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maneira de um destino alienado: o não-violento vem me re­ cordar que êsse destino é humano, dado que foi uma vez sus­

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 116-119)

penso por um homem; em determinado ponto, levantou-se -o

interdito, torna-se possível um futuro: um homem ousou; não

se sabe o que isso dará, não podemos sabê-lo, pois que essa eficácia é, no sentido estrito do método histórico, inverificável; é o plano onde o vínculo de um at.o à história é objeto de fé; o não-violento crê e espera que a liberdade pode cortar o des­ tino; assim pode êle tornar a dar impulso à coragem das em­ prêsas no fluxo da história cotidiana, ao rés da terra.

Esta única eficácia é suficiente para situar o não-violento na história: não está êle à margem do tempo, antes seria de o têrmos por "intempestivo", inatual, como a presença anteci­ pada, possível e oferecida de uma outra época que uma longa e dolorosa "mediação" política deve tornar histórica; dá as ga­ rantias de uma história ainda por fazer, por inscrever-se na espessura das instituições e dos modos de sentir e de agir.

Ao agir não só na direção dos fins humanistas da história

- em vista da justiça e da amizade - mas pela fôrça desar­

mada de tais fins, êle impede a história de afrouxar-se e de re­ cair. É a contrapartida de esperança da contingência da his­ tória, de uma história não garantida.

2.0 Em certas circunstâncias favoráveis, sob à. pressão de personalidades excepcionais, a não-violência pode assumir as dimensões de um movimento, de uma resistência não,violenta, com uma eficácia maciça; pode então operar uma verdadeira penetração histórica. Por inimitável que seja em si mesmo, por limitada que tenha sido sua obra, Gandi significa em nosso tem­ po mais que uma esperança, uma demonstração. A maior tolice que se possa dizer a respeito de Gandi é que êle representa o iogue de Koestler; Gandi não tem estado menos impiedosamen­ te presente à lndia do que Lênin à Rússia. Não se pode por certo négar suas limitações: desconfiança em relação à técnica moderna, incompreensão face ao proletariado organizado, res­ peito final pelas estruturas tradicionais responsáveis pela aliena­ ção das massas indianas em proveito dos sacerdotes e dos ricos.

Pode-se a rigor criticá-lo por tudo isso. Não vejo de que modo se pode finalmente reduzir o poderio exemplar de suas campanhas eficazes de desobediência na Africa do Sul e nas lndias. Seu alcance exemplar me parece consistir no fato de rea­ lizarem elas - uma vez mais em circunstâncias favoráveis: a Inglaterra não era o nazismo - não somente a presença sim­ bólica dos fins humanistas, mas sua reconciliação efetiva com meios a êles aparentados; longe, pois, de o não-violento exilar

da história os fins, e desertar do plano dos meios, que êle aban­ donaria à sua impureza própria, busca êle reunir-se-lhes em uma ação que seria intimamente nma espiritualidade e uma técnica.

Parece de um lado que a não-violência não era aos olhos de Gandi senão nma peça em um sistema espiritual total com a verdade, a pobreza, a justiça, a castidade a paciência a intre­ pidez, o desprêzo da morte, o recolhiment

o'

etc. É mes

o digno de nota que no cimo dêsse edifício tenha êle colocado a verdade sa�J,agraha, "o indefectível amplexo da verdade". "Forjei n

Afnca do Sul a palavra satyagraha para exprimir a fôrça de que fizeram uso os indianos nesse país durante oito anos inteiros . . . a fôrça da verdade é também a do amor . . . '" Por outro lado a não-violência foi para Gandi um método e mesmo uma técnic

pormenorizada de resistência e de desobediência. É preciso con­ vir que nos achamos totalmente despreparados e ignorantes com relação a tal técnica; erramos em não estudar o mecanismo fria­ mente premeditado e meticulosamente executado de suas cam­ panhas na África do Sul e nas índias; observar-se-ia nelas um senso agudo dos efeitos de massa, na disciplina, na resolução e sobretudo na ausência total de mêdo em relação à prisão e à mprte; resplandece aqui o caráter ativo da não violência: o verdadeiro abandono, aos olhos de Gandi, é a violência; por ela eu me entrego ao cabeça, ao chefe; a não-violência é para êle a fôrça.

É essa fôrça que, em experiência histórica excepcional, une em resumo o fim e os meios. A violência progressista, aquela que pretende suprimir-se marchando em direção aos fins huma-

. 3 Extraído de Repor/ of the lndian Congr�ss, vol. I, 1920 tradu­ zido por L. MAs�IG�NON em Revue du Monde Musulman (abril-junho de 1921). AP. Ceresole, fundador do Serviço civil voluntário interna­ cional (que o inquiria sôbre a possibilidade de trazer para o Ocidente a nã_o-violência: "Estais certos de que o povo não se acha preparado? E nao vos ocorre que possam vos faltar chefes? Um chefe deve ser a realização de Déus a cada minuto das 24 horas do dia. Deve domi­ nar-se em tudo, ignorar a cólera, ignorar o mêdo. Deveis esquecer-vos a vós. mesmo.s, não �?s comprazerdes nos prazeres da mesa e nos gozos sexuats. Assim punflc<l;dos alcançareis o poder, não o vosso, mas o de Deus. Em que consiste a fôrça? Um rapazinho de 15 anos poderia, de um golpe, fazer-me cair. Nada sou, mas fui libertado do desejo e do temor, de modo que conheço o poder de Deus." Ver a conclusão de sua autobiografia intitulada Minhas experiências com a verdade.

