penso por um homem; em determinado ponto, levantou-se -o
interdito, torna-se possível um futuro: um homem ousou; não
se sabe o que isso dará, não podemos sabê-lo, pois que essa eficácia é, no sentido estrito do método histórico, inverificável; é o plano onde o vínculo de um at.o à história é objeto de fé; o não-violento crê e espera que a liberdade pode cortar o des tino; assim pode êle tornar a dar impulso à coragem das em prêsas no fluxo da história cotidiana, ao rés da terra.
Esta única eficácia é suficiente para situar o não-violento na história: não está êle à margem do tempo, antes seria de o têrmos por "intempestivo", inatual, como a presença anteci pada, possível e oferecida de uma outra época que uma longa e dolorosa "mediação" política deve tornar histórica; dá as ga rantias de uma história ainda por fazer, por inscrever-se na espessura das instituições e dos modos de sentir e de agir.
Ao agir não só na direção dos fins humanistas da história
- em vista da justiça e da amizade - mas pela fôrça desar
mada de tais fins, êle impede a história de afrouxar-se e de re cair. É a contrapartida de esperança da contingência da his tória, de uma história não garantida.
2.0 Em certas circunstâncias favoráveis, sob à. pressão de personalidades excepcionais, a não-violência pode assumir as dimensões de um movimento, de uma resistência não,violenta, com uma eficácia maciça; pode então operar uma verdadeira penetração histórica. Por inimitável que seja em si mesmo, por limitada que tenha sido sua obra, Gandi significa em nosso tem po mais que uma esperança, uma demonstração. A maior tolice que se possa dizer a respeito de Gandi é que êle representa o iogue de Koestler; Gandi não tem estado menos impiedosamen te presente à lndia do que Lênin à Rússia. Não se pode por certo négar suas limitações: desconfiança em relação à técnica moderna, incompreensão face ao proletariado organizado, res peito final pelas estruturas tradicionais responsáveis pela aliena ção das massas indianas em proveito dos sacerdotes e dos ricos.
Pode-se a rigor criticá-lo por tudo isso. Não vejo de que modo se pode finalmente reduzir o poderio exemplar de suas campanhas eficazes de desobediência na Africa do Sul e nas lndias. Seu alcance exemplar me parece consistir no fato de rea lizarem elas - uma vez mais em circunstâncias favoráveis: a Inglaterra não era o nazismo - não somente a presença sim bólica dos fins humanistas, mas sua reconciliação efetiva com meios a êles aparentados; longe, pois, de o não-violento exilar
da história os fins, e desertar do plano dos meios, que êle aban donaria à sua impureza própria, busca êle reunir-se-lhes em uma ação que seria intimamente nma espiritualidade e uma técnica.
Parece de um lado que a não-violência não era aos olhos de Gandi senão nma peça em um sistema espiritual total com a verdade, a pobreza, a justiça, a castidade a paciência a intre pidez, o desprêzo da morte, o recolhiment
o'
etc. É mes�
o digno de nota que no cimo dêsse edifício tenha êle colocado a verdade sa�J,agraha, "o indefectível amplexo da verdade". "Forjei n�
Afnca do Sul a palavra satyagraha para exprimir a fôrça de que fizeram uso os indianos nesse país durante oito anos inteiros . . . a fôrça da verdade é também a do amor . . . '" Por outro lado a não-violência foi para Gandi um método e mesmo uma técnic�
pormenorizada de resistência e de desobediência. É preciso con vir que nos achamos totalmente despreparados e ignorantes com relação a tal técnica; erramos em não estudar o mecanismo fria mente premeditado e meticulosamente executado de suas cam panhas na África do Sul e nas índias; observar-se-ia nelas um senso agudo dos efeitos de massa, na disciplina, na resolução e sobretudo na ausência total de mêdo em relação à prisão e à mprte; resplandece aqui o caráter ativo da não violência: o verdadeiro abandono, aos olhos de Gandi, é a violência; por ela eu me entrego ao cabeça, ao chefe; a não-violência é para êle a fôrça.É essa fôrça que, em experiência histórica excepcional, une em resumo o fim e os meios. A violência progressista, aquela que pretende suprimir-se marchando em direção aos fins huma-
. 3 Extraído de Repor/ of the lndian Congr�ss, vol. I, 1920 tradu zido por L. MAs�IG�NON em Revue du Monde Musulman (abril-junho de 1921). AP. Ceresole, fundador do Serviço civil voluntário interna cional (que o inquiria sôbre a possibilidade de trazer para o Ocidente a nã_o-violência: "Estais certos de que o povo não se acha preparado? E nao vos ocorre que possam vos faltar chefes? Um chefe deve ser a realização de Déus a cada minuto das 24 horas do dia. Deve domi nar-se em tudo, ignorar a cólera, ignorar o mêdo. Deveis esquecer-vos a vós. mesmo.s, não �?s comprazerdes nos prazeres da mesa e nos gozos sexuats. Assim punflc<l;dos alcançareis o poder, não o vosso, mas o de Deus. Em que consiste a fôrça? Um rapazinho de 15 anos poderia, de um golpe, fazer-me cair. Nada sou, mas fui libertado do desejo e do temor, de modo que conheço o poder de Deus." Ver a conclusão de sua autobiografia intitulada Minhas experiências com a verdade.
