à desgra­ ça; os amigos de Jó, que são uma figura da teodicéia explicativa, desejariam que êle confessasse ser sua desgraça fruto do pe­ cado; Jó, porém, não se rende e seu protesto põe a nu e à flor da pele o enigma da infelicidade que não pode ser vinculada à sua falta. A angústia de culpabilidade não é, pois, a última an­ gústia: tinha tentado tomar sôbre mim o mal, olhar-me como aquêle que dá início ao mal no mundo, mas eis Jó, eis o Justo

a sofrer; eis o mal que vem ao homem, o mal que é desgraça.

E a nós, modernos, é sem dúvida a imagem da criança que s�fre que nos toca principalmente; a criança assume tôdo o destino

do homem vítima, destino confundido com o do homem culpa­

do, sem que qualquer correspondência, sem que qualquer pro­

porção pareça vincular a desgraça ao pecado. A existência em

sua facilidade seria acaso a Peste?

E, de repente, essa angústia, refluindo do cimo a escada da angústia para sua base, parece recapitular-lhe todos os graus. Apossa-se em primeiro lugar da angústia de culpabilidade da qual não sai mais, mas que retoma como que do alto; o '."6f3p> da tragédia grega procede dêsse pressentimento terrível que a culpabilidade do homem, sua i5f3p<>, ao mesmo tempo a per­ fídia de um deus que nos desorienta de propósito. O trágico grego, ao menos o de Ésquilo, nasce da coalizão dessas duas angústias: a angústia de um fundamento mau e a angústia de um homem culpado.

O pensamento hebraico parece à primeira vista muito lon­ ge dessa concepção trágica: e, no entanto, a possibilidade do caos, do malefício original, ressurge por diversas vias: o Deus dos Profetas revela sua exigência absoluta no meio dos raios e da destruição, no furor da história; sua santidade é uma san­ tidade terrível. Javé é também o Deus que endurece; e na narrativa da queda, a serpente desempenha uma função enig­ mática que atesta não ser o homem o perverso absoluto; não é jamais senão o perverso por sedução; tem portanto, fora de si, um apêlo à falta que sobe de sua frágil afetividade e do

espetáculo caótico que lhe proporciona a criação; e se "Satã" precede "Adão", como é êle possível?

De próximo em próximo, a angústia do fundamento mau também engloba as outras angústias: o contra-senso da his­ tória não será acaso a mais possante imagem do caos? As filo­ sofias da história vêem no "negativo" uma mediação em dire­ ção a novas sínteses; mas calam tudo quanto não é recupe-! rável em uma significação mais vasta e mais alta; calam aquilo que para nada serviu, aquilo que é refugo puro e simples aos olhos da racionalidade da história : o sofrimento dos pequeni­ nos,' dos humildes executantes, a insignificância de vidas sem h?rizonte. e. sem objetivo; êsse "negativo" que, ao que parece, nao medmttza absolutamente nada, a angústia metafísica o in­ corpora à sua emoção.

Retoma-se, finalmente, a angústia primária da morte na angústia de última categoria; que o homem ensina o sentido das coisas, que estabelece objetivos indefinidos, que êsse homem

deva morrer, eis o sinal mais gritante do aparente contra-senso

do fundamento. Eis por que o Apocalipse fala da morte como do inimigo a ser vencido. Existe, pois, entre tôdas as formas da angústia uma espécie de circularidade ou comutatividade que faz com que a angústia primeira seja também a anoústia der-

radeira. o

A que preço pode a reflexão ser reflexão recuperadora: tem ela com que vencer o fantasma do "Deus mau"? Não ten­ tarei m�s�arar o salto que representa o acesso ao ato de espe­ rança, umco a meu ver capaz de enfrentar a angústia derra­ deira; nenhuma apologética, nenhuma teodicéia explicativa são capazes de fazer as vêzes da esperança. J ó é finalmente conso­ la

?

o, não por uma explicação, mas por uma meditação do so­ fnmento que vai desembocar numa espécie de encontro do Deus vivo. .--

Não é, pois, .�a

ntuição . que termina a reflexão; porque, m�sm.o uma. consctenctaA que tivesse assumido integralmente seu p;opno sofnmento e nele tivesse reconhecido o caminho pos­ SI�el de sua própria perfeição, teria apenas entrevisto que a colera

