• Nenhum resultado encontrado

A C ONCEPÇÃO H EIDEGGERIANA DE E XISTÊNCIA COMO S ER NO MUNDO

U MA A NATOMIA DA C RISE DA

2.4 4 º M OVIMENTO – E XPROPRIAÇÃO /A CUMULAÇÃO DE R IQUEZA E A LIENAÇÃO DO M UNDO

2.4. A C ONCEPÇÃO H EIDEGGERIANA DE E XISTÊNCIA COMO S ER NO MUNDO

Este é o momento em que a iniciativa heideggeriana entra em cena.

Para Arendt, é precisamente contra este paradoxo e, portanto, em favor da referida aniquilação que a filosofia heideggeriana deve ser lida. Para a autora, o projecto de ontologia fundamental de Heidegger, a sua tentativa de restabelecimento de uma ontologia, erige-se justamente contra Kant, na medida em que um tal restabelecimento corresponde a uma intenção de reversão do processo de destruição do conceito clássico

332

«For Jaspers, existence is not a form of Being but a form of human freedom, the form in which “man as potential spontaneity rejects the conception of himself as mere result”. Existence is not man’s being as such and as a given; rather, “man is […] possible existence”. The word “existence” here means that man achieves reality only to the extent that he acts out his own freedom rooted in spontaneity and “connects through communication with the freedom of others”.», Arendt, Hannah, «What is Existential Philosophy?», EU, p. 183.

333

«Only because I have not made myself am I free. If I had made myself, I would have been able to foresee myself and therefore would have become unfree.», Arendt, Hannah, «What is Existential Philosophy?», EU, p. 184.

186

de Ser a que Kant tinha dado início. Arendt não quer com isto dizer que Heidegger pretende um simples retorno à concepção clássica de Ser, mas que, independentemente do sucesso ou do insucesso da sua iniciativa e dos contornos que ela possa tomar, a sua intenção é resolver o paradoxo posto a descoberto por Kant e restabelecer a identidade entre essência e existência, entre pensar e ser.

Antes de apresentamos resumidamente os aspectos da reflexão heideggeriana que consideramos necessários para a compreensão da posição arendtiana, é fundamental compreender a perspectiva a partir da qual Arendt lê o projecto heideggeriano de ontologia fundamental, uma perspectiva que é sucinta e claramente formulada em THC, embora sem fazer referência a Heidegger, quando a pensadora descreve aquilo que entende ser a experiência do eterno enquanto distinta da experiência da imortalidade.

Para Arendt, ser-imortal significa perseverar no tempo, isto é, descobrir uma permanência no interior da temporalidade e do devir finito que caracteriza o ser do humano. Ao contrário dos restantes animais, os seres humanos não existem e perseveram enquanto humanos apenas enquanto instâncias de um ciclo natural de reiteração do mesmo ou procriação, mas enquanto indivíduos, com estórias de vida individuais que se distinguem de tudo o resto justamente porque a sua temporalidade não é cíclica, mas rectilínea. Isto significa que o carácter distintivo potencial dos seres humanos assenta na sua capacidade de transcender a sua mortalidade por intermédio de actos, de formas de aparecimento que deixam um rasto imortal na imanência deveniente da própria mortalidade individual.

O ser humano distingue-se, pois, de todas as outras coisas pela sua capacidade para a in-mortalidade, pela sua capacidade potencial de descobrir uma permanência e constituir uma habitação num contexto eminentemente precário e essencialmente temporal e temporário. Para Arendt, a experiência da imortalidade é a experiência política por excelência, uma vez que tem como referência um mundo ou ordem de coexistência, pressupondo não só o aparecimento nessa mesma ordem de coexistência, mas o reconhecimento dos outros que nela existem e a constituem enquanto tal.

Ora, a experiência do eterno é, para Arendt, o «verdadeiro centro do pensamento estritamente metafísico»334

334

«[…] the true center of strictly metaphysical thought.», Arendt, Hannah, THC, p. 20.

