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2.2 2 º M OVIMENTO – D ÚVIDA E F ILOSOFIA M ODERNA

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2.2 2 º M OVIMENTO – D ÚVIDA E F ILOSOFIA M ODERNA

Em ordem a complementar a secção anterior, começamos por referir uma passagem na qual Arendt, citando Descartes, diz:

A solução cartesiana da dúvida universal […] foi similar em método e em conteúdo ao virar de costas da verdade para a veracidade e da realidade para a fiabilidade. […] “Embora a

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«[…] “at a definite present instant all matter is simultaneously real” […].», Arendt, Hannah, THC, p. 263.

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«The immediate philosophic reaction to this reality was not exultation but the Cartesian doubt by which modern philosophy – that "school of suspicion," as Nietzsche once called it – was founded, and which ended in the conviction that "only on the firm foundation of unyielding despair can the soul's habitation henceforth be safely built."», Arendt, Hannah, THC, pp. 260-261.

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nossa mente não seja a medida das coisas ou da verdade, tem de ser seguramente a medida das coisas que afirmamos ou negamos”[…].139

Mas o que significa esta revolução na compreensão de tudo aquilo que é, uma revolução cujo núcleo consiste na dúvida cartesiana? De que se compõe exactamente esta dúvida e de que modo se articula com o que vem sendo dito?

Para Arendt, a dúvida cartesiana corresponde a uma intenção de fundamentação, ocupando uma posição semelhante à anteriormente ocupada pelo thaumazein grego, o espanto ante tudo aquilo que é tal como é. Traduzido em termos arendtianos,

thaumazein corresponderia ao ser-aquilo-que-é, a experiência de uma vertigem de

individuação que descobre o ente como singularidade inscrita numa ordem de referencialidade que é ela mesma invisível. É o momento inicial ou original que funda não só o ser do humano, mas também toda a possibilidade de um mundo ou ordem de coexistência, servindo-lhe de referencial ou medida140

Descartes foi, portanto, o primeiro a esboçar o duvidar moderno. Este último, por seu lado, tornou-se auto-evidente e, consequentemente, um pressuposto inquestionado para todos os que vieram depois de Descartes, constituindo-se no eixo invisível em torno do qual se centrou o pensar, de tal modo que a filosofia moderna é compreendida por Arendt como o conjunto das «articulações e ramificações do duvidar»

.

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Assumindo uma referencialidade radical e universal, a dúvida cartesiana respondeu à nova realidade posta a nu pelas descobertas de Galileu, uma realidade que não implicava apenas um desafio ao testemunho dos sentidos ou à razão. Essa nova realidade punha em questão aquilo a que Arendt chama de «a visão física do mundo»

.

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139

«The Cartesian solution of universal doubt […] was similar in method and content to the turning away from truth to truthfulness and from reality to reliability. […] “though our mind is not the measure of things or of truth, it must assuredly be the measure of things we affirm or deny”.», Arendt, Hannah, THC, p. 279.

, isto é, a visão a respeito não só de tudo aquilo que é, mas também a respeito da ordem de ser que lhe serve de fundamento. Não foi a contemplação e a sua experiência do ser como imutável, mas uma intervenção daquilo a que Arendt chama

homo faber, do fazer e do fabricar, que abriu portas a uma nova concepção do ser, a

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Abordaremos esta questão com mais detalhe num outro momento desta reflexão. Para o nosso propósito nesta secção, estas observações serão suficientes e tornar-se-ão mais claras no decurso da discussão da dúvida cartesiana.

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«[…] modern philosophy since Descartes has consisted in the articulations and ramifications of doubting.», Arendt, Hannah, THC, p. 274, o que de certo modo confirma o carácter de projecto da Modernidade, tal como começámos por afirmar.

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uma nova concepção de evidência, desta vez não já imutável, mas em movimento e em mudança, e a um novo conhecimento.

Segundo Arendt,

A filosofia moderna começou com o de omnibus dubitandum est, de Descartes, com a dúvida, mas com a dúvida não como um controlo inerente à mente humana para a guardar contra todos os enganos do pensamento e ilusões do sentido, não enquanto um cepticismo contra a moral e os preconceitos dos homens e dos tempos, nem mesmo como um método crítico na investigação científica e especulação filosófica. A dúvida cartesiana é muito maior no alcance do seu âmbito e demasiado fundamental para ser determinada por tais conteúdos concretos.143

O projecto cartesiano é, assim, um projecto de refundação daquilo que é e, como tal, tem uma meta ontológica, muito embora a sua inspiração e a sua base conceptual assumam um cariz epistemológico ou científico.

