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J e Esmagadora responsabilidade de bem falar �' � e que nao mamfesta a realidade, mas significa na verda-

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 105-114)

gage.2 BRICE PARAIN, Recherches sur la nature et les fonctions du 1011•

A expressão dubitativa

Mas a palavra não é sõme!'te i�perativa: é te�p_o de afas­ tarmos as restrições impostas a analise por uma ftcçao mteJra­ mente pedagógica; d

�se mo

o, uma reflexão sôbre a _obra supo­ sitiva da linguagem Ja exced1a o quadro da palavra llllperallva. A palavra que quer dizer, que procura compreender e as­ pira compreender, é também palavra dubitativa, palavra opta­ tiva, palavra poética.

O imperativo faz fazer. A palavra dubitativa interroga: que é? que é que isto quer dizer? Só existe interrogação, porque existe dúvida; questão e dúvida. Assim como a ferramenta é costume e sono, a palavra em seu primeiro movimento é cos­ tume e sono: dizem que. . . Os "faz-se assim" apóiam-se nos "dizem". As civilizações estagnantes adormecem sôbre seu te­ souro de utensílios e de frases.

A crença, como movimento espontâneo da existência pré-crí­ tica, impregna com sua quotidianidade tôdas as sua_s maneiras de trabalhar e exprimir e põe de conserva na trad1ção morta gestos e locuções. A palavra não é o despertar do utensílio, como faz pouco dizíamos, senão porque a palavra é o despertar da expressão "credes"?

A palavra dubitativa está voltada para outrem, para mim, para o sentido. A palavra dubitativa é por excelência a palavra que se dirige a outrem. O outro é o homem da resposta. E na resposta êle é integralmente segunda pessoa; não é mais o "isto" característico do produto manufaturado; e sim o "tu" que res­ ponde. Ora, a palavra imita o trabalho industrial quando quer produzir um efeito psicológico pela maneira pela qual o trabalho obtém efeito, isto é, sem reciprocidade do produto face ao pro­ dutor. Assim é a palavra da propaganda, que extrai seus efeitos psicológicos da maneira pela qual a máquina obtém uma forma eficaz de uma peça trabalhada. Essa expressão saiu por com­ pleto do ciclo da interrogação e da resposta. Ela produz; não chama. Só a dúvida converte a palavra em pergunta e a interro­ gação em diálogo, isto é, em pergunta, tendo em vista uma

resposta e resposta a uma questão.

O mundo do diálogo penetra e extravasa do mundo do tra­ balho: penetra-o, porque não existe trabalho sem divisão do trabalho, nem divisão do trabalho sem comércio verbal que dis­ tribua as tarefas e faça aflorar o sentido social do trabalho

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humano. Mas o mundo do diálogo extravasa também do mun­ do do. trabalho; extravasa-o já nos postos de trabalho: a psi­ cossocwlogra do trabalho parcelar e repetido ensina-nos curiosa­ mente que os trabalhadores capazes de se desembaraçarem men­ talmente de um trabalho tanto mais eficaz quanto mais auto­ mático apresentam melhor rendimento quando podem "conver­ sar" durante o trabalho. Já nisto a palavra ajuda o trabalho pelo fato de compensá-lo, porque ela distrai. Que dizer então

do diálogo como lazer, êsse lazer onde tantos homens vão cada

vez mais buscar sua verdadeira expressão, tornando-se o traba­ lho o sacrifício social necessário à sua conquista?

Mas nós prolongaremos essas diversas incidências na pala­ vra sôbre o trabalho a propósito da civilização do trabalho.

:E:ste apêlo a outrem, que se volta para mim mesmo, é o problema essencial que cria o espaço da reflexão e o espaço da liberdade: "eu me pergunto se . . . " O diálogo interior é a própria reflexão. A mim mesmo 1ne constituo o homem da

ironia. Por conseqüência, o verme irrefutável se acha no fruto

de meu próprio costume, na árvore do trabalho, na cepa da crença. A expressão é crítica e torna crítica tôda posição. Começa o fim da "inocência". A inocência é a ordem do "exis­ te": "existem" coisas, existe a natureza; existe a história, existe a lei do trabalho, existe o poder daqueles que mandam. A coisa, o fazer e o fazer-fazer são virtualmente postos em questão pela palavra dubitativa: mundo, trabalho e tiranos são contes­ tados globalmente pelo poder corrosivo da palavra. As grandes filosofias da questão - e do "por em questão" - Sócrates, Descartes, Hume, Kant, Husserl, - não fizeram senão libertar e levar ao auge êsse gênio dubitativo da palavra. Nesse parti­ cular, elas são a alma de tôda cultura rebelde às sínteses sem­ pre prematuras que propõem e impõem as civilizações da cren­ letiva, quer seja a toga, a espada ou a ferramenta o tema

de tais civilizações.