. Esta experiência define-se por contradição com respeito à experiência de aspiração à imortalidade constitutiva da bios politikos, da vida do cidadão de uma ordem de coexistência. Ao contrário desta última e em estrita oposição

187

à mesma, a experiência do eterno é indizível e, portanto, não descobre forma de manifestação na ordem de coexistência, isto é, «pode ocorrer apenas fora do reino dos assuntos humanos e fora da pluralidade dos homens»335

Para Arendt, esta é a experiência própria do filósofo, o qual se liberta de quaisquer vínculos que o relacionem com outros e abandona a ordem de coexistência em perfeita singularidade. Nessa medida, experienciar o eterno é uma espécie de morte, uma vez que morrer é, do ponto de vista da ordem de coexistência, «“cessar de estar entre homens”»

. Para todos os efeitos, a experiência do eterno é a experiência de um agora constante que pode apenas ter lugar fora da deveniência própria dos assuntos humanos e, como tal, consiste numa retirada com respeito à ordem de coexistência na qual o ser humano aparece e se distingue como um entre outros.

336

, cessar de aparecer no mundo e a outros. Dado que é uma experiência que escapa ao devir e, como tal, à temporalidade e à mutabilidade, a experiência do eterno não é suportável por qualquer criatura viva, a qual está, por definição, em devir. É a experiência de uma permanência sem tempo, imutável e insuportável para os mortais, a que os filósofos deram o nome de theoria ou contemplação e à qual atribuíram tradicionalmente uma dignidade ontológica superior àquela concedida à experiência da imortalidade. Segundo Arendt:

A primazia da contemplação sobre a actividade assenta na convicção de que nenhuma obra das mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o kosmos físico, que balança em si mesmo em eternidade imutável sem qualquer interferência ou assistência do exterior, de homem ou de deus.337

E prossegue, dizendo:

[…] a distinção entre quietude e inquietude, entre uma abstenção quase sem fôlego com respeito ao movimento físico externo e à actividade de qualquer tipo, é mais decisiva do que distinção entre o modo de vida político e o modo de vida teorético […]. É como a distinção entre guerra e paz: tal como uma guerra tem lugar por mor da paz, assim todo o tipo de actividade, mesmo os processos do mero pensamento, têm de culminar na quietude

335

«[…] can occur only outside the realm of human affairs and outside the plurality of men […].», Arendt, Hannah, THC, p. 20.

336

«[…] “to cease to be among men” […].», Arendt, Hannah, THC, p. 20.

337

«The primacy of contemplation over activity rests on the conviction that no work of human hands can equal in beauty and truth the physical kosmos, which swings in itself in changeless eternity without any interference or assistance from outside, from man or god.», Arendt, Hannah, THC, p. 15.

188

absoluta da contemplação. Todo o movimento […] tem de cessar ante a verdade. A verdade […] pode apenas revelar-se no silêncio humano completo.338

É este silêncio humano completo que, para Arendt, se traduz no solipsismo radical que está na base e orienta o projecto de ontologia fundamental de Heidegger, um solipsismo que resulta num apagamento da possibilidade de aparecimento da diferença de ser do humano no mundo e na impossibilidade de este descobrir para si um sentido próprio. Vejamos de que modo.

O ponto de partida de Heidegger em SuZ é a questão do sentido do Ser (Seinsfrage), sentido que, a seu ver, permaneceu velado ou recoberto desde os seus primórdios no pensamento grego. A resposta de Heidegger a esta questão é a temporalidade, cujo fundamento é a finitude como ser do humano, compreendida exclusivamente como ser- para-o-fim ou ser-para-a-morte, resposta que, segundo Arendt, implica que o Ser em sentido heideggeriano é não-Ser, isto é, nada.

O ente a que Heidegger chama Dasein distingue-se dos restantes entes justamente porque constitui a diferença entre o ôntico e o ontológico ou diferença ontológica, fazendo da demanda pelo sentido do ser dos entes e do ser em geral o seu próprio ser. Por outras palavras, aquilo que distingue o Dasein enquanto ente, a sua distinção ôntica, é o facto de ser ontológico. Isto significa que o Dasein é o ente que se detém, se comporta perante os restantes entes orientado por uma compreensão prévia do ser, por um acesso sempre já dado à constituição e totalidade de ser, sem que isso implique e esteja dependente de uma determinação conceptual da mesma, aquilo a que vulgarmente se chama ontologia339

Heidegger chama a essa totalidade a que o Dasein sempre se refere no seu ser “mundo” (Welt), e chama à transcendência

.