?

e Deus é para nós a aparência do amor de Deus. Tê­ -lo-m. so entrevisto, porque o sofrimento dos outros ainda perma­ necer!a. para el� o ".mis�é:io da iniqüidade". Só a esperança es­ catologiCa, e nao a mtmçao, nem o saber saúda de longe o fim do fantasma da cólera de Deus. '

Cuidado, porém. Não podemos prevalecer-nos dêsse ato e partir sossegados como após o happy end de um filme triste O ato de esperança, sem dúvida, pressente uma totalidade bo

do ser na origem e no fim de um "suspiro da criação"· mas êsse pressentimento não é senão a idéia reguladora de me

tato metafísico; e permanece inextricàvelmente misturado à angústia que pressente uma totalidade pràpriamente insensata. Que "isso seja bom" -wie auch es sei das Leben, es ist gut - não o percebo: espero-o na noite. E depois, estou eu na esperança? Eis por que, embora seja a esperança o verdadeiro contrário da angústia, em nada defiro de meu amigo desesperado; estou pre­ gado pelo silêncio, como êle, em face do mistério da iniqüidade.

Nada mais próximo da angústia do contra-senso do que a tímida esperança.

E, no entanto, êsse ato ínfimo opera em silêncio e simul­ tâneamente mostra-se e esconde-se em seu poder de recapitular por sua vez todos os graus da afirmação originária. É por êsse poder de recapitular que ela afiara à reflexão como num es­ pelho quebrado; é ela que anima à socapa essa retomada de impulso do eu profundo fustigado pela angústia de culpabilida­ de, que reassume o otimismo trágico em face da ambigüidade da história e subentende a própria energia psíquica e o simples querer-viver da existência quotidiana e mortal.

A esperança entra, pois, no campo da reflexão, como re­ flexão da reflexão e pela idéia reguladora de nm todo do s.er bom; mas, diferentemente de um saber absoluto, a afirmação originária, secretamente armada com a esperança, não opera nenhuma Aujhebung tranqüilizadora; ela não "supera" mas "en­ frenta"; não reconcilia mas consola; eis por que a angústia a acompanhará até o último dia.

NEGATIVIDADE E AFIRMAÇÃO ORIGINARIA *

Ao longo desta meditação, uma mesma questão se mani­ festa. Qual é essa questão? É difícil enunciá-la, sem um certo preparo; pois não é só a resposta, é a própria questão que se irá elaborando progressivamente. É mais fácil declarar aquilo que suscitou a questão: o desejo de ver com clareza em minhas próprias reticências face a filosofias que, a partir de Hegel, fa­ zem da negação o eixo da reflexão, ou chegam mesmo a iden� tificar a realidade humana à negatividade; o sentimento de que Hegel representa uma censura, uma mutação em relação ao conjunto das filosofias anteriores e que, entretanto, é possível e necessário recuperar uma filosofia da primazia do ser e do existir que leve em consideração, de maneira séria, tal floresci­ mento das filosofias da negação. Tal é, muito por alto, a moti­ vação subjetiva dêste estudo. Mas não se trata ainda de uma questão rigorosa; separada de suas preliminares, a questão seria a seguinte: tem o ser prioridade sôbre o não-ser no coração do homem, isto é, dêsse ser que, precisamente, se caracteriza por singular poder de negação? Posta em tais têrmos e abrindo mão das diversas fases de sua própria elaboração, a questão parece abstrata; havemos de ver, entretanto, que ela determina todo um estilo filosófico, um estilo na linha do "sim" e não na do "não", e, quem sabe, um estilo de alegria e não de angústia. 1 Deixemos, pois, essa última questão - que só conhece­ mos por fôrça de sua própria resposta - esvanecer-se no ho-

* :&te texto é próprio da segunda edição.

1 A êsse motivo cardeal de pesquisa, a propósito da negação, acresw centa-se o seguinte: não existe uma negação, o mal, cujo enraizamento na afirmação não pode ser compreendido? Não será essa negação que infecta tôda a filosofia da negação e fá-la parecer originária? Mas essa <I,_uestão deve ser mantida em suspenso, a fim de se poder levar a bom termo a que se elabora nestas páginas.

