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1.2. C RISE : DE M OMENTO A M OTOR

Apresentando este diagnóstico da condição existencial do período entre as duas guerras mundiais, Arendt parece não só dar-se conta de uma crise, mas compreender o nosso mundo a partir do signo da crise. Como compreender o carácter crítico do nosso mundo? Como compreender este signo?

Se atendermos à sua etimologia, a palavra “crise” é uma tradução directa do substantivo grego krisis, o qual significa crise, mas antes de mais juízo, decisão e veredicto. Por seu lado, este substantivo deriva do verbo krino, o qual assume uma multiplicidade de significados: decidir; tomar posição; separar algo que se apresenta amalgamado e confuso, descobrindo uma saída para essa situação de impasse; distinguir; diferenciar; julgar.

Não é de estranhar, assim, que crise corresponda, para Arendt, ao momento em que os padrões, isto é, as leis e as medidas, bem como as noções herdadas do passado para nos orientar através das dificuldades do presente, deixaram de ser fiáveis. No prefácio a

OT supracitado, Arendt reforça essa ideia, dizendo:

Nunca o nosso futuro foi mais imprevisível, nunca dependemos tanto de forças políticas nas quais não podemos confiar que sigam as regras do senso comum e do interesse próprio – forças que parecem pura insanidade, se julgadas pelos padrões de outros séculos.64

Como que apoiando a noção arendtiana da centralidade da experiência da crise para a compreensão do nosso tempo e a relação dessa experiência com o passado, Giorgio Agamben declarou que «a crise que a Europa está a atravessar não é somente um problema económico, como nos querem fazer crer, é sobretudo uma crise de relacionamento com o passado»65

No contexto de uma questão a respeito da crise financeira, bem como dos efeitos restritivos das liberdades democráticas que a têm acompanhado, Agamben sublinha o facto de “crise” não ser uma noção utilizada actualmente como conceito, mas como palavra de ordem para a imposição de medidas e de restrições que as pessoas não têm, à partida, motivos para aceitar. Longe de reflectir um esforço de compreensão e de

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«Never has our future been more unpredictable, never have we depended so much on political forces that cannot be trusted to follow the rules of common sense and self-interest – forces that look like sheer insanity, if judged by the standards of other centuries.», Arendt, Hannah, OT, p. vii.

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«La crisi che l’Europa sta attraversando non è soltanto un problema economico, come si vorrebbe far credere, è innanzi tutto una crisi del rapporto col passato.», Agamben, Giorgio,

http://www.ragusanews.com/articolo/28021/giorgio-agamben-intervista-a-peppe-sava-amo-scicli-e- guccione (consultado pela última vez a 25 Agosto 2014).

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fixação da situação em que estamos envolvidos, o recurso à noção de “crise” assumiu contornos doutrinais de lema ou tema nuclear e justificativo de um objectivo ou ideal que está em vias de desenvolvimento.

Pode, portanto, dizer-se que o conceito de crise perdeu, por via de um abastardamento do uso, o seu traço distintivo compreendido como momento decisivo de suspensão temporária do juízo e de preparação para a acção, para se tornar no motor de um processo de dominação.

Compreendida deste modo, a crise não visa já tornar possível e terminar com uma decisão ou com um juízo acerca da realidade, procedendo à partição e diferenciação dos seus elementos e à constituição de uma nova compreensão da mesma.

Ela visa, isso sim, alimentar a dimensão meramente negativa de suspensão do juízo acerca da realidade, recusando o seu carácter momentâneo e assim persistindo na indistinção, na indiferença com respeito à mesma e entregando os processos do real a si mesmos, com o resultado de hipotecar as possibilidades de compreensão, intervenção e reconfiguração dos seus elementos.

O interesse da observação de Agamben para uma compreensão do pensamento arendtiano e do lugar que a crise nele ocupa reside no facto de Arendt ter identificado esse mesmo processo de indiferenciação, de ter compreendido o que nele está em questão e de ter antecipado, em certa medida, as suas possíveis consequências, de tal forma que o transformou no núcleo das suas análises e de boa parte da sua produção filosófica.

Um dos momentos em que podemos surpreender o modo como Arendt dá testemunho desta transformação da crise de suspensão temporária do juízo e, como tal, de elemento de um momento deliberativo, em doutrina, força motriz dos próprios acontecimentos, ocorre em OT:

É quase impossível, mesmo agora, descrever o que efectivamente aconteceu na Europa a 4 de Agosto de 1914. Os dias antes e os dias depois da I Guerra Mundial estão separados não como o fim e o início de um novo período, mas como o dia antes e o dia depois de uma explosão. Contudo, esta figura de retórica é tão incorrecta como são todas as outras, porque o silêncio do pesar que se instala após uma catástrofe nunca veio a dar-se. A primeira explosão parece ter desencadeado uma reacção em cadeia na qual fomos apanhados desde então e que ninguém parece ser capaz de parar.66

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«It is almost impossible even now to describe what actually happened in Europe on August 4, 1914. the days before and the days after the first World War are separated not like the end of an old and the

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Arendt parece hesitar, mas esta hesitação tem uma feição filosófica pertinente, pois é o reflexo, por um lado, da desadequação das noções do passado para julgar os acontecimentos do presente e, por outro, do momento de suspensão do juízo que é a marca de qualquer crise, momento que, em condições de normalidade, antecede a sua resolução.

Numa espécie de gesto filosófico que o texto concretiza, Arendt dá conta da hesitação característica daquilo que está aí em causa e que é tema do próprio texto, o qual expressa o núcleo de perplexidade, de desorientação e de desamparo de uma condição partilhada, em suma, da condição crítica do humano.

A hesitação que aqui testemunhamos expressa uma situação crítica que se apresenta como situação-limite, uma situação em que o humano se descobre em virtude da natureza paradoxal do seu próprio ser e que exige uma resolução.