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U MA A NATOMIA DA C RISE DA

2.4 4 º M OVIMENTO – E XPROPRIAÇÃO /A CUMULAÇÃO DE R IQUEZA E A LIENAÇÃO DO M UNDO

3.3. Q UEM É H UMANO ?

Entregue a um processo de intensificação de si e de complexificação ontológica, a realização efectiva do humano singular torna-se insignificante, a reivindicação da singularidade humana, concebida enquanto consentimento ou consciência de si pela burguesia, continuamente investida por uma acumulação de poder e de capital, deixa de

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«The imperialist concept of expansion, according to which expansion is an end in itself and not a temporary means […].», Arendt, Hannah, OT, p. 137.

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dar conta da sua existência por intermédio da afirmação da sua diferença a respeito dos produtos da sua actividade, e a humanidade transforma-se numa demanda sem sentido para o humano ele mesmo.

O carácter sem sentido desta demanda do humano que resulta da expansão constitui a “reacção em cadeia”, esse ecoar distante do humano a que Arendt se referia numa passagem citada no início desta nossa reflexão, e cuja origem e contornos procurámos aqui, ao longo destas páginas, explicitar.

O mundo, a face humana do real – nascida da reivindicação do direito a um ser próprio -, transforma-se no território da indiferença, da neutralidade e da universalidade. A humanidade torna-se, em si mesma, inócua, desinteressante e não vinculativa para o humano, um mero eco. Diz-nos Arendt:

O conceito de expansão ilimitada, que pode apenas cumprir a esperança de acumulação ilimitada de capital, e que conduz à acumulação de poder sem finalidade, torna a fundação de novos corpos políticos – que até à era imperialista havia sido o desfecho da conquista – quase impossível. De facto, a sua consequência lógica é a destruição de todas as comunidades vivas, as dos povos conquistados, bem como as do povo em casa.239

A situação de quase impossibilidade de uma comunidade humana foi, como vimos, manifesta pela primeira vez na primeira guerra Mundial. Esse foi o lugar de manifestação desta contradição interna à concepção de humano saída do Imperialismo e nascida de uma noção de direitos humanos derivada de uma compreensão da comunidade política enquanto fundada na economia, isto é, na universalidade de uma essência ou natureza humana que dá prova de si mesma na esfera privada.

Após um processo de assimilação do Ser à humanidade, constituindo-o num Mundo humano, o existente detentor de direitos vê-se agora diante do desafio de conferir um sentido próprio à sua humanidade transcrita nesse mundo. Daí que Arendt afirme que

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«The concept of unlimited expansion that alone can fulfill the hope for unlimited accumulation of capital, and brings about the aimless accumulation of power, makes the foundation of new political bodies – which up to the era of imperialism always had been the upshot of conquest – well-nigh impossible. In fact, its logical consequence is the destruction of all living communities, those of the conquered peoples as well as of the people at home.», Arendt, Hannah, OT, p. 137.

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[…] a burguesia, durante tanto tempo excluída do governo pelo estado-nação e pela sua própria falta de interesse nos assuntos políticos, foi politicamente emancipada pelo imperialismo.240

Ou seja, o existente foi, por intermédio do Imperialismo, libertado da sua humanidade enquanto modo universal de ser.

Apesar da renovação e sofisticação das suas formas, a sombra do Imperialismo – deste processo de normalização do mundo que, de forma paradoxal, expulsou deste último os próprios existentes e ab-rogou quaisquer garantias que pudessem ser outorgadas às suas existências aqui e agora – continua, a nosso ver, bem presente e instalado, talvez mais do que nunca, nas mentes e nos corações, determinando a vida pessoal e colectiva dos humanos.

Mas, como diz Arendt, uma das razões pelas quais a filosofia nunca descobriu um lugar onde a política possa tomar forma é

[…] a assunção de que há algo político no homem que pertence à sua essência. Isto simplesmente não é assim; o homem é apolítico. A política surge entre homens e, assim, bem fora do homem. Não há qualquer substância política real. A política surge daquilo que jaz entre homens e é estabelecida como relação.241

Em resultado deste imperialismo do Homem sobre os homens, da subjectivação radical que é seu traço essencial e da arrogância que o acompanha, o humano é diariamente alienado do seu próprio ser, tornando-se num estranho no mundo e num estranho para si mesmo.

De facto, o seu próprio ser transformou-se numa alienação que o despojou de valor intrínseco e o subjugou aos ditames do binómio produtividade/consumo característico do processo vital protagonizado por esse Homem anónimo em que cada um sempre se descobre e ao qual se sacrifica.

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«The bourgeoisie, so long excluded from government by the nation-state and by their own lack of interest in public affairs, was politically emancipated by imperialism.», Arendt, Hannah, OT, p. 138.