A cientificidade da inquirição cartesiana não se revela no cepticismo metódico patente na dúvida. A cientificidade da inquirição cartesiana é assumida explicitamente na sua intenção de «estabelecer algo firme e constante nas ciências»144. Mas é implicitamente assumida – e de forma bem mais determinante para o percurso e consequências do seu pensamento – no papel central que a noção de semelhança ou de verdade como correspondência145

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«Modern philosophy began with Descartes’ de omnibus dubitandum est, with doubt, but with doubt not as an inherent control of the human mind to guard against deceptions of thought and illusions of sense, not as skepticism against the morals and prejudices of men and times, not even as a critical method in scientific inquiry and philosophic speculation. Cartesian doubt is much more far-reaching in scope and too fundamental in intent to be determined by such concrete contents.», Arendt, Hannah, THC, p. 273.

– compreendida como redução ou recondução de toda

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«Animadverti jam ante aliquot annos quàm multa, ineunte aetate, falsa pro veris admiserim, & quàm dubia sint quaecunque istis postea superextruxi, ac proinde funditus omnia semel in vitâ esse evertenda, atque a primis fundamentis denuo inchoandum, si quid aliquando firmum & mansurum cupiam in scientiis stabilire […].» («Notei, há alguns anos já, que, tenho recebido desde a mais tenra idade tantas coisas falsas por verdadeiras, e sendo tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei, tinha de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na minha vida, e começar, de novo, desde os primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e duradouro nas ciências.»), Descartes, Renée,

Meditationes de Prima Philosophia, A.T. VII, 3 (tradução portuguesa: Meditações Sobre a Filosofia Primeira, p. 105).

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«[…] tamen profecto fatendum est visa per quietem esse veluti quasdam pictas imagines, quae non nisi ad similitudinem rerum verarum fingi potuerunt; ideoque saltem generalia haec, oculos, caput, manus, totumque corpus res quasdam non imaginarias, sed veras existere: nam sane pictores ipsi, ne tum quidem, cum Sirenas et Satyriscos maxime inusitatis formis fingere student, naturas omni ex parte novas iis possunt assignare, sed tantummodo diversorum animalium membra permiscent; vel si forte aliquid excogitent adeo novum, ut nihil omnino ei simile fuerit visum, atque ita plane fictitium sit et falsum; certe tamen ad minimum veri colores esse debent ex quibus illud componant. Nec dispari ratione, quamvis etiam generalia haec, oculi, caput, manus, et similia, imaginaria esse possent, necessario tamen saltem alia quaedam adhuc magis simplicia, et universalia vera esse fatendum est, ex quibus tanquam coloribus veris omnes istae seu verae seu falsae, quae in cogitatione nostra sunt, rerum imagines effinguntur.»

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a diferença concreta a uma identidade dela abstraída146

Embora a iniciativa cartesiana seja epistemologicamente orientada, o carácter hiperbólico da dúvida arranca a iniciativa de Descartes às malhas do mero cepticismo epistemológico e confere-lhe uma radicalidade que a faz penetrar na esfera reservada tradicionalmente à ontologia. O intento da dúvida é eliminar qualquer resquício de contacto com o ser, de suprimir mesmo a aparentemente mais inabalável das certezas com respeito à existência das coisas.

– adquire enquanto arquétipo relacional na compreensão cartesiana – e moderna – do ser, bem como o lugar central que a aritmética e a geometria ocupam na sua concepção do real.

