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LEGITIMIDADE DE UMA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 31-35)

Nesta altura de nossa reflexão o dilema mortal tornou-se deveras paradoxo vivo: devemos renunciar a uma definição de

J, LEGITIMIDADE DE UMA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

Pretende a sociologia do conhecimento ser uma ciência:_ vê-se, de ínício, que ela parece responder às questões que a história da filosofia deixa sem resposta; na medida em que não é ela mesma senão uma coleção de "monografias" sôbre os "grandes" filósofos. Qual o critério do "grande" filósofo? Qual sua significação, uma vez is-olada das correntes e das tradições ligadas aos pensadores . de menor envergadura? De que modo se encadeiam as filosofias?

A sociologia do conhecimento, voltando as costas a uma

história imanente das idéias regulada unicamente pela estrutura ' dos problemas e das s-oluções filosóficas, tenta recolocar a tendida história das idéias na dinâmica total das sociedades. se poderia negar a origem filosófica de semelhante

particular de seus pressupostos ge.sch,iclztsJ?hilosop.hisch

bamento polêmico de uma · hegeliana da Consciência

do Espírito que atinge, rtos menos dialéticos dos marxistas, uma teoria extrema da "consciência-reflexo", obstrução mista" para o trabalho industrial, no qual o homem surge o produtor de sua existência social, esquematização do histórico na luta de classes, teoria da "alienação" tação nietzscheana dos "pontos de vista" pelos

teoria das mentiras vitais - teoria dos tipos culturais e da corrência dos grandes sistemas culturais, etc.) .

Não se poderia argumentar, contra o projeto de uma cia dos condicionamentos econômicos, sociais, culturais do

1 Além da bibliografia do marxismo, c f.: G. LUKÀcs,

und Klassenbewusstsein, 1923. MAX ScHELER, Die die Gesellschaft, 1926. KARL MANNHEIM, Ideologie und

(a trá.d. inglêsa inclui o importante artigo "Wissenssoziologie"

woerterbuch der Soziologie por WIERKANDT, 1931). PITIRIM Social and Cultural Dy11amics, t. Il: Fluctuations of systems

Ethics and Law, 1937. ROBERT MBRTON, "Sociologie de la

ce" in Sociologie au xxe siecle, por G. GURVITCH e MOORE, QUES MAQUET, Sociologi� de la Connaissa11ce, 1949.

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sarnento, com base na origem filosófica de semelhante projeto se se empreende tratar como hipótese de trabalho e como "teo:

ri�" - no sentido da.

:

'te�ria física" - essas filosofias implícitas:

diferentemente das ciencias da natureza, não encontra a socio­ logia no conhecimento comum e nos primeiros graus do conhe­

cime�to cientifico as articulações espontâneas de seu objeto. A

"teona" desempenha uma função até na pesquisa dos fatos·

supõe esta de início uma certa concepção prévia dos vínculo

a estabelecer entre o pensamento e a· existência histórica e so­ cial; se êsse vínculo fôsse puramente funcional, a pesquisa não teria outro guia, salvo a probabilidade da relação entre as va­ riáveis em causa e a imensa complexidade das relações ínter-hu­

manas, que impediria definitivaqtente que se começasse 0 em­

preendimento; mas o sociólogo busca relações não sàmente fun-

. cionais, mas significativas, oo�tidas em determinados exemplos

bem esco

!h

ido�: por exemplo, ele compreende antes de qualquer

pesqwsa· mdutJva que uma mterpretação do mundo pode corres­ ponder aos ínstintos de um índivíduo, de um grupo, de uma

essa motivação "patente" da Falsches Bewusstsein exem­

relações "latentes" que se pode legitimamente perquirir sistemático. São essas relações significativas que a so' ' ciolc>gia do conhecimento antecipa no limiar de sua busca numa Eis por que não causa escândalo que o campo de ínvesti­

dessa jovem ciência seja desde ínício dividido entre hipó­ de trabalho divergentes. Devemos a essa diversidade de

pesquisas valiosas como as de Max Scheler, de Karl

de P. A. Sorokin, etc.

' Conseqüentemente, o ínteressante da soci-ologia do conhe­ . . é o método de verificação que ela aplica às correlações

"co

ecimen

?" e .a conjuntura social ou cultural; qual­

seJa a vanavel mdependente que serve de referência

. se trate classe no sentido marxista, ou de qualquer

ou mesmo da dependência face às "men­ de Sorokin - a questão úuica é saber se

�o

ecimento é capaz de transformar, por uma

met?