340

338

«[…] the distinction between quiet and unquiet, between an almost breathless abstention from external physical movement and activity of every kind, is more decisive than the distinction between the political and the theoretical way of life […]. It is like the distinction between war and peace: just as war takes place for the sake of peace, thus every kind of activity, even the processes of mere thought, must culminate in the absolute quiet of contemplation. Every movement […] must cease before truth. Truth […] can reveal itself only in complete human stillness.», Arendt, Hannah, THC, p. 15.

constitutiva do próprio Dasein “ser-no- mundo” (In-der-Welt-sein). No §12 de SuZ, Heidegger caracteriza a constituição

339

Veja-se Heidegger, Martin, SuZ, §4.

340

Esta transcendência corresponde à interpretação heideggeriana do excesso de significação husserliano, o qual é concebido não como objectividade, mas como o ser ele mesmo que se dá fenomenicamente naquilo que é dito a seu respeito. A inquirição do sentido do ser é, assim, uma inquirição a respeito do ser, uma vez que o sentido ou a significação é o modo pelo qual o ser se manifesta.

189

essencial do Dasein como ser-em-o-mundo, como ser-no-mundo341. Para Heidegger, este “em” designa um habitar ou permanecer que corresponde a uma familiaridade com algo, uma familiaridade que o “ser” (Sein) refere quando conjugado na primeira pessoa (Ich bin), indicando uma proximidade radical (bei) desse que afirma a sua existência com isso que é assim referido, a saber, o mundo. Assim, ao dizer “Eu sou”, o Dasein mantém-se numa proximidade essencial ao mundo, estando nele absorvido e nele se demorando. Não se trata aqui da afirmação de uma existência paralela de mundo e

Dasein, mas antes da compreensão do ser-no-mundo como o ser mais próprio do Dasein342

A facticidade do Dasein significa que este, enquanto ente, se compreende e, portanto, compreende o seu ser enquanto detido no ser daqueles entes que encontra e perante os quais se comporta. É importante sublinhar aqui o sentido desta detenção. Não se trata aqui de um impedimento ou aprisionamento do Dasein com respeito aos entes que encontra. Trata-se, isso sim, da sua demora, da sua permanência e, portanto, da conservação do seu próprio ser na dependência do seu encontro com outros entes e na compreensão do seu ser

, facticamente disperso em modos definidos desse habitar.

343

. Por isso Heidegger afirma, em SuZ, que o Dasein se compreende como detido, no sentido de vinculado no seu “destino” (Geschick); a sua sorte está inexoravelmente ligada à sorte do ser dos entes que encontra ao ser344

No seu comportar-se, o Dasein interpela o ente, interroga-o na sua manifestação deste ou daquele modo, não por mor desse modo determinado, mas em vista do seu ser, em-ordem-a-ser. O Dasein é esse poder de distinguir, de diferenciar. Mais: o Dasein é essa distinção, compreendendo – ou seja, sendo – desde logo, antecipadamente, o ser como excesso, como transcendência. Isso permite-lhe orientar o seu questionamento para lá desta ou daquela modalidade particular do ser do ente, em favor da pergunta por essa vinculação original, por essa estrutura na qual ente e ser co-pertencem originalmente, estrutura que possibilita a vinda à presença do ente qua isto ou aquilo, e que o funda no seu ser mais próprio.

.

341

Veja-se Heidegger, Martin, SuZ, §12.

342

Veremos mais adiante que a interpretação heideggeriana do ser-para-a-morte como ser próprio do

Dasein e a noção de Si-mesmo como sua expressão última contradiz esta concepção do Dasein, do existir,

como ser-no-mundo.

343

Mais uma vez, em contradição com a noção de Si-mesmo, como veremos.

344

„[...] das In-der-Welt-sein eines »innerweltlichen« Seienden, so zwar, daß sich dieses Seiende verstehen kann als in seinem »Geschick« verhaftet mit dem Sein des Seienden, das ihm innerhalb seiner eigenen Welt begegnet.“ («[...] uma entidade no „interior do mundo“ tem o ser-no-mundo de tal modo que pode compreender-se como vinculada no seu “destino” com o ser dessas entidades que encontra no interior do seu próprio mundo.»), Heidegger, Martin, SuZ, p. 56.