pala��a dubitativa, mais radicalmente ainda, opera a re­ v�Iuçao dec!Slva na ordem das significações: introduz a dimen­ sao .do possível na tessitura sem vazios do fato bruto (no duplo

sen�1

o do estar:feito e da sua verificação). Ao criar o espaço de JOgo da possJbl!Jdade, recupera a palavra o sentido do real - do faz�r � do feito, - a partir do sentido possível; assim fazem a le1 científica, a lei jurídica. É também êsse "desapêgo" do pensamento por meio da questão, que torna possível todo

"empenho", como um movimento posterior à reflexão, como um ato responsável.

Se se examina de perto o caso, é o pensamento dubitativo 0 verdadeiro instituidor de todo pensamento que nega e que afirma e finalmente dos mais simples enunciados. Pois a res­ posta

d

ecisiva, a resposta primeira e aquela que diz não, aquela que introduz a negatividade nas significações : tudo aquilo que é é· mas a palavra pode dizer aquilo que não é; e assim se pode d

s

f

azer aquilo que está feito. Negar é riscar um sentido pos­ sível. Gesto improdutivo por excelência; gesto que não traba­ lha· mas gesto que introduz na crença espontânea, na posição ing

ê

nua de um sentido, o traço decisivo que ri�ca de P?nt� a ponta e retira o que fôra proposto, como se depoe um pnnCJpe. Doravante, o mundo da palavra é aquêle em que se nega. Eis por que êsse mundo é também aquêle em que se afirma: a afir­ mação sublinha com um traço aquilo que a negação poderia riscar, ou de fato riscou; confirma aquilo que é in

irmado _ pela negação. É no mundo da palavra dubitativa que eXIstem contes­ tações. É no mundo das contestações que há afirmações.

Pode-se assim dizer que mesmo os enunciados que, aparen­ temente, não fazem senão contestar fatos, são conquistas do pensamento dubitativo; pois um enunciado é como uma res­ posta cuja questão foi omitida. Não há narrativa que não r�s­ ponda virtualmente à pergunta: que aconteceu? Como aquilo se passou? E tôda ciência é como uma resposta aos embaraços da percepção, erigidos pela filosofia em dúvida s

?

bre o sentido das qualidades sensíveis e em denegação do prestígiO do aparecer. Somente essa dúvida e essa denegação têm podido abrir essa área de possibilidade onde pôde aparecer lei tão abstrata, tão irreal como por exemplo o princípio âe inércia, ao qual ne­ nhuma docilidade às aparências tinha podido levar e do qual saiu no entanto todo á pensamento mecânico.

A Invocação

Seria no entanto pouco eqüitativo encerrar todo o poderio da palavra na alternativa do imperativo e da crítica, mesmo alar­ gando à afirmação e à enunciação o império da palavra du­ bitativa.

Dizia Protágoras que as quatro raízes da palavra eram o comando, o voto .ou a oração, a questão e a resposta.

fisse título - eukholé: voto, oração - abre uma vasta carreira da palavra que subtrai o homem que fala à alternativa da injunção - que por fim se perde no tFabalho - e da dúvida - que por fim dissolve o homem trabalhador.

É, a bem dizer, outro império que aqui se abre: o pedir, que tudo espera de outrem, que oferece o homem à benevolência alheia, já não é mais eu obreiro, como não é eu irônico, mas se assim se pode dizer, eu oraute. É uma palavra humana que não é mais absolutamente uma palavra desencantada: voltada para Deus, ela invoca na língua do côro da tragédia grega, na do salmo hebreu, na das liturgias cristãs, naquela, tão próxima do cotidiano, da oração espontânea do crente. Voltada para o mundo, ela quereria ser o canto verdadeiro, que declara o sen­ tido inusitado, a frescura, a estranheza, o horror, a doçura, o aflorar primordial, a paz: Hoelderlin e Rilke, Ramuz e Clau­ del atestam· que a palavra não se reduz à função verbal da vida cotidiana, das técnicas e das ciências, dos códigos, da política, da polidez e das conversas ordinárias.