De facto, e isto é sublinhado por Arendt, é a questão da certeza, e não a questão da verdade, que é decisiva para a Modernidade e o desenvolvimento do ser do humano compreendido como consciência de si. Diz Arendt:

(«[…] temos seguramente que confessar que as coisas que vemos no sono são como quadros que só podem imaginar-se por semelhança com as verdadeiras; e que, por conseguinte, pelo menos também estas coisas gerais, ou seja, os olhos, a cabeça, as mãos e todo o corpo, não são imaginárias, mas existem verdadeiramente. Porque também os pintores, mesmo quando se esforçam por imaginar sereias e sátiros em formas extremamente inusitadas, não podem atribuir-lhes, de todos os pontos de vista, naturezas novas, mas apenas combinam entre si os membros de diversos animais. Ou, se excogitam algo de tão inesperadamente novo que nada de semelhante se viu, e completamente inventado e falso, decerto pelo menos as cores com que o compõem devem ser verdadeiras. Pela mesma razão, embora também as seguintes coisas gerais, como olhos, cabeça, mãos e semelhantes pudessem ser imaginárias, tem de se reconhecer que pelo menos outras ainda mais simples e gerais são verdadeiras: com elas, como com as cores verdadeiras, são representadas todas as imagens das coisas que estão no nosso pensamento, quer verdadeiras, quer falsas»), Descartes, Renée, Meditationes de Prima Philosophia, A.T., VII, 19-20 (tradução portuguesa: Meditações Sobre a Filosofia Primeira, p. 109). Esta passagem ilustra bem o modo como, por um lado, a relação de analogia, semelhança ou correspondência, bem como a certeza que a acompanha, constitui o critério cartesiano de verdade e, por outro lado, como o processo de redução ou abstracção se constitui em modo de acesso à verdade, isto é, como modo de produção dessa certeza, progredindo das coisas complexas e particulares até às mais simples e gerais. No entanto, a ideia de uma rejeição do procedimento per similitudinem ou analogia por parte do pensamento cartesiano é um traço comum a vários intérpretes quer da filosofia moderna, quer do pensamento cartesiano. Nos diversos artigos que dedica à analogia e à metáfora no pensamento de Descartes, Leonel Ribeiro dos Santos posiciona-se a favor da presença da analogia nas teses cartesianas. Leonel Ribeiro dos Santos apresenta uma leitura que defende a centralidade da analogia no pensamento moderno enquanto modo de estabelecer proporções entre as próprias coisas finitas e mundanas. Como tal, a analogia «revela-se, assim, como um instrumento essencial e imprescindível daquela concepção moderna de ciência [como] uma investigação comparativa, que usa o meio da proporção, julgando o que é incerto e desconhecido por comparação com um pressuposto certo e conhecido», Ribeiro dos Santos, Leonel, Retórica da Evidência

ou Descartes segundo a Ordem das Imagens, p. 114.

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Reconduzindo ou reduzindo o sem precedentes a um precedente, como diria Arendt, conservando apenas aquilo que eles têm em comum e descartando a singularidade do novo, ideia que vai buscar a Nietzsche: « It lies, as Nietzsche once remarked, in the province of the "development of science" to "dissolve the 'known' into the unknown:-but science wants to do the opposite and is inspired by the instinct to reduce the unknown to something which is known" (Will to Power, No. 608).» («Está, como observou um dia Nietzsche, na província do “desenvolvimento da ciência dissolver o ‘conhecido’ no ‘desconhecido’: – mas a ciência quer fazer o oposto e é inspirada pelo instinto de reduzir o desconhecido a algo que é conhecido” (Vontade de Poder, Nº. 608)»), Arendt, Hannah, «Understanding and Politics (The Difficulties of Understanding)», EU, p. 313.

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O que foi perdido na era moderna não foi a capacidade para a verdade, ou a realidade, ou a fé, nem a concomitante inevitável aceitação do testemunho dos sentidos e da razão, mas a certeza que anteriormente os acompanhava.147

Começando pelos sentidos, Descartes prossegue no caminho da eliminação de qualquer relação com a realidade submetendo à dúvida a natureza corpórea ou res

corporea em geral, da qual restam apenas atributos, entre os quais a extensão – o facto

de um corpo ocupar um espaço ou espacialidade – e o número – a medida que distingue um corpo dos outros corpos –, objectos de estudo da aritmética e da geometria.

A dimensão hiperbólica, não-natural, da dúvida e, portanto, também o seu alcance ontológico, só são verdadeiramente atingidos quando o último reduto da ciência e da indubitabilidade, a aritmética e a geometria, sucumbem ao carácter voluntário do acto dubitativo.