190

A transcendência, enquanto constituição fundamental do Dasein, compreende-se, então, não só como o facto de o Dasein ser aí, fora de si mesmo e juntamente com os entes e, portanto, ser essa não-coincidência consigo mesmo, mas também por este ser aí junto dos entes não significar uma coincidência com os últimos, mas um excedê-los (Übersteigen) em direcção ao próprio ser. Ora, o Dasein, ao exceder os entes, excede- se, por assim dizer, também a si mesmo, dado que tem de estar sempre e já presente em qualquer encontro com os entes, está sempre já num estado-de-coisas, possibilitando a manifestação destes últimos. O Dasein descobre-se entre um não-mais Dasein ou não mais existir – sendo uma coisa entre outras – e um ainda-não Dasein, no qual antecipa o seu próprio ser não enquanto facto, mas justamente enquanto possibilidade.

Como transcendência, o Dasein encontra-se sempre já aí, no “meio” dos entes, e todo o seu comportamento é referido, em última análise, ao seu próprio ser. O Dasein é por mor de si mesmo, e o ser em que se descobre é já e sempre o seu próprio ser como possibilidade. Assim, o ser é, para o Dasein, este referir-se ao seu próprio ser, um referir-se que concerne também aos outros entes, já que é nela que se decide quem é

Dasein e quem não é. Ou seja, o Dasein e os entes cujo ser não é o mesmo que o seu

estão co-implicados neste referir-se constitutivo do primeiro. Ao perguntar pelo ser dos entes, excedendo-os, o Dasein demora-se no seu próprio ser. Demorando-se, o Dasein constitui-se como referência ao seu próprio ser e, portanto, como referência a si, como ipseidade (Selbstheit), unindo-se nessa estrutura antecipadora – numa “mesmidade” –, porque sempre e já aí e, consequentemente, nela se individuando345

Com vimos, a experiência existencial ou Dasein corresponde à experiência de uma não-identidade num duplo ponto de vista:

.

1. Por um lado, uma não-identidade consigo mesmo, que corresponde ao seu carácter fáctico, à experiência de si enquanto disperso numa realidade dada, que não foi por si criada;

2. Por outro lado, uma não-identidade com a realidade em que se encontra disperso, experienciando-se como excedente e expressando o seu carácter excedentário colocando a questão do sentido do ser.

345

„Im Überstieg kommt das Dasein allererst auf solches Seiendes zu, das es ist, auf es als es »selbst«. Die Transzendenz konstituiert die Selbstheit. Aber wiederum nie zunächst nur diese, sondern der überstieg betrifft je in eins auch Seiendes, das das Dasein »selbst« nicht ist; genauer: im Überstieg und durch ihn kann sich erst innerhalb des Seienden untersmeiden und entsmeiden, wer und wie ein »Selbst« ist und was nicht. Sofern aber das Dasein als Selbst existiert – und nur insofern – kann es »sich« verhalten zu Seiendem, das aber vordem überstiegen sein muß. Obzwar inmitten des Seienden seiend und von ihm umfangen, hat das Dasein als existierendes die Natur immer schon überstiegen.“, Heidegger, Martin, Vom

191

É a este excesso de ser, a este abismo que separa a existência da identidade consigo mesma que Arendt chama, referindo-se ao quadro da fenomenologia existencial heideggeriana, “nada”, pois é apenas como negação da realidade em que se encontra dispersa que a existência, de um ponto de vista heideggeriano, faz experiência de si mesma. A existência é este abismo, esta distância com respeito à realidade, este estar- fora-de-si-mesmo. Se, para uma coisa ou res, o fim consiste na realização de todas as suas determinações numa totalidade, então a existência, vista como esta fuga à realidade, só pode subsistir na distância de si a si, não como totalidade ou coisa, mas como tensão para a unidade, projecto de constituição de uma identidade de si consigo.