Voltada para os significados abstratos, a palavra que pede é o optativo de valor, o ato fundamental de avaliação. Não é por acaso que Sócrates travou a batalha da linguagem a pro­ pósito do sentido da palavra "virtude", isto é, do que é válido no homem. Ao abrir o campo do possível, abre também a pa­ lavra o do melhor. A questão está, por conseguinte, aberta: que significa meu trabalho, isto é, que vale êle?

O

trabalho é trabalho humano a partir dessa questão sôbre o valor pessoal e comunitário do trabalho; e essa questão é obra da palavra. Voltada para os homens e para mim mesmo, é a palavra que "reza" por excelência a língua da exclamação. Se a con­ dição humana pode ser descoberta e manifestada em suas dis­ posições afetivas fundamentais, é que o grito cedeu lugar ao canto; é uma língua vizinha da da invocação que retomou a ex­ pressão cotidiana da dor e da alegria, da cólera e do temor, pa­ ra elevá-la ao nível lírico de uma expressão purificada. A tra­ gédia grega, a tragédia çle ÉSquilo, cantou a amarga ciência que o coração humano gera em si mesmo na rude escola da dor transfigurada pelo canto e colocada sob o signo da in­ vocação :

: I i'

uzeus!, . . qualquer que seja seu nome verdadeiro, se êste fôr de seu agrado, será aquêle com que o chamarei. Tudo po­ derei: só em Zeus reconheço aquêle que é capaz de verdadeira­

mente me livrar do pêso de minha estéril angústia . . . "

"Abriu aos humanos as vias da prudência, ao lhes dar por lei: Sofrer para compreender." Quando, em pleno sono, sob o olhar do coração, ressuma o remorso dolorido, apesar dêles pró­

prios nêles penetra. E temos aí, eu o creio, benéfica violência

dos deuses que têm na mão a cana do leme celeste" (Aga­

menon).

Assim, a palavra desdobra em múltiplas direções o aflorar às consciência e a expressão de si mesmo, direções essas que de passagem esboçamos: palavra imperativa pela qual me de­ cido, pronunciando um julgamento em minha confusão afettva; palavra dubitativa pela qual me interrogo e .me coloco en; �ues­ tão; palavra indicativa pela qual me considero, me venfico c tal me declaro; mas também palavra lírica pela qual canto os sentimentos fundamentais da espécie humana e da solidão.

Ao têrmo dêsse intermédio sôbre o poder da palavra, é evi­ dente a impregnação mútua e ao mesmo tempo a dissociação latente entre trabalho e palavra.

Talvez se pudesse dizer que há trabalho quando o homem produz um efeito útil, respondendo a carên:ias: po; �ei? de um esfôrço mais ou menos penoso que se opoe a resistencia de uma natureza fora de nós e em nós.

O

trabalho de certo modo envolve a palavra, de vez que falar é também um esfôrço mais ou menos penoso, e mesmo um ofício, produtor de efeitos úteis respondendo às carências de um grupo, ainda que como etapa da produção das coisas. Mas o essencial da linguagem escapa à natureza do trabalho: a pa­

lavra significa, mas não produz.

O

têrmo da produção é um

efeito real, o da palavra um sentido apreendido. Além disso, a palavra é sempre, até certo ponto, gratuita; nunca se pode estar

certo de que uma palavra seja útil; pelo fato de pesquisar, ela desperta carências, renova utensílios; mas também se pode bas­ tar a si mesma nas axiomáticas; a palavra verifica, interroga; invoca. Também pode falar para nada dizer, tagarelar, mentir e enganar, c enfim delirar. De modo que fàcilmente infunde

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0 trabalho vergonha à palavra que, ao que parece, nada faz.

Declara Hamlet a vaidade do dizer: words! words! words!

Mas que seria uma civilização do trabalho sem a grandeza e a futilidade da palavra?

EM PROL DE UMA CIVILIZAÇÃO DO TRABALHO E DA PALAVRA

Em que essa dialética do trabalho e da palavra nos aju­

daria a orientar-nos nos problemas atuais da civilização? Es­ sencialmente nisto: ela nos adverte contra uma resolução fictícia das tensões que entretêm o movimento de nossa civilização.

Passará a fonna atual dessa dialética, e ela deve passar; mas outras surgirão e suscitarão novos problemas.