nos da história, é a arte do desvio: desvio da astúcia, da men­ tira, da violência; todos os estados maiores militares e civis a praticam: é a técnica do patriotismo e da revolução; o não-vio­ lento responde com outra pergunta à questão que lhe é pro­ posta sôbre sua eficácia: acaso a prática do "desvio" não com­ portaria o perigo da perpetuação sem fim da violência? A ação política - patriótica ou revolucionária - acaso não teria ne­ cessidade, como de uma presença exprobatória, como de um apêlo amigo, dêsses gestos simbólicos e dessas ações parcialmen­ te executadas com êxito, na qual os fins são os meios?

uResistência não�violenta" e uviolência progressista" Mas pode a não-violência ser tudo? Isto é, mais que um gesto simbólico, que um bom êxito histórico limitado e raro? Pode ela constituir a substituição total da violência, pode ela

ser produtora da história? ·

A não-violência, mesmo soerguida da abstenção à resis­ tência, parece comportar'limites não fortuitos.

1.0 Não é por acaso que sua divisa é negativa: não ma� tar. Sua carreira, uma carreira de recusa: não-cooperação, re;­ cusa ao serviço militar etc. A própria palavra resistência con­ serva um cunho de negatividade: desobedece-se a uma autori­ dade à qual não se deu origem. Creio na eficácia dessa recusa enquanto recusa: mas sua eficácia não procederia de sua arti­ culação a atividades positivas construtivas? Quando passo do "não matarás", ao "amarás", da recusa da guerra à constru­ ção da paz, entro no ciclo das ações que faço; recomeço então a· oprimir; entro na dissociação dos meios e dos fins partici­ pando de emprêsas nas quais as ações humanas não são passí­ veis de composição, nas quais experimento o malefício da his­ tória com a eficácia da história.

2.0 Parece também que a não-violência é da ordem do

·

discontínuo: atos circunstanciais de recusa, campanhas de de­ sobediência; é da ordem do gesto. São êsses gestos que teste­ munham por intermitência exigências sôbre-humanas que pesam na história e convocam o homem concretamente à sua huma­ nidade. Mas êsses gestos parecem dever encontrar o respectivo complemento nas ações de longo alcance, nos movimentos. da

his�ória, tais com? a conquista do Estado moderno sôbre as feu­ dahdades, o movimento proletário, a luta anticolonialista etc.

. 3.o Mais largamente, a não-violência responde a situações conc:etas, a_ ?rdens do estado que me afetam pessoalmente; mas

a açao _pohtica responde a "desafios" (para empregar a feliz expressao. de Toynbee) que emanam das estruturas: colonialis­ mo, salanado e condição proletária, perigo atômico; opera, por­ tanto, no plano do abstrato, do consuetudinário, do institucio­ nal, no plano das "mediações" anônimas entre homem e homem.

, . Parece-me. que hoje os não-violentos devem ser o nó pro­ fel!co dos ,m�VInlentos propriamente políticos, isto é, centrados em uma tecm�a �a revolução,

a reforma ou do poder. Fora dessas tarefas Inshtucwnms, a m1stica da não-violência arrisca-se a tornar-se um catastrofismo sem esperança, como se o tempo d?

�sastre e da perseguição fôsse a última oportunidade da h1stona, como se só nos coubesse pautar nossa vida por um tempo em que. o� �tos fiéis seriam sem eco, escondidos de todos, s�m alcance histonc_o.

'!

al ponto pode_ vir, e com êle um regime tao "'m�mano que nao ftcana outra smda senão os não sem res­ sonancia fora dos muros das prisões.

O

tempo da ineficácia ronda sempre às portas da história; é preciso estarmos prontos para a nmte. Mas essa segunda intenção não pode ser o pen­ s�mento de um futuro, de uma ação, de uma construção. Antes des�e tempo - se é que êle há de vir - e enquanto ainda luz o dia, tem?� de agir com previsão, plano, programa; existe uma t�re

a. pohtica, e essa tarefa encontra-se em plena massa na h1stona.

��as. entã�, acaso não seria necessário que a não-violência

r

�ofetJca: �a�cida de uma vitória da consciência sôbre a dura ei,

?a

histona, bloqueasse essa história graças à relação dra­

at�ca que ela. mantém com uma violência residual, uma vio- n'?I� progressista, enquanto que esta extrai sua oportunidade espmt.ual da promessa e da graça intermitente de um gesto nao-v10lento? •�

fever

:

. Cf. Sôbre "Humanisme et Terreur" de MERLEAu�PONTY Esprit tiauis:eo Sde _1194?. --;- "Le Yogi, le Commissaire et le Prophêté, C h ris�

ocza , Janeuo de 1949.

Mas essa

compreensão

de uma dialét�ca. d� nã?-violênci.a

profética e da violência progressis:a, no �ropno mtenor da e,fl­

cácia, não pode ser senão uma

v1sao

do h1�tonador. �ara aquele

que vive e que age, não existe co�promt�so nen; s�ntese, mas

uma escolha. A intolerância da mistura e a propna al_:na .da

não-violência; se a fé não é total, ela se reneg�; se a nao-VIO­

lência é a vocação de alguns, ela lhes deve surgir co�o o de�er

de todos; para aquêle que a vive e cessa de �bs;r�a-la, a nao­

violência quer ser tôda a ação, quer fazer a lustona.

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