Ica das correlações, suas hipóteses de traba­

emp)ficas; se ela o conseguisse, a relação entre um pensamento e a existência s-ocial seria não sàmente significativa, compreendida por simpatia, mas uma

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i��� de variável dependente a variável independente . • a uma lógica da probabilidade.

. . . Dêsse ponto de vista só nos pode�os f�licitar pela

!

ntro­ dução por Sorokin do '!'!'ss study na soci�Iogi� do ;o�hecimen­ to· é perfeitamente legitimo procurar medrr a mfluencia de um p

e'

nsador, de uma escola, de um movimento filosófico, lite­ rário e, de modo geral, cultural, em função de critérios obje­ tivos e assim determinar quantitativamente as correntes de pen­ samento; a sociologia do conhecimento acha-se aqui em terreno sólido.

Tais tentativas atestam aquilo que pode ou não pode a · sociologia do conhecimento.

li. LIMITES DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

A reflexão sôbre <is limites da sociologia do conhecimento é uma reflexão sôbre a compreensão em história da filosofia.

1 . É digno de nota que hipóteses de trabalho tão dife­ rentes como as de K. Marx, Mannheim, Lukàcs, de um lado, e de Sorokin, do outro, limitem a explicação a modos de pen­ samento ut!picos". No sentido de Marx, como no de Mannheim, a ideologia é anônima; é o racionalismo mecanicista, ou o ro­ mantismo enquanto "tipos" que se acham submetidos -à expli­ cação ideológica; é o anarquismo anabatista, o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo comunista que constituem os ·marcos da história mannheimiana da utopia. O mesmo acon­ tece com Sorokin: quais são com efeito as "correntes de pen­ samento" por êle finalmente relacionadas com os três grandes sistemas culturais que, ao seu ver, se alternam na história (sis­ tema "sensitivo", isto é, usensate", "ideacional" e "idealísti� co")? São justamente essas solenes abstrações que constituem a chaga da história da filosofia: empirismo, racionalismo, ceti­ cismo, etc. Não por acidente, mas por uma questão de prin­ cípios, não pode a sociologia do conhecimento encontrar senão "gênei<os comuns", e não "essências singulares''. É aqui que a história· da filosofia ultrapassa a sociologia do conhecimento; a compreensão exige que o filósofo historiador, abandonando tôda "tivologia", renunciando a visões panorâmicas sôbre "correntes de pensamento", se comunique de cada vez com uma obra sin­ gularizada; entendamos: não com a subjetividade do autor - o que seria livrar-se da sociologia para cair na psicologia --mas

com o sentido da obra, conf'orme sua coer�ncia interna; é êsse sentido da obra, com seu desenvolvimento próprio, que cons­ titui para o historiador da filosofia uma essência singular. Ora, sob os gêneros comuns se ocultam· as essências singulares.

2 . Esta primeira limitação conduz-nos à seguinte: antes

de ser uma atitude, uma visão do mundo, em suma, uma res­ posta, uma filosofia é a emergência histórica de uma proble­ mática original. O grande filósofo é aquêle que estabelece uma nova maneira de questionar. Ora a singularidade que . excede tôda tipologia é, antes de tudo, a singularidade das próprias pro­ blemáticas.

. Por princípio, permanece a sociologia do .conhecimento aquém do radicalismo da problemática filosófica e, por conse­ guinte, da singularidade das grandes filosofias; sua hipótese mais geral é que "todos os fenômenos supra-orgânicos são sócio-cul­ turais" (Sorokin) . Sofre a filosofia de início uma redução so­ ciológica que .assume forma diferente conforme as escolas: as­ sim, as grandes constantes culturais, cuja recorrência Sorokin estabelece, são como que respostas sem questionante; chega-se a êsse paradoxo que todos os sistemas culturais estão vincula­ dos a "p�oblemas eternos" perfeitamente anônimos, a questões em si. A tarefa da história da filosofia é reassumir a posição dessas questões. Em Marx e sociólogos aparentados, o pen­ samento só é reconhecido enquanto fator de dominação; o poder radical de questionar é sacrificado ao seu "pêso" social; é pro­ jetado no plano em que o homem produz pelo trabalho; por conseguinte, não há mais problemas específicos do discurso hu­ mano, nem como palavra instituindo significações, nem como

lagos universal que se apodera da palavra do homem. Essa redução prévia condiciona uma boa sociologia do conhecimento, particularmente no nível em que as idéias se reduzem por si mesmas à ideologia; ela malogra no limiar das grandes filosofias enraizadas nas possibilidades menos industriais da palavra hu­ mana. A palavra, por sua capacidade de significar universal­ mente, excede mesmo o trabalho e possui em germe a ironia

do pensador em relação à sua própria motivação social.