"Alienação" e "objetivação" no trabalho

A forma histórica presente da dialética do trabalho e da palavra é dominada por dois fatôres que não se deixam de modo algum reduzir um ao outro:

1 . 0 •

O

trabalho humano aliena-se pelo salariado,

é

ne­

gociado como uma fôrça de trabalho desvinculada da pessoa;

é

tratado como coisa submetida às leis do mercado. Essa de­ gradação econômico-social do trabalho

é

função do regime eco­

nômico-social do capitalismo; pode-se esperar e deve-se desejar que ela desapareça com as condições do salariado. A essa de­ gradação econômico-social do trabalho corresponde uma digni­ dade usurpada da palavra, tanto mais arrogante quanto não lhe

é

dado saber que também ela é negociada em um mercado de serviços: existe um orgulho da cultura que é assaz exata­ mente simétrico da humilhação do trabalho e que com ela deve desaparece.r. As raízes dêsse orgulho são profundas; mergulham na Anl!gmdade (grega e não judia, observe-se) ; sendo o tra­ b.alho a sina do escravo - sendo êle servil - era a cultura a sma do homem livre, era liberal. A oposição entre artes servis

e a�tes. liberais é, pois, tributária em larga medida da condição soem! Imposta ao próprio trabalhador nas sociedades históricas· e a cultura avalia-se a si mesma, ou melhor, se superavalia, n

exata medida em que consolida o regime que desvaloriza o trabalho.

É preciso ir-se ainda além: existe uma culpabilidade da cultura na medida em que esta é direta ou indiretamente um meio de exploração do trabalho; mandam aquêles que sabem e que falam bem, êles é que empreendem, correm os riscos (de vez que uma economia de mercado é uma economia de cálculos e riscos); necessita-se de "intelectuais" para estabelecerem a teoria do sistema, ensiná-la e justificá-la aos próprios olhos de suas vítimas. Em suma, o capitalismo só pôde perpetuar como economia porque foi também uma cultura, e mesmo uma moral e uma religião. Assim tem a palavra culpa na degradação do trabalho. Eis por que o pensamento revolucionário nutre um compreensível ressentimento contra o conjunto da cultura clás­ sica, na medida em que é ela uma cultura burguesa e permitiu o acesso ao poder e a permanência nêle de uma classe explo­ radora. Todo homem que pensa e que escreve sem se preo­ cupar, em seu estudo ou pesquisa por um regime em que seu trabalho é negociado como mercadoria, deve descobrir que essa liberdade, que essa alegria estão podres, pois elas são a con­

trapartida e, mediata ou imediatamente, a condição e o meio de um trabalho que, alhures, se faz sem liberdade e sem alegria, porque sabe que é tratado como coisa e assim se sente.

2. 0 Mas a condição moderna do trabalho não é definida apenas pelas condições econômico-sociais do capitalismo, mas também pela forma tecnológica que lhe deram as revoluções tec­

nológicas sucessivas; essa forma é relativamente independente do regime do capital e do trabalho e formula problemas que as revoluções não resolvem no nível do regime econômico e social do trabalho, mesmo se essas revoluções permitem formulá-los de modo mais correto e resolvê-los mais fàcilmente. O explodir dos ofícios antigos em tarefas parcelares e repetidas a exigir cada vez menor qualificação profissional dá motivo a problema perturbador; seria bom que o elogio do trabalho pelos filósofos e teólogos não se perca nas nuvens, no exato momento em que uma massa cada vez maior de trabalhadores tende a considerar seu trabalho como simples sacrifício social cujo sentido e alegria não mais se achariam em si mesmo, mas fora dêle: nos pra­ zeres do consumidor e nos lazeres conquistados pelo abrevia­ menta da jornada de trabalho. Ora, hoje êsse explodir em ta­ refas parcelares c repetidas não ating,e apenas o trabalho indus-

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trial, mas os trabalhos de escritório e volta a encontrar-se sob formas diferentes, na especialização científica, na especiali

ação médica e, em graus diversos, em tôdas as formas do trabalho intelectual.