nos da história, é a arte do desvio: desvio da astúcia, da men tira, da violência; todos os estados maiores militares e civis a praticam: é a técnica do patriotismo e da revolução; o não-vio lento responde com outra pergunta à questão que lhe é pro posta sôbre sua eficácia: acaso a prática do "desvio" não com portaria o perigo da perpetuação sem fim da violência? A ação política - patriótica ou revolucionária - acaso não teria ne cessidade, como de uma presença exprobatória, como de um apêlo amigo, dêsses gestos simbólicos e dessas ações parcialmen te executadas com êxito, na qual os fins são os meios?
uResistência não�violenta" e uviolência progressista" Mas pode a não-violência ser tudo? Isto é, mais que um gesto simbólico, que um bom êxito histórico limitado e raro? Pode ela constituir a substituição total da violência, pode ela
ser produtora da história? ·
A não-violência, mesmo soerguida da abstenção à resis tência, parece comportar'limites não fortuitos.
1.0 Não é por acaso que sua divisa é negativa: não ma� tar. Sua carreira, uma carreira de recusa: não-cooperação, re; cusa ao serviço militar etc. A própria palavra resistência con serva um cunho de negatividade: desobedece-se a uma autori dade à qual não se deu origem. Creio na eficácia dessa recusa enquanto recusa: mas sua eficácia não procederia de sua arti culação a atividades positivas construtivas? Quando passo do "não matarás", ao "amarás", da recusa da guerra à constru ção da paz, entro no ciclo das ações que faço; recomeço então a· oprimir; entro na dissociação dos meios e dos fins partici pando de emprêsas nas quais as ações humanas não são passí veis de composição, nas quais experimento o malefício da his tória com a eficácia da história.
2.0 Parece também que a não-violência é da ordem do
·
discontínuo: atos circunstanciais de recusa, campanhas de de sobediência; é da ordem do gesto. São êsses gestos que teste munham por intermitência exigências sôbre-humanas que pesam na história e convocam o homem concretamente à sua huma nidade. Mas êsses gestos parecem dever encontrar o respectivo complemento nas ações de longo alcance, nos movimentos. dahis�ória, tais com? a conquista do Estado moderno sôbre as feu dahdades, o movimento proletário, a luta anticolonialista etc.
. 3.o Mais largamente, a não-violência responde a situações conc:etas, a_ ?rdens do estado que me afetam pessoalmente; mas
a açao _pohtica responde a "desafios" (para empregar a feliz expressao. de Toynbee) que emanam das estruturas: colonialis mo, salanado e condição proletária, perigo atômico; opera, por tanto, no plano do abstrato, do consuetudinário, do institucio nal, no plano das "mediações" anônimas entre homem e homem.
, . Parece-me. que hoje os não-violentos devem ser o nó pro fel!co dos ,m�VInlentos propriamente políticos, isto é, centrados em uma tecm�a �a revolução,
�
a reforma ou do poder. Fora dessas tarefas Inshtucwnms, a m1stica da não-violência arrisca-se a tornar-se um catastrofismo sem esperança, como se o tempo d?�
�sastre e da perseguição fôsse a última oportunidade da h1stona, como se só nos coubesse pautar nossa vida por um tempo em que. o� �tos fiéis seriam sem eco, escondidos de todos, s�m alcance histonc_o.'!
al ponto pode_ vir, e com êle um regime tao "'m�mano que nao ftcana outra smda senão os não sem res sonancia fora dos muros das prisões.O
tempo da ineficácia ronda sempre às portas da história; é preciso estarmos prontos para a nmte. Mas essa segunda intenção não pode ser o pen s�mento de um futuro, de uma ação, de uma construção. Antes des�e tempo - se é que êle há de vir - e enquanto ainda luz o dia, tem?� de agir com previsão, plano, programa; existe uma t�re�
a. pohtica, e essa tarefa encontra-se em plena massa na h1stona.��as. entã�, acaso não seria necessário que a não-violência
r
�ofetJca: �a�cida de uma vitória da consciência sôbre a dura ei,?a
histona, bloqueasse essa história graças à relação dra�
at�ca que ela. mantém com uma violência residual, uma vio- n'?I� progressista, enquanto que esta extrai sua oportunidade espmt.ual da promessa e da graça intermitente de um gesto nao-v10lento? •�fever
:
. Cf. Sôbre "Humanisme et Terreur" de MERLEAu�PONTY Esprit tiauis:eo Sde _1194?. --;- "Le Yogi, le Commissaire et le Prophêté, C h ris�ocza , Janeuo de 1949.
Mas essa
compreensãode uma dialét�ca. d� nã?-violênci.a
profética e da violência progressis:a, no �ropno mtenor da e,fl
cácia, não pode ser senão uma
v1saodo h1�tonador. �ara aquele
que vive e que age, não existe co�promt�so nen; s�ntese, mas
uma escolha. A intolerância da mistura e a propna al_:na .da
não-violência; se a fé não é total, ela se reneg�; se a nao-VIO
lência é a vocação de alguns, ela lhes deve surgir co�o o de�er
de todos; para aquêle que a vive e cessa de �bs;r�a-la, a nao
violência quer ser tôda a ação, quer fazer a lustona.
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