A história da filosofia é a compreensão da filosofia por si mesma, a partir dessa "ironia" primordial. Resta saber se essa retomada, pela história da filosofia, das possibilidades lllais fundamentais de questionar e de significar é, por sua vez, satisfeita por uma filosofia da história.

HISTóRIA DA FILOSOFIA E HISTORICIDADE *

Têm estas reflexões por ponto de partida o ofício de his­ toriador da filosofia. A questão que me proponho é a se­

guinte: as dificuldades que o historiador ·da filosofia encontra e resolve pràticamente não são acaso reveladoras de dificulda­ des inerentes à história em geral?

Minha hipótese de trabalho é que a história da filosofia .. toma manifestos aspectos da história que sem ela não apare-·

ceriam; encerra ela um poder de manifestação, no sentido forte da palavra, dos caracteres históricos da história, na medida em que esta última se reflete na história da filosofia, tornando-se consciente de si mesma sob a forma de história da filosofia. Meu modo de proceder será regressivo. Partirei, na primeira parte, de certas contradições que se vinculam à própria natureza da história da filosofia. Numa segunda parte, procurarei dedu­ zir a lei geral da relação entre a história da filosofia e a his­ tória pura e simples. Na terceira parte, procurarei, à luz dessa lei geral, aclarar a historicidade de tôda história pela estrutura da história da filosofia.

/ 1 . As "aporias" da compreensão em história da filosofia. Os problemas de método dizendo respeito à história da filosofia e à compreensão em história da filosofia podem ser agrupados _em tôrno de dois temas. Em primeiro lugar, a his­ tória da filosofia não se deixa unificar sob um estilo úulco; exis­ tem, neste domínio, dois pólos, duas idéias-limite da compre­ ensão. O primeiro dêsses pólos é o sistema. O conjunto das

*

te texto foi especialmente juntado à segunda edição.

fiiosofias não formaria, no caso limite, senão. uma única filo­ sofia, da qual as filosofias históricas seriam os momen\OS. Uma grande parte do trabalho do historiador acha-se polarizada por êsse modêlo hegeliano. Na medida em que se procura com­ preender, no campo da história da filosofia, é-se forçosamente obrigado a estabelecer seqüências. Tais seqüências poderão ser seqüências curtas, seqüências parciais, mas o tipo de inteligibi­ lidade que se põe em ação será já um tipo qne se poderia dizer la.rgamente hegeliano; uma filosofia será compreendida na me- dida em que fôr situada num determinado desenvolvimento. To- dos os historiadores da filosofia, mesmo aquêles que nutrem prevenções contra o "sistema", praticam tal gênero de compre­ ensão. Por exemplo, a seqüência: Descartes, Spinoza, 'Leibniz, Kant, é clássica na história da filosofia francesa; com os ale- mães (afinal foi o próprio Hegel que impôs êsse esquema e veremos daqui a pouco o que há de malévolo na operação) tem-se uma seqüência: Kant, Fichte, Schelling, Hegel. Compre­ ender, aqui, é compreender através do movimento de conjunto, " na totalidade. Por exemplo, de que maneira Hegel, em suas Lições de história da filosofia, compreende Spinoza? Spinoza é a filosofia da substância sem a subjetividade. Privada a subs­ tância do momento da reflexão, a subjetividade "cai" para fora da substância; é o que faz com· que a filosofia possa ser uma Ética. Em conseqüência, compreender consiste erri ler Spinoza de diante para trás, a partir de uma filosofia que tenha inte­ grado a subjetividade na substância; é essa espécie de sombra trazida pela derradeira filosofia sôbre a primeira que lhe con- . . inteligibilidade.

Tal é o primeiro modêlo de compreensão em história da e seu pólo-limite: o sistema.

Temos, porém, outro tipo de compreensão, que consiste em orripreeJ!de:r cada vez uma filosofia como filosofia singular. E filosofia singular será tanto melhor compreendida, quanto se tiver ido até o extremo de sua singularidade. Spinoza será mais uma variedade de panteísmo, ou de· racionalismo; mais haverá "ismo" para designá-lo; êle será êle próprio, à compreensão filosófica; compreender Spinoza consis­

referir tôdas as suas respostas a tôdas as suas questões;

_ de Spinoza não será mais uma resposta a questões em ·. nao será mais em relação a problemas anônimos que se

determinará Spinoza, entre outros e cóntra outros :l'ilóso:l'os; ao contrário, o spinozismo procederá de uma questão que êle terá sido o único a formular; por conseguinte, sua verdade incom­ parável consistirá na adequação de sua resposta à sua questão.