3IZ

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rizonte e concentremos nossos esforços naquilo que poderia cons­ tituir uma via de acesso ao problema.

Por onde começar? Pela própria reflexão sôbre a reali­ dade humana. Tentaremos ultrapassar, pelo interior, de certo modo, o ato de refletir, a fim de recobrar as condições antoló­ gicas, em estilo de não-ser e de ser, da reflexão.

Mas que significa partir da reflexão, do ato de reflexão? Significa, mais precisamente, partir dos atos e operações nos quais adquirimos consciência de nossa limitação superando-a;

portanto, da conexão entre uma provação de limitação e um

movimento de transgressão de tal limitação. É lá que encon­

traremos a negação principal e fundamental, a que se vincula

à própria constituição da reflexividade; a provação da lhnita­ ção nos parecerá comprometida em um ato de superação que, por sua vez, se exibirá como de-negação.

Isolado êsse momento negativo, elaborar-se-á a questão pro­ priamente ontológica: atesta a de-negação um Não-ser, ou um Ser cuja negação é o modo privilegiado de manifestação e ates­ tação?

J . LIMITAÇÃO E SUPERAÇÃO

É-nos, pois, necessário estabelecer essa proposição inicial: que a experiência específica da limitação se apresenta de im­ proviso como experiência correlata a limite e a superação de limite.

Essa estrutura paradoxal do existir humano deve ser des­ crita dêsse modo e não fragmentada em duas: como se fôsse possível, num primeiro tempo, efetuar uma descrição do ser-no­ -mundo (por exemplo, na percepção ou na afetividade) e depois, num segundo tempo, manifestar a superação dêsse ser-no;mun­ do (por exemplo, pela palavra ou pelo querer) . Num so mo­ vimento, num só jato, o ato de existir encarna-se e transborda da sua encarnação.

É antes de tudo na estranha e insólita relação que tenho com meu corpo e por êle com o mundo que se deve procurar o núcleo de uma experiência de limitação.

Por quais traços minha relação com o corpo e, por êle, com o mundo, manifesta o limitado? Penso que é resposta apres­ sada dizer que a função de mediação do corpo é finita por sua

própria natureza. A bem dizer, .aquilo que meu corpo revela ser em primeiro lugar é um abnr-se para. . . Antes de ser a oclusão da concha de que fala Platão e, com maior razão, o Túmulo dos úrficos, é abertura. E isto de muitas maneiras: abertura da carência pela qual me falta o mundo; abertura do próprio sofrimento pela qual me verifico exposto ao exterior, suscetível às suas ameaças, aberto como um flanco desprote­ gido; abertura da percepção pela qual recebo o outro; precisar de. . . ser vulnefável, receber, eis as três maneiras irredutíveis entre si de ser aberto ao mundo. Mas não é tudo: pela expres­ são, meu corpo expõe para fora o que lhe é interior; como sinal para outrem, meu corpo me torna decifrável e voltado para a mutualidade das consciências. Enfim, meu corpo oferece ao meu querer um feixe de podêres, de habilidade, amplificados pelo aprendizado do hábito, excitados e desequilibrados pela emoção: ora, êsses podêres tornam-me o mundo transitável, proporcio­ nam-me sua utilização, pelas virtualidades que me conferem sô­ bre o mundo.

Não é, portanto, a limitação que me surge em primeiro lugar, mas a abertura. Quais os traços dessa abertura que a qualificam como finita? Será apenas a dependência face ao mundo inscrita na abertura? Será o fato de faltar-lhe . . . , de sofrer . . . , de receber . . . , de exprimir . . . , de poder? Kant pa­ recia admiti-lo tàcitamente, pois que se refere a nós outros, sêres finitos, para designar sêres que não produzem a realidade de seus pensamentos, mas a recebem, em oposição a um ser dotado de uma intuição originária, no sentido de criadora, que não mais teria objeto, mas daria a si mesmo aquilo que êle vê (Ent-stand e não mais Gegen-stand) . Ora, é difícil ver no mun­ do um limite para minha existência. O que há justamente de es­ tupendo na função mediadora do corpo é que êle me abre para o mundo; em outras palavras, êle é o órgão de uma relação

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 153-163)

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