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„[...] als ob em im Menschen etwas Politisches gäbe, das zu seiner Essenz gehöre. Dies gerade stimmt nicht; der Mensch ist a-politisch. Politik entsteht in dem Zwischen-den-Menschen, also durchaus

auβerhalb des Menschen. Es gibt keine eigentlich politische Substanz. Politik entsteht im Zwischen und

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O ser do humano foi transformado em mercadoria, assistindo-se mesmo à intensificação da mercantilização da dívida dos estados-nação242, uma dívida que, de acordo com a concepção moderna reconhecida nas declarações dos direitos humanos que agora se apresenta em crise, constituía o âmago da sua diferença e dignidade próprias. E esta ausência de direitos é uma pré-condição do totalitarismo: «[…] a conexão entre a ausência de direitos e a aniquilação totalitária não é acidental, mas antes, a ausência de direitos é a pré-condição necessária para a perseguição totalitária»243

Neste momento de crise da dignidade humana, colocar a questão acerca do sentido do ser do humano ou, pura e simplesmente, do ser do humano é perguntar acerca do sentido da afirmação da singularidade, não já do ser, mas da humanidade. Trata-se de saber já não o Que é o Homem ou Como o Homem se torna real mas, partido na experiência da sua existência nua, trata-se isso sim de saber Quem é este que aqui se apresenta, despido de quaisquer garantias e arriscando a sua existência, qua humano.

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A questão premente não diz, pois, respeito exclusivamente à ontologia e aos seus processos: «‘porque é que há alguma coisa e não nada?’»; ela diz respeito à ambiguidade ôntico-ontológica na qual o ser do humano se descobre como sendo do mundo, sendo no mundo e pertencendo ao mundo, concretizando-se num «porque é que há alguém, e não ninguém?»244

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Nas palavras de Serena Parekh: « The rightless are people who have been made superfluous through economic and social forces and stateless through political events.» («Os sem-direitos são pessoas que foram tornadas supérfluas através de forças económicas e sociais e sem-estado através de acontecimentos políticos.», Parekh, Serena, Arendt and the Challenge of Modernity: a Phenomenology of Human Rights, p. 11.

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243

«[...] the connection between rightlessness and totalitarian anni- hilation is not accidental, but rather, rightlessness is the necessary precondi- tion for totalitarian persecution.», Parekh, Serena, Arendt and the

Challenge of Modernity: a Phenomenology of Human Rights, p. 13.

244

„Aus den Bedingungen jener Wüste, die mit der Weltlosigkeit [...] in der Neuzeit begann, ergab sich die Frage von Leibniz-Schelling-Heidegger: Warum sollte es überhaupt etwas geben und nicht vielmehr nichts? Aus den Bedingungen der modernen Welt, wo wir nicht nur von dem Nicht-Ding-Sein, sondern auch von dem Nicht-Jemand-Sein bedroht sind, mag sich die Frage stellen: Warum sollte es überhaupt jemanden geben und nicht vielmehr niemanden? Diese Fragen mögen nihilistisch klingen, sind es aber nicht. In der objectiven Lage des Nihilismus, wo das Nicht-Ding-Sein und das Nicht-Jemand-Sein die Welt zu zerstören drohen, aind sie die anti-nihilistischen Fragen.“ («A partir das condições de perda de mundo que primeiro apareceram na era moderna […] brotou a questão de Leibniz, Schelling e Heidegger: Porque há algo de todo e não antes nada? E a partir das condições do nosso mundo contemporâneo, que nos ameaçam não só com o Não-Ser-Coisa, mas também com o Não-Ser-Alguém, pode brotar a questão: Porque há alguém e não antes ninguém? Estas questões podem soar niilistas, mas não são. Pelo contrário, elas são questões anti-niilistas, colocadas na situação objectiva de niilismo na qual Não-Ser-Coisa e Não- Ser-Alguém ameaçam destruir o mundo.»), Arendt, Hannah, Was ist Politik?, pp. 184-185.

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P

ARTE

II

CONTRA AS POLÍTICAS DE ANIQUILAÇÃO:

A

CRÍTICA ARENDTIANA DA

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1

UM PRELUDIO HUSSERLIANO

«Cette racine, il n’y avait rien par rapport à quoi elle ne fût absurde. […] Absurde, irréductible ; rien – pas même un délire profond et secret de la nature – ne pouvait l’expliquer. […] Le monde des explications et des raisons n’est pas celui de l’existence. […] Cette racine […] existait dans la mesure où je ne pouvais pas l’expliquer. […] La fonction n’expliquait rien; elle permettait de comprendre en gros que c’était qu’une racine, mais pas du tout celle-ci.»

Jean-Paul Sartre245

Antes de nos abalançarmos na análise da crítica arendtiana ao que chamámos “Políticas de Aniquilação”, faremos um desvio pela fenomenologia husserliana e pelo modo como esta última foi recebida e compreendida por Arendt. A utilidade deste desvio reside no modo como ele permite compreender, simultaneamente enquanto horizonte problemático e como contraponto, as questões que se apresentaram a Arendt. Assim, não se tratará aqui tanto de analisar e discutir em detalhe a proposta husserliana de fenomenologia, mas antes de a fixar na sua origem e traços mais gerais, bem como nos seus limites no que à fenomenologia existencial diz respeito246.