:E.sse explodir e essa especialização compensam-se é ver­ dade, em todos os níveis, pela aparição de novos ofíci

s com­ P!etos: construtores, retificadores, reparadores de máquinas; as­ s�s�e-se da mes�a forma a r�agrupamentos de disciplinas cien­ ti!Ic�s •. graça� as � novas teonas que englobam e sistematizam diSCiplmas a�e entao separadas etc. Mas adiante teremos de ver e� q?e medida essa poliva/ê�cia que compensa a especialização

n�o, e. o fruto da cultura teorica, desinteressada, de longínqua ef1ca�1�, que sem c�ssar retoma, corrige a formação técnica do operano e do pesqmsador científico especializados.

Então me pergunto se a condição tecnológica do trabalho moderno não faz aparecer, para além das "alienações" sociais u�a m1sena do trabalho vinculada à sua função "objetivante"

:

Ja s.e torno� eélebre essa "objetivação" pela qual 0 homem se

r�ahza, plamflca e expande. Fêz-se mesmo disso a solução filo­ sofica dos debates entre realismo e idealismo, entre subjetivis­ mo e matenahsmo .etc. e, para �izer tudo, a solução dos antigos embaraços da teona do conhecimento e da ontologia. É pró­ pno ao trabalho. vmcular-me a uma tarefa precisa, finita; é lá que mostro. aquilo que sou, ao mostrar aquilo que posso; e mostro aquilo que posso fazendo algo de limitado; é 0 "finito"

de. meu trabalho que me revela aos outros e a mim mesmo. É

cotsa � assaz v�rd.adeira; mas êsse movimento que me revela, ta�bem me dis.stmula; me realiza, mas também me desperso­ ?ahza. Bem veJo, pela evolução dos misteres - inclusive 0 de

1�telectual - que existe um limite para o qual tende êsse mo­ VImento de obj�tivação: êssc limite é minha perda no gesto despido de sen!Jdo, na at!Vldade no sentido próprio insignifi­ c�t�, porque sem honzonte. Mas ser homem é não apenas fazer o fim:o, mas também compreender o conjunto, e assim voltar-se para �sse outro limite, inverso do gesto despido de sentido, para

0 honzonte de totahdade da existência humana que denomino

mundo ou ser

S

b d ·

f · ornas ruscamente recon uz1dos, graças a essa :e

ta, que o trabalho moderno nos propõe, aos nossos conceitos sdo re a palav:a como significando o conjunto, como vontade e

compreensao total.

A evolução moderna do trabalho talvez só faça, pois, reve­ lar uma tendência profunda do trabalho, que é absorver-nos no finito realizando-nos. Essa insensível perda de si trai-se por uma 'espécie de aborrecimento, que lentamente substitui o so­ frimento na execução do trabalho, como se a pena da objeti­

vação se reencarnasse mais sutilmente em uma espécie de mal psíquico, inerente ao parcelamento e à repetição do trabalho moderno.

Essa tendência é irredutível à "alienação", que é em sen- tido próprio não apenas a perda do homem num outro, mas essa perda em proveito de outro que o explora. Estabelece a aliena­ ção um problema social e finalmente político; a objetivação, um problema cultural.

Então me pergunto se não existe, no atual mal-estar da cultura, algo que responda correlativamente ao mal-estar fun­ damental do trabalho contemporâneo. Para além da perversão burguesa da cultura, as artes, a literatura, o ensino universitário exprimem a surda resistência de adaptação do homem ao mundo moderno.

Essa resistência por certo não é pura; trai o enlouquecer do homem adolescente face às bruscas mutações do mundo técnico; exprime a lesão de uma antiga relação do homem a um am­ biente "natural"; atesta a inquietação de um ritmo temporal pôsto em desordem. Essa confusão conjuga-se a uma cons­ ciência pesada, a do Sócrates de Valéry que, ao encontrar nos infernos o arquiteto Eupalinos, lamenta nada ter feito com suas próprias mãos e apenas ter pensado, isto é, tagarelado. E cons­ ciência pesada, como sempre, transforma-se em ressentimento: pois se Sócrates descobre que não deixou as sombras da caverna pela realidade das Idéias, mas que apenas deixou a realidade das máquinas pelas sombras do discurso, Sócrates odiará as má­ quinas e a realidade.

Nada de tudo isto é puro e absolutamente autêntico. Para além de tal confusão e de tal consciência pesada que se somam curiosamente, a cultura exprime uma legítima recusa a adapta­ ção. A cultura também é aquilo que desadapta o homem, que o mantém a postos para o aberto, o longínquo, o outro, o todo.

É

a função das "humanidades", da história, e mais que tudo,

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