Por essa razão, a existência não é simplesmente um Quê, mas um Quem, um algo que é referencial vivo de um esforço de constituição de si mesmo, o que leva Arendt a dizer que

[…] Heidegger sempre se havia preocupado com “a questão do sentido do Ser”. A sua meta provisória havia sido analisar o ser do homem como a única entidade que pode colocar a questão, porque toca o seu próprio ser; logo, quando o homem levanta a questão “O que é Ser?”, ele é atirado de volta sobre si mesmo. Mas quando, atirado de volta sobre si mesmo, ele levanta a questão “Quem é homem?”, é o Ser, pelo contrário, que se move para primeiro plano; é o Ser, tal como agora emerge, que convida o homem a pensar.346

Se a realização do seu ser consistir na plena identidade de si consigo, à imagem do que acontece com as restantes coisas que descobre no mundo, então o momento em que o Dasein realiza o seu ser, isto é, se torna numa coisa, é o momento da sua morte. Mas, se a existência não é um Quê, mas um Quem, qual é o sentido do seu ser?

Considerando o que vem sendo dito, existir não é estar ou ser num fim, mas ser- para-um-fim, descobrir-se constantemente na iminência de deixar-de-ser. Portanto, esse fim, no caso da existência, corresponde à morte, à sua própria aniquilação, pelo que ser- para-a-morte é um modo de subsistir na própria morte ou de permanecer na imanência da possibilidade da própria morte. Existir é estar permanentemente sob a ameaça de aniquilação, é estar ameaçado de morte em cada acto de determinação de si. Logo, o

Dasein não-é a morte, embora todos os seus modos de ser descubram o seu sentido

346

«[...] Heidegger had always been concerned with „the question of the meaning of Being”, his first, “provisional”, goal had been to analyze the being of man as the only entity that can ask the question because it touches his own being; hence, when man raises the question What is Being?, he is thrown back upon himself. But when, thrown back upon himself, he raises the question Who is Man?, it is Being, as now emerges, that bids man to think.», Arendt, «Willing», LoM, p. 173.

192

próprio como negação da morte compreendida como plena realização do Dasein, não sendo por isso menos verdade que é dela que retiram sentido, mesmo que negativamente.

Todos os modos de ser em que o Dasein se descobre disperso são outros tantos modos de escapar à morte. É a possibilidade sempre presente da sua própria morte que acompanha, impulsiona e fornece a medida da permanência do Dasein em todos os seus momentos, mesmo naquelas ocasiões, as mais comuns e nas quais está alienado do seu próprio ser, em que tal possibilidade é experienciada como pertencendo a outras coisas, a outros existentes, e não a si mesmo.

A apropriação da possibilidade de deixar-de-ser quebra o circuito de relações do

Dasein com fins que não são os seus, transcendendo as coisas em direcção ao seu

próprio fim, isto é, em direcção a si mesmo. Desse modo, o Dasein ocupa-se de si mesmo de modo absoluto, não se referindo a outra coisa senão a si mesmo. Existir significa, assim, estar sempre e já lançado na possibilidade da morte própria, descobrindo-se em permanente ameaça de dissolução. E a angústia corresponde à experiência da sua finalidade como sustentação de uma permanência que se descobre em constante risco de dissolução. Por detrás de cada possibilidade de ser que se torna real, é a morte que se deixa vislumbrar e intensificar.

O cuidado primário do Dasein é, então, com o seu ser ele mesmo. Na medida em que está constantemente ameaçado de morte, todos os seus actos descobrem significado no serem por-mor-de, e aquilo por-mor-de que eles são é uma existência – a sua – permanentemente em risco de aniquilação. Na leitura de Arendt:

[…] o carácter de ser do homem é determinado essencialmente por aquilo que o homem

não é, o seu nada. A única coisa que o si mesmo pode fazer para se tornar um si mesmo é

tomar “resolutamente” este facto do seu ser sobre si mesmo, pelo que, na sua existência, ele “é o fundamento negativo do seu nada”.347

O Dasein descobre-se imerso e disperso numa ordem de coisas; existir é, para um

Dasein, ser-no-mundo. No entanto, é precisamente no mundo que não pode estar em

casa, que não pode coincidir consigo mesmo, pois o seu ser é não-ser-coisa e, portanto,

347

«[…] the character of man’s being is determined essentially by what man is not, his nothingness. The