A filosofia considerada torna-se então uma essência singular (em lugar de filosofia, seri� melhor dizer o filosofema, isto é, o sentido da obra e não mais a subjetividade de seu autor, en­ quanto indivíduo; trata-se, sem dúvida, da obra como objeto cultural, tendo em si mesma seu sentido, secretado de certo modo por si mesmo). Nesse limite extremo, as filosofias sin­ gulares são radicalmente isoladas; cada uma constitui um mundo total, no qual se deve penetrar lentamente, por uma espécie de familiaridade que jamais se completa, exatamente como se pro­ cura compreender um amigo, sem jamais confundi-lo com qual­ quer outro; ora, não há sistema no qual eu possa inserir meus amigos; cada qual é amigo de maneira única e incomparável. Esses "tipos" de leitura se chocam contra um duplo limíte. De um lado, é difícil ir até ao sistema, e talvez mesmo em Reger nem tudo seja sistema. Da mesma forma, é difícil ir até à singularidade; o historiador sempre se detém numa espécie de compreensão intermediária, no nível dos gênems comuns, sem atingir a essência singular; êsses gêneros comuns, bem os conhe­ cemos: chamam-se realismo, idealismo, espiritualismo, materia­ lismo, etc. Pelo fato de não se chegar à singularidade, pára-se na tipologia; e é verdade que a tipologia é um meio de com­ preender, cuja função irredutível se nos patenteará · dentro em pouco. Se se avança além do- tipo, do gênero comum, só existe uma maneira de designar a filosofia de Spinoza . . . é o spino-

, zismo; é precis:o produzir-se um "ismo" à sua medida. Por con­

seguinte, em lugar da amplidão e do sistema, visarei à intimi­ dade e à singularidade.

Sucede, porém, que na situação limite uma filosofia, assim isolada, não se acha mais na história, não é mais um ri:tcJm.ento da história, mas pode-se dizer que tôda a história está nela. t! nela que se contrai a história anterior, concentrada em suas ·

fontes;· em suas origens; é nela também que se anuncia todo desenvolvimento futuro. Tem ela seu passado e futuro, impli­ cados numa espécie de presente absoluto, que faz disso tudo uma essência eterna.

Tal é, pois, a primeira verificação da qual desejaria partir: a compreensão histórica se refere a dois modelos que, como em ·

breve veremos, suprimem um e outro a história: o sistema e a essência singular.

A segunda verificação é que essas duas leituras da his­ tória da filosofia correspondem a duas exigências, a duas espe­ ranças, e, finalmente, a dois modelos de verdade, cada um dos quais se reporta ao ontro. Com efeito, que é que espero da primeira leitura da história da filosofia? Empregamos faz pouco a expressão "totalidade". Mas, precisamente, por que procuro eu compreender pela totalidade? Poder-se-ia dizer que a tota­ lidade é o "grande desvio" da consciência própria. Dizia Platão que, para compreender � alma, era preciso ler-lhe a. estrutura

· nas grandes letras da cidade. Da mesma forma, leiO as pe­

quenas letras da consciência própria n�s grandes letras

?":

�is­ tória da filosofia. É la que descubro todas as suas possibilida­ des, realizadas, porém, nas obras

?

aquilo que H��el _deno�

a Espírito. Justamente por êsse movimento, a consciencia. propr�a se torna o Espírito, em vez de permanecer a pobre smgulan­ - dade anedótica de minha própria vida. Em sentido inverso, . posso dizer que a história se torna consciência própria, porque ordem da história coincide com o ato de seriação, radical e ordenado, de uma teleologia da consciência pró­

A história se torna humana, recebe qualificação humana prestar-se a tal leitura; torna-se perfeitamente judiciosa ao ao nível da série dos pensamentos filosóficos, ao tender o sistema. O que é digno de nota, é que minha consciên- se torna pensamento ao mesmo tempo que a história. E é

que opera essa dupla promoção: da consciência hu­ erguendo-se à claridade da expressão filosófica, e da bis­ atingindo a sua racionalidade. O que espero dessa as­ da história na história da filosofia, e desta última no

é a exaltação de um sentido.

Devo apenas admítir de imediato que essa exaltação é uma de Pirro· o triunfo do sistema, o triunfo da coerência, da ra

ionalidade deixam um gigantesco resíduo: êsse

justamente a história. Por quê? Temos antes de mais a polpa da história vivida pelos homens que, por con- par�ce insensata; é a violência, a loucura, o poder, o nada disso pode introduzir-se na história da filosofia. nada seria ainda, pois que, face à violência, no sen­ _que a entende Eric Weil, sou obrigado a escolher entre e o contra-senso. Sou filósofo e escolho o senso; tanto

pior para o eontra-senso que permanece. Mas, o que é muito

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 31-35)

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