Tomadas em si mesmas, aritmética e geometria são garantes não da existência das coisas, mas da validade ou certeza do modelo de verdade como correspondência que sustenta a ontologia clássica e que, consequentemente, garante a validade formal das proposições, das relações entre um sujeito de predicação e o respectivo predicado tipificadas na expressão “A é b”. Dado que o modelo de verdade como correspondência constitui também, à partida, a base da proposta cartesiana148

147

«What was lost in the modern age, of course, was not the capacity for truth or reality or faith nor the concomitant inevitable acceptance of the testimony of the senses and of reason, but the certainty that formerly went with it.», Arendt, Hannah, THC, p. 277.

, a invalidade formal das

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Embora com um fundamento distinto do que guiava a filosofia anterior. Segundo Leonel Ribeiro dos Santos, «[…] a analogia continua a desempenhar um papel fundamental no pensamento moderno. Altera- se, porém, a sua natureza e função. Cada vez menos garantida por uma ontologia hierárquica ou pela ideia de uma simpatia universal dos elementos e dos seres, passa a ser entendida como um procedimento próprio do espírito humano na sua actividade de se assenhorear do mundo pelo conhecimento. Decai o sentido predominantemente metafísico ou teológico da analogia e recupera-se o seu significado gnosiológico e epistemológico. Esbate-se progressivamente a distinção entre a analogia de atribuição e a de proporcionalidade e é esta última que vai conquistando as preferências e revelando a sua fecundidade heurística», Ribeiro dos Santos, Leonel, Retórica da Evidência ou Descartes segundo a Ordem das

Imagens, pp. 114. E prossegue dizendo: «Também para Descartes a analogia constitui procedimento

habitual e mesmo essencial ao seu modo de pensar, e ela está presente e consciente tanto nas suas obras científicas como nas mais metafísicas.», Ribeiro dos Santos, Leonel, Retórica da Evidência ou Descartes

segundo a Ordem das Imagens, p. 115. E, poucas páginas depois, declara: «[…] [Crítico] do juízo

analógico vulgar (baseado numa semelhança parcial que se generaliza ao todo), Descartes oferece um exemplo típico do seu próprio modo analógico de pensar, baseado não numa semelhança parcial entre duas coisas, mas na identidade da proporção do todo, que serve de termo de comparação, ao todo que é comparado», Ribeiro dos Santos, Leonel, Retórica da Evidência ou Descartes segundo a Ordem das

Imagens, p. 120. A analogia não é, pois, em Descartes, uma semelhança ou uma comparação entre partes

de coisas, mas uma relação-tipo que liga cada uma das partes ao todo. A totalidade dá-se nas suas partes enquanto relação que tem sempre essa mesma totalidade como referência. Mais: enquanto idêntica ao todo, a própria relação-tipo tem uma dimensão auto-referencial. Por intermédio dessa proporção-tipo, o todo está sempre já dado nas partes, e essa mesma relação-tipo constitui a medida dos diferentes graus particulares de vinculação das partes ao todo, constituindo-se como critério de certeza.

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proposições implica que estas não podem ser garantes da validade, isto é, portadoras da certeza a respeito de quaisquer afirmações de existência ou não-existência, as quais dependem, neste quadro conceptual, justamente da validade formal da relação sujeito/predicado.

De facto, na medida em que a inquirição ontológica cartesiana assume um modelo epistemológico, todo o juízo de existência que se pretenda verdadeiro depende e tem como condição de possibilidade a validade formal das proposições da aritmética e da geometria, enquanto modos de doação do ser na predicação. No platonismo clássico,

[a] matemática (isto é, a geometria), era a introdução adequada ao céu de ideias onde meras imagens (eidola) e sombras, matérias perecíveis, podiam mais interferir com o aparecimento do ser eterno, onde estes aparecimentos são salvos (sozein ta phainomena) e seguros, tão purificados de sensorialidade humana e de mortalidade como da perecibilidade material.149

A questão – e esse é o ponto cuja segurança Descartes vai destruir através da dúvida – é que as formas matemáticas e ideais eram dadas ao intelecto do mesmo modo que os dados sensoriais se apresentavam aos órgãos dos sentidos, cabendo a uns poucos, cujos olhos da mente estavam treinados para ver o que se escondia aos olhos do corpo, perceber o ser na sua verdadeira aparência.

Ao submeter a aritmética e a geometria à dúvida, Descartes dá um salto da incerteza com respeito à verdade dos juízos acerca de coisas para a incerteza com respeito à própria capacidade de as proposições serem portadoras de verdade, isto é, de tornarem possível o acesso às coisas. Com este passo, Descartes move a sua inquirição do plano epistemológico para o plano ontológico, pois não se trata já de um cepticismo acerca do que é dito sobre as coisas, mas antes, e por via de um cepticismo com respeito à verdade das proposições, de um cepticismo com respeito à capacidade de doação do próprio ser e do humano aceder a este último. Mais radicalmente ainda: trata-se da introdução da própria possibilidade do não-ser no mundo, sendo este último compreendido como ordem cósmica imutável ou totalidade sempre já feita das coisas, a

149

«[…] mathematics (that is, geometry) was the proper introduction to that sky of ideas where no mere images (eidola) and shadows, no perishable matter, could any longer interfere with the appearing of eternal being, where these appearances are saved (sozein ta phainomena) and safe, as purified of human sensuality and mortality as of material perishability.», Arendt, Hannah, THC, p. 266.

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qual se revela assim, por via da dúvida, meramente ilusória150. «Com a ascensão da Modernidade», diz Arendt, «a matemática […] deixa de estar preocupada com os aparecimentos de todo. Não é mais o começo da filosofia, da ciência do Ser na sua verdadeira aparência, mas torna-se, ao invés, na ciência da estrutura da mente humana»151

Ao introduzir a possibilidade do não-ser no universo das coisas tradicionalmente consideradas como dados imutáveis, coisas como as verdades matemáticas e o Ser a que elas permitiam aceder, a dúvida carrega a finitude humana para o domínio da própria ontologia, vinculando assim o destino de todas as coisas ao destino do próprio ser humano. “Infectado”, por assim dizer, pela finitude e mutabilidade humana, este Ser deixa de ter o carácter estático que tinha mesmo quando sujeito ao cepticismo tradicional e torna-se activo, criando os seus próprios modos de doação, aquilo a que Arendt chama “aparecimentos”

.

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, só que «estes aparecimentos são delusões»153 percebidas por sentidos humanos incertos e provocadas por um Ser que ele mesmo permanece secreto, embora tremendamente eficaz na sua produção. Justifica-se, assim, a afirmação de Arendt:

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A ficção do Deus enganador, bem como a ficção do génio maligno – menos susceptível a contradições internas – servem de operadores da introdução da possibilidade do não-ser na argumentação cartesiana: «[…] putabo caelum, aërem, terram, colores, figuras, sonos, cunctaque externa nihil aliud esse quam ludificationes somniorum, quibus insidias credulitati meae tetendit: considerabo me ipsum tanquam manus non habentem, non oculos, non carnem, non sanguinem, non aliquem sensum, sed haec omnia me habere falso opinantem […]» («Vou acreditar que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade. Vou considerar-me a mim próprio como não tendo mãos, não tendo olhos, nem carne, nem sangue, nem sentidos, mas crendo falsamente possuir tudo isto»), Descartes, Renée, Meditationes de Prima

Philosophia, A.T., VII, 22-23 (tradução portuguesa: Meditações Sobre a Filosofia Primeira, pp. 113-

114). Para os nossos propósitos não é determinante saber se tais ficções são diferentes ou idênticas entre si, ou se cumprem funções em diferentes planos.

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« […] mathematics […] ceases to be concerned with appearances at all. It is no longer the beginning of philosophy, of the "science" of Being in its true appearance, but becomes instead the science of the structure of the human mind.», Arendt, Hannah, THC, p. 266.

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“Appearances”, normalmente traduzido por “aparências”. Optamos aqui por “aparecimentos” não só porque nos parece adequar-se melhor ao intento arendtiano e à sua matriz fenomenológica, sublinhando o carácter activo – de acontecimento – dos mesmos, mas também porque “Aparências” está demasiado marcado pela tradição enquanto contraposição a Ser. A falácia subjacente a essa oposição é analisada por Arendt num capítulo de «Thinking», LoM intitulado «Ser (verdadeiro) e (mero) Aparecimento». No entanto, a tradução de “Appearances” por “aparências” também nos parece perfeitamente aceitável e é a mais correntemente utilizada.

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Não é, contudo, coincidência que a palavra “existência” tenha tomado o lugar da palavra